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Toggle“Sinto profunda inquietação e angústia diante da sucessão de tantos choques inesperados em tão curto espaço de tempo.” É assim que Rubens Ricupero, ex-embaixador do Brasil na Itália, resume seu sentimento em relação à guerra da Ucrânia e da Rússia, iniciada em 24 de fevereiro deste ano. Décadas atrás, observa, “eventos tão desastrosos e improváveis, os chamados ‘cisnes negros‘, só aconteciam com enormes intervalos entre um e outro, não concentrados no tempo, a ponto de às vezes, como agora, vários desses eventos se acavalarem uns sobre os outros”.
Desde a primeira década do ano 2000, exemplifica, “tivemos, em menos de 15 anos, a crise financeira de 2008, a eleição de Trump em 2016, a eleição de Bolsonaro em 2018, a pandemia da Covid-19 a partir de 2019, o agravamento do aquecimento global e a invasão da Ucrânia em 2022″.
Diante da sobreposição de crises, salienta, “não compreendemos bem se existe algum elo de causa e efeito nessa coincidência, estamos perplexos frente à repetição de calamidades”.
Citando o maior filósofo espanhol do século 20, José Ortega y Gasset, que viveu entre 1883 e 1955, Ricupero diz que nos encontramos exatamente como ele descreveu seus contemporâneos anos atrás: “No sabemos lo que nos pasa. Y eso es precisamente lo que nos pasa: ¡no saber lo que nos pasa!”
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Para sair da perplexidade, sugere, na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, antes de tudo é fundamental “distinguir a natureza das crises”. Ele explica: “A crise financeira, as eleições de retrocesso civilizacional são fenômenos provocados diretamente pelos seres humanos.
A pandemia, o aquecimento global, embora sofram influência de ações humanas, resultam de forças naturais. Ambos os tipos requerem cooperação internacional para serem prevenidas ou superadas, mas as soluções serão diferentes em cada caso. Catástrofes naturais são mais difíceis de prever ou evitar. Já a invasão da Ucrânia é um desastre evitável, desnecessário, gratuito, que não precisava ter acontecido se não fosse a obsessão doentia e maligna de Putin”.
E acrescenta: “Basta […] comparar a agressão a sangue frio contra um país mais fraco, para constatar que, nesse episódio, já voltamos a 1914. A agressão contra a Ucrânia ameaça anular mais de cem anos de esforço para criar organizações internacionais como a Sociedade das Nações (1919) e a ONU (1945), que se esforçam em fazer com que o império da lei, do direito internacional prevaleça sobre o uso da força pelos poderosos”.
A seguir, ele reflete sobre os efeitos da guerra e como ela contribui para reorganização da geopolítica mundial.
Rubens Ricupero é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Diplomata de carreira desde 1961, exerceu, dentre outras, as funções de assessor internacional do presidente Tancredo Neves (1984/1985), assessor especial do presidente da República José Sarney (1985/1987), representante permanente do Brasil junto aos órgãos da ONU sediados em Genebra (1987-1991) e embaixador nos Estados Unidos (1991-1993).
Foi ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal e da Fazenda no governo Itamar Franco. Foi também embaixador do Brasil na Itália e secretário geral da UNCTAD, órgão da ONU, deixando o cargo em setembro de 2004, quando se aposentou como diplomata. Entre suas obras, destacamos A diplomacia na construção do Brasil. 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017).
Agressão da Rússia contra a Ucrânia ameaça anular mais de cem anos de esforço para criar organizações internacionais,
Confira a entrevista.
IHU – O senhor entrou na diplomacia há 50 anos, serviu como embaixador nas mais importantes instâncias e escreveu livros importantíssimos sobre política externa. A partir da sua experiência profissional e acadêmica, como o senhor avalia a conjuntura da guerra, somada a tantas outras crises que persistem no mundo, como a pandemia e a catástrofe climática? Que sentimentos esse momento o tem despertado?
Rubens Ricupero – Sou mais antigo do que insinuado na pergunta. Ingressei no Instituto Rio Branco em 1958, a data oficial do início de minha carreira diplomática, portanto há quase 64 anos! Sinto profunda inquietação e angústia diante da sucessão de tantos choques inesperados em tão curto espaço de tempo. Se partirmos de 2008, tivemos, em menos de 15 anos, a crise financeira daquele ano, a eleição de Trump em 2016, a eleição de Bolsonaro em 2018, a pandemia da Covid-19 a partir de 2019, o agravamento do aquecimento global e a invasão da Ucrânia em 2022.
Considero eleições como as de Trump e Bolsonaro momentos de “ruptura de civilização” tão graves como algumas crises mundiais. Anteriormente, eventos tão desastrosos e improváveis, os chamados “cisnes negros”, só aconteciam com enormes intervalos entre um e outro, não concentrados no tempo, a ponto de às vezes, como agora, vários desses eventos se acavalarem uns sobre os outros.
Não compreendemos bem se existe algum elo de causa e efeito nessa coincidência, estamos perplexos frente à repetição de calamidades. Numa época também trágica da história, Ortega y Gasset escreveu: “No sabemos lo que nos pasa. Y eso es precisamente lo que nos pasa: ¡no saber lo que nos pasa!”
O primeiro passo para tentar sair da perplexidade é distinguir a natureza das crises. A crise financeira, as eleições de retrocesso civilizacional são fenômenos provocados diretamente pelos seres humanos. A pandemia, o aquecimento global, embora sofram influência de ações humanas, resultam de forças naturais.
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Ambos os tipos requerem cooperação internacional para serem prevenidas ou superadas, mas as soluções serão diferentes em cada caso. Catástrofes naturais são mais difíceis de prever ou evitar. Já a invasão da Ucrânia é um desastre evitável, desnecessário, gratuito, que não precisava ter acontecido se não fosse a obsessão doentia e maligna de Putin.
A guerra entre a Ucrânia e a Rússia pegou o senhor de surpresa ou já era esperada? Por que está se prolongando?
Rubens Ricupero – Acompanhei as informações dos serviços de inteligência divulgadas pelo governo americano, secundado pelo britânico, desde novembro do ano passado, dando conta, com impressionante exatidão, do que estava sendo tramado pela Rússia.
Ao contrário de franceses e alemães, que minimizaram o risco, tive a impressão de que as informações eram procedentes, pois antecipavam o que estava acontecendo em termos de concentração de tropas e blindados na Bielorrússia e na fronteira ucraniana-russa.
Não cheguei a acreditar, porém, que iria haver uma invasão em larga escala e com objetivos iniciais tão desmesurados como sucedeu. Julguei, como outros, que a invasão se limitaria à região das províncias separatistas do Leste. Responderei adiante à questão sobre a duração da guerra.
Alguns analistas, ao comentarem a atual conjuntura internacional, dizem que estamos em um novo tempo, que não é o da Guerra Fria nem o da queda do Muro de Berlim. Concorda? O que caracteriza esse novo tempo? O mundo mudou?
Rubens Ricupero – Sim, a história nunca se repete da mesma maneira. Há analogias com fases precedentes, a mais parecida com a Guerra Fria. A característica central desta última foi a divisão do mundo em dois blocos hostis, divisão da Europa pela chamada Cortina de Ferro, divisão da Alemanha, de Berlim, da Coreia, do Vietnã, sempre com um dos lados alinhado com os Estados Unidos capitalistas e de regime democrático contra o outro, de ideologia marxista-leninista, economia centralizada, domínio totalitário do Partido Comunista.
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Antes mesmo da invasão da Ucrânia, já se começara a assistir à formação gradual de divisão análoga entre americanos e aliados ocidentais contra a Rússia de Putin desde a agressão à Geórgia (2008) e a anexação da Crimeia (2014), assim como contra a China, a partir da adoção da estratégia americana do “pivô” em direção à Ásia do Leste, isto é, do deslocamento do eixo da concentração das forças dos EUA para conter a China (2014), tendência acentuada com as sanções e a aberta animosidade da era Trump, mantida e desenvolvida desde então. A aproximação entre Rússia e China, com exercícios militares conjuntos, mais de 30 encontros entre Putin e Xi Jinping, precede também a guerra, culminando com a reunião da “amizade sem limites”. A divisão agravou-se enormemente com a guerra na Ucrânia.
Momento atual X Guerra Fria
Há, no entanto, diferenças fortes com a Guerra Fria, a primeira das quais é que ela era chamada de “fria” justamente porque a confrontação se dava em todos os domínios, exceto no do confronto “quente” das armas. Apesar dos temores, a União Soviética nunca chegou a utilizar o Exército Vermelho para impor o regime comunista à Alemanha Ocidental, à Áustria e outros países da Europa. Assim, a atual fase já começa da forma mais grave, pela agressão armada e a invasão de uma nação europeia independente.
Uma segunda diferença é que a URSS, potência nuclear e convencional, possuía economia relativamente fraca e isolada em relação ao resto do mundo, enquanto a China, sua subordinada, se encontrava em estágio atrasado de desenvolvimento em todos os setores.
Na configuração atual, a integração de ambas na economia mundial está muito mais avançada, como se vê da dependência da Europa em relação ao gás, petróleo e carvão da Rússia, da importância para muitos países do trigo russo, dos fertilizantes (inclusive para o Brasil).
Quanto à China, sua integração no comércio, nos investimentos e na tecnologia do mundo são incomparavelmente superiores ao que jamais foi a da URSS. Sem mencionar que a China não está longe de se tornar, ao menos em termos absolutos, a maior economia do mundo, destinada também a ser o lado mais poderoso da relação com os russos.
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Uma terceira e significativa diferença é que o conteúdo ideológico na Guerra Fria era muito mais forte que agora, Moscou sendo o centro orientador mundial do comunismo, presente ativamente em todos os países por meio dos partidos comunistas locais. No presente alinhamento Rússia-China, o elemento ideológico de certo modo está presente, mas de maneira muito mais atenuada.
Em uma entrevista concedida ao Estadão em 2018, refletindo sobre o nacionalismo, o senhor disse que “estamos voltando a 1914”. É isto que a guerra confirma? A partir desta guerra, como refletir, de um lado, sobre o nacionalismo e, de outro, a globalização?
Rubens Ricupero – Antes de 1914, o sistema internacional era dominado por algumas poucas potências, todas europeias, salvo o Japão, que exerciam domínio colonial e imperial sobre a maior parte do mundo, movidas pela rivalidade, a disputa de territórios, a afirmação do nacionalismo. Não sentiam nenhuma inibição em utilizar o poder militar para conquistas, ignorando o direito internacional. O resultado, inelutável, foi a catástrofe da Primeira Guerra Mundial, seguida, nos anos 30, pelo nazifascismo e novamente a guerra mundial, desta vez a segunda.
Foi para evitar a repetição dessas duas incomensuráveis tragédias humanas que se adotou a Carta das Nações Unidas, uma espécie de “constituição” do mundo, cujo preâmbulo começa assim: “Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações futuras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, (…) e a garantir (…) que a força armada não será usada a não ser no interesse comum (…)”.
Basta ler o preâmbulo e comparar com a agressão a sangue frio contra um país mais fraco, para constatar que, nesse episódio, já voltamos a 1914. A agressão contra a Ucrânia ameaça anular mais de cem anos de esforço para criar organizações internacionais como a Sociedade das Nações (1919) e a ONU (1945), que se esforçam em fazer com que o império da lei, do direito internacional prevaleça sobre o uso da força pelos poderosos.
O retorno ao mundo de antes de 1914 significa a volta da lei da selva, da afirmação da vontade e dos interesses dos mais fortes contra os desarmados, o fim da relevância das Nações Unidas, a multiplicação de conflitos entre os grandes, e, cedo ou tarde, nova guerra mundial, da qual talvez a humanidade não sobreviva.
A guerra está reorganizando a geopolítica internacional? Sim, não, por que e em que sentido? Quais são os impactos da guerra na aliança Rússia-China e a consequência destes para uma uni, bi ou multipolaridade?
Rubens Ricupero – A reorganização da geopolítica mundial já havia começado alguns anos antes, desde a primeira década do século XXI, através do crescente antagonismo entre Rússia-China versus Estados Unidos, Europa, o Ocidente em geral. A futura evolução desse realinhamento vai depender muito da guerra na Ucrânia, de sua duração, da forma como ela se desenvolver e terminar.
Os cenários possíveis são inúmeros e qualquer prognóstico deve levar em conta a inerente imprevisibilidade de qualquer guerra, o que se viu abundantemente nos primeiros dias da invasão. Há um texto célebre de Clausewitz que nos adverte: “A guerra é o domínio da incerteza; três quartos dos fatores nos quais são baseadas as ações na guerra estão envolvidos num nevoeiro de maior ou menor incerteza”.
Perspectivas
Para simplificar o exercício, vamos lidar com dois cenários opostos, embora o provável seja que a realidade acabe misturando elementos de ambos e de outros. O cenário mais favorável e desejável seria uma guerra que acabasse logo, dentro de semanas, não meses, com limitação de perdas de vidas e destruição de cidades. No momento em que a guerra se aproxima de dois meses, esse cenário se torna cada vez mais inviável.
O volume de mortos dos dois lados, de refugiados, de atrocidades e crimes de guerra, de arrasamento de cidades cresce a cada dia e torna mais difícil a negociação capaz de produzir um cessar-fogo, seguido de acordo de paz.
Feita a ressalva, admitamos por hipótese que, de algum modo, a negociação se viabilize e permita atingir um acordo de paz estável. Se isso se sucedesse, seria possível imaginar para o quadro mais amplo da geopolítica mundial um desfecho parecido ao que se seguiu à crise dos mísseis de Cuba (outubro/novembro de 1962).
A crise dos mísseis foi muito mais perigosa para o mundo que a da Ucrânia porque envolveu, num quase confronto direto e face a face, os EUA e a URSS, as duas superpotências nucleares. Evitou-se o Armagedom no último minuto e chegou-se a um compromisso entre os envolvidos que abriu caminho a uma longa fase de détente.
A Guerra Fria não terminou, voltou-se de vez em quando a episódios de tensão, mas nunca mais se repetiu uma situação tão grave como a de outubro de 1962. A crise criou condições para que os dois adversários adotassem entre eles uma espécie de moldura para administrar os momentos críticos do relacionamento mútuo.
Estabeleceu-se uma linha direta de comunicação entre os dois líderes, o “telefone vermelho”, negociou-se uma série de acordos importantes na área nuclear, aos poucos expandidos a outros domínios.
Esse seria o desenlace ideal para o mundo de hoje, permitindo distender e melhorar o clima do relacionamento entre os dois lados. A “competição estratégica” continuaria, sobretudo entre americanos e chineses nas áreas da economia, da tecnologia, na Ásia e outros continentes, mas se cultivaria ao mesmo tempo áreas de cooperação em temas como o aquecimento global, a prevenção das pandemias, a ajuda ao desenvolvimento dos mais pobres.
Como se disse acima, esse cenário mais favorável fica menos provável à medida que o conflito se prolonga e provoca ódios e ressentimentos profundos. Convém lembrar que a crise dos mísseis, apesar de mais perigosa, não chegou a desencadear, como agora, guerra de verdade, enfrentamento militar com as perdas e ressentimentos que costumam deixar por longo tempo.
O cenário oposto, menos favorável, pode assumir muitas formas, a pior delas, que gostaríamos de crer ser impensável, seria a escalada do conflito até atingir o recurso a armas nucleares ou outras de destruição de massa.
Mesmo que não se alcance tal extremo, a eventualidade de escalada envolvendo países da Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN e, por extensão, os Estados Unidos, constitui um risco não desprezível em razão do crescente fornecimento pelos aliados da Aliança Atlântica de armas mais poderosas ao lado ucraniano.
Uma retaliação russa poderia facilmente conduzir ao alastramento do conflito para se tornar uma guerra europeia. Caso se evite a escalada, ainda assim a guerra pode se prolongar por meses se nenhum dos contendores atingir o ponto de exaustão e se um dos lados julgar que não alcançou seus objetivos mínimos.
Em tal situação, morrerá muito mais gente de ambos os lados, a destruição de cidades e infraestrutura se acentuará, se multiplicarão as denúncias de atrocidades e crimes de guerra, se avolumará ainda mais a onda de refugiados, a opinião pública – não só dos dois diretamente envolvidos, mas a internacional – endurecerá na pressão sobre os governantes para rejeitar paz de compromisso e, no lado ocidental, exigir dos russos reparações pelas destruições e punição aos crimes.
Se não se registrar colapso de um dos lados e vitória completa do outro, uma variante desse cenário seria um impasse por exaustão dos adversários, reproduzindo o ocorrido na Guerra da Coreia. Iniciada em 1950, essa guerra terminou em 1953 por um cessar-fogo que jamais conduziu a um tratado de paz. Tecnicamente a guerra nunca terminou, a península coreana segue dividida em dois países hostis, com frequentes incidentes e ameaças entre eles.
Nessa hipótese, a Ucrânia seria amputada de territórios adicionais; além da Crimeia, talvez o das duas províncias onde há separatismo no Leste, quem sabe até um corredor por terra estabelecendo a ligação entre a Rússia e a Crimeia através da anexação de parte do litoral ucraniano.
Em tal eventualidade, é difícil imaginar que os ocidentais se mostrariam dispostos a suspender ou atenuar as sanções econômicas contra a Rússia, que continuaria a ser tratada como pária pelo Ocidente.
Gradualmente, os vínculos econômico-comerciais, como a importação pela Europa de gás, petróleo, carvão e outros produtos russos, desapareceriam e se voltaria aos tempos da Guerra Fria, antes do início do aumento do comércio com o Leste. Os ucranianos não se resignariam à perda de territórios e se esforçariam em desestabilizar o domínio russo por meio de guerrilhas.
Até agora, ao contrário do esperado por analistas de boa vontade, a China se manteve em posição de apoio aos russos pelas declarações diplomáticas, pelos votos na ONU e pela utilização da máquina de propaganda a fim de divulgar a versão de Moscou dos eventos. Os chineses não esboçaram nenhum gesto significativo a fim de pacificar, mediar o conflito ou tentar minorar os aspectos mais destrutivos.
Não se afastaram da atitude tradicional de só se mexer quando seus interesses diretos – Taiwan, Tibete, Hong Kong, uigures – são ameaçados. Se, nas fases futuras da guerra, Pequim decidir dar à Rússia apoio mais efetivo por meio do fornecimento de armas ou medidas para evitar as sanções, a animosidade crescente nos Estados Unidos e no Ocidente em relação à China poderá se agravar, tornando a situação geopolítica mundial ainda mais parecida com o antagonismo da Guerra Fria. Seria o pior desfecho possível para países que não possuem nenhum interesse em tomar partido e se alinhar com um dos dois campos.
Quais os efeitos da guerra no Brasil e demais países da América Latina?
Em termos diretos, o Brasil e a América Latina estão entre os países e regiões menos diretamente afetados pela guerra. Geograficamente distantes da área do conflito, nossas relações com os dois países envolvidos não apresentam grande densidade. O país terá dificuldades no suprimento de alguns fertilizantes e em perdas de exportação, mas nada de especial gravidade. Sofrerá, como todos, os impactos indiretos provocados pela guerra: turbulência na economia mundial, aumento nos preços de petróleo, trigo, inflação mais intensa, ameaça de queda do crescimento econômico.
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Além disso, na hipótese de acentuação de nova encarnação da Guerra Fria, o Brasil se encontrará em situação mais problemática do que na época da Guerra Fria propriamente dita. Naquela época, com efeito, o alinhamento político brasileiro com os Estados Unidos coincidia com sua inserção na economia capitalista e com a concentração maciça de seu comércio, financiamentos, investimentos, dentro do espaço ocidental.
Já no realinhamento em curso, enquanto os valores políticos do país se aproximam mais dos ocidentais, seus interesses de comércio exterior e, em menor grau, de atração de investimentos se tornaram crescentemente dirigidos à China, o que poderá levar a tensões como ocorreu, por exemplo, no caso da escolha da tecnologia 5G.
A atuação internacional do Brasil na crise ucraniana tem sido incoerente, contraditória e medíocre, quase irrelevante. A visita de Bolsonaro a Moscou na véspera da invasão representou um erro injustificável, agravado pela atitude posterior de se declarar “equidistante” frente à guerra, em total contradição com os votos do Brasil no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral da ONU de condenação à agressão.
Embora os votos brasileiros tenham sido corretos (menos na abstenção da suspensão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos), a declaração de voto da delegação brasileira se caracterizou pela inconsequência: condenar, por exemplo, o fornecimento de armas à Ucrânia significa, na prática, condenar o país a ser esmagado pela agressão russa censurada pelas resoluções das Nações Unidas que a própria delegação nacional tinha aprovado.
Da mesma forma, criticar as sanções é uma atitude “angelical” e hipócrita. De fato, as sanções para serem legais deveriam ser aprovadas pelo Conselho de Segurança. No entanto, como a Rússia é membro permanente do Conselho de Segurança e não hesita de usar o veto para impedir a aprovação de qualquer medida desse tipo, as sanções acabam por ser o mal menor, não tendo sentido censurá-las.
Nas análises sobre os desdobramentos da guerra, analistas chamam a atenção para fragilidade e impotência das instituições de coordenação internacional, como a ONU. Depositamos muita esperança nas instituições internacionais desde o fim da Segunda Guerra, como garantidoras da resolução de conflitos e promotoras da paz? Como reflete sobre as organizações e mecanismos internacionais na atual conjuntura? Quais são as perspectivas para os organismos multilaterais diante do fracasso do Ocidente em frear a guerra?
Desde sua criação em 1945, a ONU nasceu com uma espécie de “pecado original”: o direito de veto dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. Sem o veto, os principais fundadores, a começar pelos Estados Unidos e a União Soviética jamais teriam aceito a Carta das Nações Unidas. O problema central do sistema internacional, nunca resolvido, sempre foi a recusa taxativa dos mais poderosos de aceitarem uma autoridade mundial supranacional, capaz de prevalecer sobre eles. Por esse motivo, sabia-se, desde o início, que a ONU jamais teria condições de resolver um conflito criado por um dos membros permanentes, sobretudo EUA e URSS, hoje Rússia. É o que sucede agora com a invasão da Ucrânia.
O problema não é tanto a incapacidade de se aprovar decisões de condenação à agressão pelos mecanismos da ONU. Tanto assim que até agora foram aprovadas nada menos que três resoluções, duas na Assembleia Geral – uma delas, a da suspensão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos – e uma, a do Conselho de Segurança, que não tem validade efetiva porque foi vetada pelos russos. Houve também uma decisão importante da Corte Internacional de Justiça de Haia, a mais alta autoridade jurídica internacional, cujo Estatuto faz parte da Carta da ONU. No dia 16 de março de 2022, a Corte decidiu por treze votos contra dois (os juízes da Rússia e da China) que Moscou deveria suspender imediatamente sua operação contra a Ucrânia porque ela [a Corte] não tinha encontrado nenhuma ação contra os habitantes de língua russa que justificasse a invasão. Essa decisão, de grande significado jurídico, impõe-se a toda comunidade internacional.
Como se vê, não houve impotência nem paralisia. O problema é que a Rússia não obedeceu a nenhuma dessas decisões e continuou a agir de modo unilateral, exatamente como agiam as grandes potências no mundo de 1914.
A ONU, bem como as outras organizações internacionais, não possui força própria a fim de executar suas decisões. Depende para isso da disposição dos países-membros. O único país que teria condições militares de tentar obrigar os russos a porem fim à invasão da Ucrânia seria os Estados Unidos e seus aliados da OTAN, que já afirmaram várias vezes que não intervirão diretamente por medo de desencadear a terceira guerra mundial. A Rússia sendo uma das duas maiores potências nucleares do mundo, quem teria disposição de amarrar o guizo no gato?
Os intelectuais têm refletido sobre as incertezas, a insegurança, o aumento das desigualdades, da pobreza, do número de refugiados, dos desafios frente às mudanças climáticas, mas também há um movimento civil contrário à guerra. Para que direção o mundo está caminhando? O senhor tem esperança? Onde a encontra? Como transmiti-la às futuras gerações?
Rubens Ricupero – Quanto à primeira parte da pergunta, volto ao que já respondi antes: o sistema internacional está caminhando para o rumo perigoso de aumento das possibilidades de conflitos que põem em risco a sobrevivência mesma da humanidade. No momento, o agravamento da divisão do mundo em dois blocos hostis depende da evolução da guerra na Ucrânia, de modo mais imediato.
O limiar de destruição total
Logo depois da explosão das primeiras bombas atômicas, o filósofo Emmanuel Mounier, fundador da escola do personalismo e da revista Esprit, declarou em conferência na UNESCO que, com a bomba atômica, o suicídio mudara de natureza, passara de fenômeno puramente individual para uma possibilidade coletiva. Antes, a humanidade não era mestra do seu destino. Condenada ao futuro, ela não podia, como qualquer homem, decidir meter uma bala na cabeça. Agora, pela primeira vez, ela teria de escolher destruir ou não o mundo, não só o humano, mas o natural. O que havia sido um apanágio de Deus – conservar ou liquidar o mundo – passara ao alcance dos homens com a arma nuclear (hoje, acrescentaríamos, também com o aquecimento global).
Se não me engano, a conferência data de 1949, portanto, mais de 72 anos atrás. Até agora, conseguiu-se evitar o pior e hoje novamente nos aproximamos desse limiar de destruição total. Uma das piores consequências da guerra é que ela inverte todas as prioridades naturais
Patricia Fachin e Wagner Fernandes de Azevedo
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