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ToggleEste é o segundo texto de uma coleção de três publicações sobre a edição comemorativa de “Histórias de Alexandre”. Leia também:
“Histórias de Alexandre”, edição comemorativa | Pt. 1: Vida e obra de Graciliano Ramos
“Histórias de Alexandre”, edição comemorativa | Pt. 3: Literatura e mundo sertanejo
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Um breve percurso da obra Histórias de Alexandre
A escrita de Histórias de Alexandre teve início cerca de um ano depois de Graciliano Ramos ter deixado a prisão. Os primeiros registros desse trabalho datam de 1938, tendo o autor, nos anos seguintes, realizado correções, cortes e aprimoramentos no texto, até chegar em sua versão final. Assim como os capítulos de Vidas secas, publicados antes em jornal, Graciliano tornou públicos alguns dos capítulos de Histórias de Alexandre: “Um papagaio falador”, publicado em dezembro de 1938 no Diário de Notícias; “História de um bode”, em janeiro de 1939, em O Jornal. Ainda no Diário de Notícias, saíram: “Primeira aventura de Alexandre”, em janeiro de 1939; “O olho torto de Alexandre”, em maio de 1939; “A espingarda de Alexandre”, em julho de 1939; e “Moqueca”, em setembro de 1939. O “Estribo de prata”, em setembro de 1939, sai em O Jornal; “História de uma guariba”, em novembro de 1939, no Diário de Notícias; e “O marquesão de jaqueira”, em novembro de 1939, em O Jornal (Salla, 2016).
Em sua primeira edição, de 1944, publicada pela Companhia Editora Leitura (RJ) – na Coleção Menino-Homem, voltada para o público juvenil – não constaram dois capítulos: “Apresentação de Alexandre e Cesária” (escrito em 1938); e “Um missionário” (escrito nos anos 1950).

Ainda em 1951, a pedido da Editora Vitória, Graciliano escolheu sete das treze histórias que compunham o livro original e as publicou sob o título de 7 histórias verdadeiras.

O capítulo “Um missionário” só seria escrito e publicado depois, no Jornal de Alagoas, no dia 8 de junho de 1952, e integrado à obra em 1962, juntamente com “Apresentação de Alexandre e Cesária” (Oliveira, 2017). A partir da edição de 1962, a obra Histórias de Alexandre integraria por décadas o livro póstumo intitulado Alexandre e outros heróis. Só voltou a ter uma edição exclusivamente sua em 2007 – mais de 60 anos após sua primeira publicação.
Histórias de Alexandre foi praticamente ignorado pela crítica em geral, recebendo pouca ou nenhuma atenção ao longo de décadas. Mas esse desinteresse não corresponderia ao do público em geral. Uma matéria da Gazeta de Alagoas publicada em 1991 já apontava que Alexandre e outros heróis só ficava atrás de Vidas secas e São Bernardo nas estimativas de vendas dentro e fora do país, o que seria confirmado mais tarde por pesquisa da própria editora Record, segundo Monteiro Filho, cujos “[…] dados confirmam que o personagem praticamente ignorado pelos estudiosos atraiu um interesse de público superior às reconhecidas páginas de Angústia, Infância e Memórias do cárcere” (2013).
De fato, não se trata de modo algum de uma obra menor. Aliás, é na própria simplicidade das suas histórias e personagens que se encontram sua riqueza e complexidade – o que é tratado a seguir, a fim de mostrar que as Histórias de Alexandre abrem caminho ao jovem leitor para a compreensão das obras mais densas de Graciliano Ramos.
Alexandre e a decadência da família rural: aspectos históricos
Histórias de Alexandre é uma novela constituída das aventuras de Alexandre em sua terra natal, tendo como coadjuvante sua esposa Cesária. Trata-se de um casal pobre do sertão nordestino, de idade já avançada, que vive em uma moradia modesta junto à benzedeira Das Dores, afilhada deles, que participa do cenário das contações do padrinho e, por vezes, lhe solicita que narre suas histórias. É nesse ambiente que recebem com frequência a visita de seu Libório, cantador de emboladas, o preto cego seu Firmino, e mestre Gaudêncio, o curandeiro, para ouvirem as aventuras de Alexandre.

Antes de contar sua primeira proeza, Alexandre revela ter sido homem de posses, vindo de uma família rural próspera, proprietária de terras e de gado. Quando o pai morreu, ele e seu irmão tenente herdaram as riquezas da família: “Quando meu pai entregou a alma a Deus, deixou tantos possuídos que os oficiais de justiça arregalaram o olho: terra, muito patacão de ouro, um despotismo de gado”. Contudo, com o fim da escravidão em 1888, a família vai à falência:
— Meu pai, homem de boa família, possuía fortuna grossa […]. Não era, Cesária?
— Era, Alexandre, concordou Cesária. Quando os escravos se forraram, foi um desmantelo, mas ainda sobraram alguns baús com moedas de ouro. Sumiu-se tudo.
Suspirou e apontou desgostosa a mala de couro cru onde seu Libório se sentava:
— Hoje é isto.
Com essa revelação, Graciliano traça uma linha divisória temporal, material e histórica bastante incisiva entre quem era Alexandre e quem ele se tornou, assinalando que a miséria viera após o 13 de maio de 1888 (quando os escravizados conquistaram a liberdade – “se forraram” nas palavras de Cesária). Este evento é um divisor histórico importante em termos de marcação do antes e depois nas narrativas de Alexandre.
Portanto, as memórias de Alexandre e Cesária situam-se no século XIX, evidenciando que a ostentação de grandeza do casal vem por vezes da nostalgia, às vezes do sonho com a riqueza, indo às raias do delírio em alguns pontos da narrativa. Esse aspecto é percebido desde o início de suas aventuras, marcadas pela distorção da realidade, mas sobretudo no capítulo final intitulado “A doença de Alexandre”, em que não sabemos bem se ele foi acometido por uma febre terrível ou se, pela obsessão de agigantamento dos seus feitos, já não distingue mais o que é fantasia, sonho ou realidade.
Ocorre que a miséria do presente, lugar de onde Alexandre e Cesária falam – ou enunciam a história –, contrasta com o enunciado de suas memórias fantásticas, revelando, além da falência da propriedade rural escravista (simbolizada pela “mala de couro cru onde seu Libório se sentava”), também o que podemos chamar de “compensações” da pobreza, conforme bem assinala Osman Lins:
Temos, assim, nestes relatos, dois níveis bem nítidos e que se opõem com clareza: o nível do real – uma realidade que não está muito longe da encontrada em Vidas secas – […] e o do sonho, feito de compensações, no qual o real é superado e, por contraste, salientado (1982).

Cabe lembrar que tal arranjo não é novidade na obra de Graciliano Ramos. Na crônica “Alguns tipos sem importância”, em que revela a origem de seus romances, o autor conta como construiu o protagonista do romance Angústia, Luís da Silva, em situação quase idêntica: “Localizei esse tipo na capital, fiz dele um pequeno funcionário, último galho de uma família rural estragada […]” (2005). Luís da Silva também é um nostálgico dos tempos do avô, proprietário rural escravista, que fora à ruína com o fim dos trabalhos forçados em 1888. Mais tarde, inclusive, Graciliano lamentaria ter-se arriscado a descrever a “decadência da família rural, a ruína da burguesia, a imprensa corrupta”, lamenta ter-se atrevido a estudar a loucura e o crime porque ninguém tratou disso no seu livro, reduzindo-o a “um drama sentimental e besta”.
Ainda que as Histórias de Alexandre tenham sido escritas para um público jovem, elas não devem ser subestimadas ou reduzidas a mero folclore regionalista, pois fixam também o fenômeno histórico da vida política e cultural brasileira colonial que sobreviveu no Império e, pelo boca a boca ou nas entrelinhas da nossa literatura, alcançou o período republicano. Aliás, Alfredo Bosi, a esse respeito, assinala que, entre “os caracteres mais ostensivos” do período colonial, estão “o culto da aparência e do medalhão” (2015).
Portanto, um livro como Histórias de Alexandre pode ser entendido também como etapa de preparação do leitor jovem para o enfrentamento do universo sertanejo do autor e para seus livros de mais fôlego e profundidade, como Angústia e Vidas secas.
[Continua…]
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