Recentemente, Thiago Santos, conhecido como Thiagson, doutorando na Escola de Música da Universidade de São Paulo (USP) e professor de piano, cravou em suas redes sociais: “Bum Bum Tam Tam é mais complexo que Bach”.
“Para você chegar nesse nível de produção que envolve os fluxos e as festas, você precisa ter muitos anos de tecnologia. O Bum Bum Tam Tam é mais complexo por várias questões”, ressaltou Santos em entrevista ao Brasil de Fato.
A música do MC Fióti ganhou ainda mais visibilidade por sua associação ao Instituto Butantã, que tem produzido a CoronaVac, imunizante contra o coronavírus. Por isso, foi batizada de “hino da vacina.”
O clipe da música, lançada em 2017, está entre os 50 vídeos mais vistos na história do YouTube. Para compor Bum Bum Tam Tam, Fioti utiliza um trecho de flauta de Partita em Lá Menor do composição do alemão Johann Sebastian Bach do ano de 1723. Thiagson se impressionou com a produção da canção.
“Há muitos timbres ali que quando você vai passar para a partitura, é muito difícil. É mais difícil que colocar uma música do Bach na partitura, por exemplo”.
“Eu vi na partitura que o Fióti colocou umas notas que o Bach jamais colocaria, ele pegou a melodia e colocou em outro contexto, deixando ela mais envolvente e dançante, e uma porrada de camadas que parecem três orquestras tocando”, explica Thiagson, que é dono de um canal no YouTube, para onde transporta suas análises e pesquisas sobre o funk de forma didática.
Thiagson também critica o embranquecimento do gênero musical. “Uma coisa que fico puto da vida é que todo mundo coloca o DJ Marlboro como o primeiro a fazer funk (no Brasil). O Marlboro é branco, o funk sempre foi uma música predominante preta. Aí, você coloca o Marlboro como o pai do funk no Brasil, depois de ter ganhado do Hermano Vianna o equipamento. O funk é embranquecido na própria história.”
Arquivo Pessoal
Professor de piano e mestre em Música, Thiagson defende o funk de ataques e fala sobre a sofisticação do ritmo
Confira a entrevista na íntegra
Brasil de Fato: Como foi sua formação musical?
Thiagson: Eu estudei música desde a adolescência e estava indo pelo caminho da música clássica. Embora meu repertório orgânico, que eu ouvia em casa, fosse música de capoeira, Frank Aguiar e Furacão 2000.
Depois que passei a estudar música, veio o repertório erudito e você vai achando que só se pode estudar isso, até porque as instituições funcionam dessa maneira, não se ensina música popular. Mas quando ensina, são músicas já elitizadas e legitimadas pelo tempo, como jazz, bossa nova e samba.
Então, eu comecei a pensar que podemos estudar o funk da mesma maneira que outros professores e músicos estudam obras contemporâneas do século XX. Eu comecei a ficar inquieto e a sentir raiva desse preconceito da universidade, gente com o olhar extremamente colonizado.
Por quê decidiu estudar o funk na academia? Fale um pouco sobre sua tese de mestrado.
Já é um consenso que o funk é uma manifestação cultural que tem seu valor social e cultural. Mas o funk é um fenômeno sonoro, principalmente sonoro. Ele é uma forma de se vestir, de viver, é muita coisa para além da música. Mas como não tem ninguém pesquisando isso?
Foi aí que eu comecei a minha pesquisa do mestrado. Aí, surgiu outro problema, não tem autores da música falando sobre o funk. Fui tentar entender esse fenômeno. Vamos pegar o Vladimir Safatle, que em 2018 falou que o funk é uma miséria musical absoluta. Não tem diferença alguma desse argumento para qualquer argumento de Facebook.
A falta de estudo e de mergulho no fenômeno me irritou bastante. Meu mestrado foi para perguntar por que ninguém estuda o funk, ou o processo que faz com que as pessoas deslegitimam o funk. Agora, eu quero investigar como os Djs produzem teoria, porque eles produzem teoria.
Eu cometi um erro, eu queria analisar o funk usando a teoria da música clássica, porque falta referencial teórico e você não sabe como abordar aquilo. A ideia é essa, como DJs produzem e discutem teoria musical, uma espécie de musicologia da produção musical. O fato de você produzir música, fará com que você lide com uma série de questões, não é só apertar um botão e colocar o som para tocar. Existe um processo de apagamento.
Quais os principais estilos do funk?
Muita gente confundiu durante muito tempo e chamava o “proibidão” de putaria. Mas, na verdade, o “proibidão” tem o compromisso de narrar a vida no crime, é uma visão de quem está do outro lado do discurso oficial, que é a vida de quem está no crime.
A “putaria” é mais dançante, que fala da sexualidade, não tem uma narrativa e as letras são curtas. Hoje em dia, principalmente em 2020 com a pandemia, o funk consciente voltou muito, com o Paulin da Capital, MC Lipe e muitos outros.
Tem o rave funk, com a batida mais eletrônica, com a marcação dos quatro tempos do funk. Ainda tem a montagem, que toca muito nos bailes. Talvez esses sejam os gêneros mais presentes nos bailes hoje. Mas na história tem muito mais, é uma lista grande.
Você escreveu um artigo analisando a música “Ô Xanaína”. Por quê ela te chamou a atenção?
Xanaína estourou no começo de 2017, fazendo muito sucesso. Eu associo [a música] com as ideias do sociólogo [Michel] Maffesoli, o que ele chama de pós-modernidade lá no começo dos anos 2000, no sentido de um homem cansado dos discursos científicos, porque são muito previsíveis.
O homem moderno seria o que tem uma fé no futuro e na ciência e o pós-moderno é o que viu tudo isso e se cansou. Nesse processo de você se entediar com essas crenças, você começa a aproveitar o presente. Então, tem uma valorização do gozo, do presente, do eterno e distante, como o Maffesoli fala.
Isso está presente no funk de forma geral e foi o que eu tentei mostrar com o MC Lan. Além de ter mostrado que a melodia está no modo lídio, que tem uma quarta aumentada na base, mas principalmente ver que há uma cultura no gozo, o gozo o tempo inteiro e todo mundo associa Xanaína com Janaína, mas depois o Lan falou que o nome é uma “xana”, que vicia tanto quanto cocaína, isso tem a ver com esse viver o presente e se entregar intensamente na vida e no trágico, numa concepção mais grega, está tudo ali, no Xanaína do MC Lan.
E você disse que “Bum Bum Tam Tam” é mais complexo que Bach. Como é isso?
Não só Bum Bum Tam Tam, mas Barões da Pisadinha também é muito mais complexo do que Bach. O segredo é: música clássica, música de concerto, é de um tempo que você não tinha nem eletricidade. Se você for no Teatro Municipal hoje, você vai que eles estão tocando sem amplificação. Se bater um apocalipse e acabar a energia elétrica, como você faz música?
Você pode pegar uma corda e esticar, algo que o Pitágoras fez há centenas de anos atrás, você pode flexionar a corda com crina de cavalo e era assim que se fazia música. A gente ignora que toda produção eletrônica já é por natureza muito mais complexa. Para você chegar nesse nível de produção que envolve os fluxos e as festas, você precisa ter muitos anos de tecnologia.
O Bum Bum Tam Tam é mais complexo por várias questões, há muitos timbres ali que quando você vai passar para a partitura, é muito difícil. É mais difícil que colocar uma música do Bach na partitura, por exemplo.
Eu vi na partitura que o Fióti colocou umas notas que o Bach jamais colocaria, ele pegou a melodia e colocou em outro contexto, deixando ela mais envolvente e dançante, e uma porrada de camadas que parecem três orquestras tocando. O segredo é esse, toda manifestação musical mais eletrônica é mais complexa.
Quais são os MCs mais sofisticados?
Tem muito MC que é sofisticado, DJs também. Muitas vezes, o DJ é quem mais cuida da parte musical, DJ Perera é um cara diferenciado. Menor da VG é outro bem diferenciado.
Embora o Livinho seja o cara famoso por uma melodia mais virtuosística, mais difícil de cantar, com agudos e tal, o Menor da VG é o cara da inventibilidade melódica, ele seria, na música clássica, o equivalente ao (Franz) Shubert, que é um grande melodista.
O funk está em várias partes, até na novela. Você acha que houve um embranquecimento do ritmo?
Sem dúvida, sem dúvida. Mas eu vou ter que discordar da frase, eu não acho que o funk esteja na novela. Tem funk na novela? Tem. Mas é o funk que toca na favela? Nem fodendo, não é. Funk de favela não toca nem em festa de playboy, o funk que toca nessas festinhas e na Malhação, não sei nem se existe aquela novela ruim, já é completamente higienizado, popularizado, que é um dos papéis que o Kondzilla faz, dá uma limpadinha no funk e joga para quem tem dinheiro para comprar isso. Desde sempre.
Uma coisa que fico puto da vida é que todo mundo coloca o DJ Marlboro como o primeiro a fazer funk [no Brasil]. O Marlboro é branco, o funk sempre foi uma música predominante preta. Aí, você coloca o Marlboro como o pai do funk no Brasil, depois de ter ganhado do Hermano Vianna o equipamento. O funk é embranquecido na própria história.
Eu estou revisando essa hegemonia do Marlboro. Que porra é essa? Como um gênero preto, tem como primeiro cara a lançar um disco de funk no Brasil um branco? Ele é privilegiado, sabemos que o racismo está aí comendo tudo, e nos anos 1980 era pior. Quem tinha a oportunidade de matar no peito e chutar no gol? DJ Marlboro.
Edição: Leandro Melito
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