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Imigrantes indocumentados: da violência na terra natal à exploração trabalhista nos EUA

Catalina, guatemalteca, trabalha das 6h da tarde às 6h da manhã, período em que sequer toma água para não ter que ir ao banheiro e tirar seu pesado uniforme
Ilka Oliva Corado
Diálogos do Sul Global
Território dos EUA

Tradução:

Compra a galinha na primeira hora da manhã, as verduras com as quais acompanhará o prato e as frutas para o ponche

Catalina emigrou para os Estados Unidos desde Totonicapán, Guatemala. De um de seus povoados dentro das montanhas, a primeira vez que usou chinelos tinha 13 anos. Os sapatos, não os conheceu até que chegou nos Estados Unidos. É a sexta de treze irmãos, seu pai todos os dias ao sair do trabalho de colhedor de café ia à cantina do povoado para pedir fiado; quando chegava o dia de pagamento já tinha todo o salário comprometido. Afogado em álcool, chegava em casa para bater em sua esposa e seus filhos. Seus irmãos foram indo, um por um, sem avisar, não suportaram tantos maus tratos nem tanta pobreza. Nenhum terminou o terceiro ano primário, porque a idade já era boa mãos para ajudar seu pai no corte de café. 

Como vendedor ambulante, ter um colchão é sinônimo luxo para imigrantes nos EUA

O dia em que chegou a sua vez ela agarrou tudo o que tinha de roupa, dois cortes e duas blusas, os meteu em um saco plástico, foi fazer a massa e deixou a bacia na entrada da cozinha, foi embora sem se despedir. Aos 14 anos já havia trabalhado na maioria das fazendas da região, colhendo café e verduras. Desta vez foi trabalhar de empregada doméstica no centro de Totonicapán, onde a trataram pior que nas fazendas. 

Pertencente à etnia quiche, não falava espanhol. Só tinha licença para sair 4 horas no domingo, de comida tinha nas três vezes tortilhas com feijão, sem direito a comer o que comiam seus empregadores. Levantava às 3h da manhã para limpar e preparar o café da manhã e ia deitar às 11h da noite. Se o patrão não bebia com seus amigos, do contrário até que terminasse que com regularidade era de madrugada. Dormia em um colchão que os cachorros usavam para dormir, em um quarto que utilizavam como bodega. Os patrões tomavam banho com água morna, no banheiro onde ela tomava banho só havia água fria. 

Catalina, guatemalteca, trabalha das 6h da tarde às 6h da manhã, período em que sequer toma água para não ter que ir ao banheiro e tirar seu pesado uniforme

Flickr

O cheiro do sangue já está impregnado em sua roupa e em sua pele, embora a lave com detergente do mais forte ou se banhe várias vezes




Violência patronal

O dia em que o patrão bateu nela com a fivela da cinta por que se queimaram as tortilhas que cozinhava com banha para a ceia dos cachorros, agarrou suas duas mudas de roupa e foi morar com Juan, um jovem de 18 anos que vendia vassouras e rodos de casa em casa, originário de San Marcos. Ele alugava um quarto em uma pensão. O conheceu perto da igreja em que ia à missa todos os domingos. Levava meses cortejando-a. Passado um mês, ficou grávida de seu primeiro filho, Juanito.

No dia de seu nascimento, Juan estava perdido de bêbado na cantina, já havia batido nela diversas vezes; quando Juanito completou seis meses bateu nela tão forte que foi para o centro de saúde e não quis denunciá-lo. Catalina agarrou seu filho e foi deixá-lo na casa de uma des suas irmãs. Então, chamou seus familiares nos Estados Unidos para que emprestassem dinheiro para ir ao Norte. Em quinze dias já estava atravessando o território mexicano no escuro de um furgão cheio de migrantes indocumentados. Chegou ao país do sonho americano quando recém completara os 17 anos. 

Com três trabalhos e alugando um espaço onde punha só sua cama em uma casa de familiares, conseguiu pagar a dívida e começou a economizar para mandar trazer Juanito. Catalina nesses anos comia só uma vez por dia, nada mais, não tinha tempo nem para comer. Limpava casas de manhã, de tarde lavava pratos em um restaurante e de noite limpava escritórios. Alguns dias mal dormia e em outros mal pregava o olho umas horas. No restaurante conheceu Shuba, um indígena de origem zapoteca originário de Juchitán, Oaxaca, separado e com três filhos em seu país. Foram viver juntos alugando um quarto no porão de uma casa. Desta vez Catalina não ficou grávida tão rápido porque sua prioridade era mandar trazer seu filho. 

Finalmente, depois de 10 anos economizando, conseguiu que Juanito estivesse com ela; teve que pagar o dobro para que o passassem pela fronteira entre Sonora e Arizona e não passasse perigo nadando rios nem atravessando desertos. No total pagou quinze mil dólares. Nesse dia foi tão feliz, ter entre seus braços um filho que a conhecia a não ser por chamadas telefônicas. Nesse mesmo ano ficou grávida de Guadalupe, lhe puseram esse nome pela Virgem de Guadalupe. Teve que deixar Lupe aos dois meses na creche para poder trabalhar. Tinha dois trabalhos, limpando casa de manhã e de tarde lavando pratos em um restaurante, enquanto Shuba conseguiu trabalho como padeiro em uma padaria polaca e também tinha um trabalho de meio dia de chofer para um casal anglo-saxão de terceira idade. 

Feliz Natal, por Frei Betto

Nos primeiros dias da pandemia, os senhores para quem Shuba trabalhava pegaram coronavírus, ambos faleceram no hospital; nesse mesmo tempo Shuba ficou doente e faleceu encerrado em seu dormitório. Assustados pelas contas de hospital que se via nas notícias que eram milionárias e pelo medo à deportação, não quis ir ao hospital, fez a quarentena no seu quarto. Catalina demorou um ano para juntar o dinheiro para cremá-lo e enviar suas cinzas a seus familiares em Oaxaca, a ajudaram com doações vários membros da igreja conhecidos do trabalho. Não puderam enviar o corpo porque por questões de segurança nacional todo aquele que morria pelo vírus tinha que ser cremado. 

Desde a morte de Shuba, Catalina trabalha de noite em um rastro, limpando o sangue. Usa um uniforme parecido ao dos astronautas e umas luvas grossas que pesam uma libra cada; as botas, três libras cada. Usa máscara e por cima um casco que mal lhe permite respirar. Entra às seis da tarde e sai às seis da manhã, não toma água depois das quatro da tarde para não ter que ir ao banheiro e tirar o uniforme, porque só lhe dão dez minutos no trabalho e esse tempo não é suficiente. Se demoram mais, lhes descontam esse tempo do pagamento. A mangueira que usa é como a dos bombeiros com uma pressão de água que se não está bem parado voa pelos ares. 

O cheiro do sangue já está impregnado em sua roupa e em sua pele, embora a lave com detergente do mais forte ou se banhe várias vezes; não sai. Deixa seus filhos dormindo no apartamento e paga à filha de uma vizinha para que durma com eles até ela chegar pela manhã. 

É 31 de dezembro, Catalina prepara a galinha, faz o ponche e dá a ceia aos seus filhos, vai para o trabalho. Uma jornada como qualquer outra, com companheiros de trabalho a maioria indocumentados, mexicanos e centro-americanos que são os que cortam a carne e limpam o sangue, com chefes europeus e negros que só revisam e anotam em um papel. Abrem-se as portas e Catalina sai à alvorada fria do inverno estadunidense, em um novo amanhecer. É primeiro de janeiro, um dia mais.

Ilka Oliva Corado | Colaboradora da Diálogos do Sul em território estadunidense.
Tradução: Beatriz Cannabrava.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Ilka Oliva Corado Nasceu em Comapa, Jutiapa, Guatemala. É imigrante indocumentada em Chicago com mestrado em discriminação e racismo, é escritora e poetisa

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