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In Dog We Trust ou Mundo Cão do Truste, Hilda Hilst

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Crônica publicada originalmente no jornal Correio Popular em 1994.

Hilda Hilst*
foto87-thumb-600x387-14902Minha vontade é a de colocar cada vez mais poesia neste meu espaço, para encher de beleza e de justa ferocidade o coração do outro, do outro que é você, leitor. Porque tudo o que me vem às mãos através dos jornais, tudo o que me vem aos olhos através da televisão, tudo o que me vem aos ouvidos através do rádio é tão pré-apocalipse, tão pútrido, tão devastador que fico me perguntando: por que ainda insistimos em colocar palavras nas páginas em branco?
Alguns amigos venezuelanos telefonam: você anda tão amarga… tão triste… Pois bem, vejamos as notícias recentes: no Rio (e dizem que ainda continua lindo) esquadrões de extermínio são contratados (por quem?) para matar sistematicamente prostitutas, débeis mentais, mendigos e supostos ladrões, meninos e adolescentes. Ouvi esta notícia na CBN, de madrugada. A miséria grassa adoidada, a crueldade também, os homens políticos continuam com suas mesmices, um dizendo ingenuamente que com uma só “penada” vai dar terra a todos, outro comendo buchada de bode, mas arrotando “tripe à la mode” e um dia desses disse que se saiu bem com a “dívida externa”, quando qualquer um bem informado sabe que nunca nos sairemos bem com a nossa dívida externa, porque (devo citar novamente os especialistas): “O FMI foi criado para institucionalizar o predomínio financeiro de Wall Street sobre o planeta inteiro quando, em fins da Segunda Guerra Mundial, o dólar inaugurou sua hegemonia como moeda internacional. Nunca foi infiel ao amo”.
A esperança para os países da América Latina é e será sempre uma grande ilusão, porque “no mundo dos grandes negócios” só pulhas e vilões é que se saem bem, e a América Latina é e sempre será um grande negócio” para todos os do “Primeiro Mundo”. Enquanto não forem feitas reformas políticas e econômicas essenciais e, principalmente, leitor, um ardente coração, um dilatar-se da alma do Homem, tudo ficará como está. Podem me chamar de louca, de fantasista, de gling-glang, de utopista, ingênua, chamem do que vocês quiserem, até de… Não sei se vocês sabem, mas “Puta” foi uma grande deusa da mitologia grega. Vem do verbo “putare”, que quer dizer podar, pôr em ordem, pensar. Era a deusa que presidia à podadura. Só depois é que a palavra degringolou na propriamente dita, e em “deputado”, “putativo” etc. Se eu, de alguma forma com os meus textos, ando ceifando vossas ilusões, é para fazer nascer em ti, leitor, o ato de pensar. Não sou deusa, não. Sou apenas poeta. Mas o poeta é aquele que é quase profeta:

Olhando o meu passeio
Há um louco sobre o muro
Balançando os pés.
Mostra-me o peito estufado de pelos
E tem entre as coxas um lixo de papeis:
— Procura Deus, senhora? Procura Deus?
E simétrico de zelos, balouçante
Dobra-se num salto e desnuda o traseiro.*

E há indivíduos e povos iludidos que ainda acreditam que o traseiro do louco possa ser o retrato do divino. “Voilà.” Ilusões de cegos e de moucos. Bom domingo, fofos.
Publicada originalmente no site do Instituto Hilda Hilst

Saiba mais sobre a Hilda Hilst

Hilda Hilst foi ficcionista, cronista, dramaturga e poeta brasileira, considerada pela crítica especializada como uma das maiores escritoras em língua portuguesa do século 20.
Hilda iniciou sua produção literária em São Paulo, com o livro de poemas Presságio (1950). Em 1965, ela se muda para Campinas e inicia a construção da Casa do Sol, para ser um porto seguro de sua criação. É na Casa do Sol que Hilda dedica-se exclusivamente ao trabalho literário, realizando ali mais de 80% de sua obra. Em 1967, ela estreia na dramaturgia e em 1970, na ficção, com Fluxo floema.
Dona de uma linguagem inovadora e abrangente, Hilda produziu mais de quarenta títulos, entre poesia, teatro e ficção, e escreveu por quase 50 anos, recebendo importantes prêmios literários do Brasil. Criadora de textos em que Atemporalidade, Real e Imaginário se fundem, e os personagens mergulham no intenso questionamento dos significados, buscando compreensão e encontro do essencial, Hilda retrata sem cessar a frágil e surpreendente condição humana.
Muitos de seus livros tiveram as edições originais esgotadas. A partir dos anos 2000, a Globo Livros reeditou sua obra completa, e em 2016 os direitos de publicação passaram para a Companhia das Letras. Hilda já ganhou traduções em países como Itália, França, Portugal, Alemanha, Estados Unidos, Canadá, Argentina.
O acervo pessoal deixado pela escritora se divide, hoje, entre a Sala de Memória Casa do Sol — onde há, inclusive, produções inéditas — e o Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio da Universidade Estadual de Campinas (Cedae-Unicamp).
(1930-2004)


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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