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Indo-Pacífico: por que região estratégica à China está na mira dos tentáculos dos EUA

Segundo o professor da UERJ Elias Jabbour, presença de Washington na área já se configura como um problema de segurança
Redação Sputnik Brasil
Sputnik Brasil
Rio de Janeiro (RJ)

Tradução:

Há intelectuais que já enxergam o declínio do império norte-americano com base na experiência de seu antecessor hegemônico: o Reino Unido do período entre guerras, polvilhado por conflitos bélicos, pandemia (da gripe espanhola) e crises econômicas na primeira metade do século XX — tal como hoje se desenha no horizonte dos EUA.

É possível adicionar o fator medo a essa equação, já que a ascensão da China como potência regional no Indo-Pacífico e mundial preocupa a cúpula do governo norte-americano.

Na tentativa de frear o dragão chinês, os EUA impuseram restrições ao acesso da China à tecnologia de semicondutores do país, acrescentando medidas destinadas a impedir o esforço de Pequim para desenvolver sua própria indústria de chips e avançar as suas capacidades militares.

A constante presença militar na região do Indo-Pacífico também é um dos tentáculos geopolíticos do governo de Joe Biden, com o Comando Indo-Pacífico dos EUA (Usindopacom, no acrônimo em inglês) realizando ações de treinamento militar constantemente com Japão, Indonésia, Coreia do Sul e outras forças aliadas.

Caças F-22 Raptor da Força Aérea dos EUA sobrevoam o oceano Pacífico em 20 de dezembro de 2022 (Foto: Forças Aéreas dos EUA / Tylir Meyer)

A ação fica cristalina no compilado de estratégias para a região lançado pelo governo Biden em fevereiro, ante China e Rússia se impondo como polos de poder mundial.

Com as medidas de restrição e manobras de defesa, Washington mira o setor tecnológico chinês e o militar, já que exércitos ao redor do mundo dependem de tecnologia de ponta.

Porém a agenda norte-americana encontra um entrave substancial: países do Indo-Pacífico que cultivam boas relações econômicas com a China e temem o poderio militar de Pequim.

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Para esses países, aderir às ações de Washington pode significar a perda de receitas em exportações para a China e de vantagens no âmbito da Nova Rota da Seda e em negociações na Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN, na sigla em inglês).

O montante em jogo é alto: Japão e Coreia do Sul faturaram, somente em 2020, mais de US$ 130 bilhões (R$ 683 bilhões) em exportações para a China.

Além disso, o crescente poderio militar da China pode punir países da região, que são essencialmente marítimos, bloqueando acesso a territórios.


O que os avanços dos EUA sobre aliados chineses indicam?

Diego Pautasso, doutor em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor do livro “China e Rússia no Pós-Guerra Fria”, disse à Sputnik Brasil que o que está em jogo nessa tentativa dos Estados Unidos para isolar Pequim na região é a transição sistêmica.

“Os Estados Unidos sabem que a China é o principal polo de poder desafiante, que é um país que está erodindo as bases da hegemonia americana, e, portanto, os Estados Unidos traçam uma estratégia para tentar interditar, dificultar e criar graves problemas ao desenvolvimento e à ascensão geopolítica da China”, apontou.

Segundo Pautasso, na verdade, a política de contenção dos Estados Unidos à China é o núcleo da rivalidade sino-estadunidense que, por sua vez, é o núcleo da transição de poder no mundo.

A queda de braço afeta o sistema internacional como um todo e, obviamente, tem desdobramentos em toda a região da bacia do Pacífico e do Indo-Pacífico de uma maneira geral — considerando que o eixo da economia mundial se deslocou para lá, notou ele. “É evidente que isso impacta o conjunto das relações sistêmicas”, pontuou.

Fuzileiros navais dos EUA executam exercícios militares com equipe de apoio na base Camp Hansen, em Okinawa. Japão, 20 de dezembro de 2022 (Foto: Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA / Bridgette Rodriguez)


É possível isolar a China na região?

Pautasso disse que os Estados Unidos buscam reeditar a lógica da Guerra Fria para conter a China.

“Qual o problema? O problema é que a China é muito diferente da União Soviética em vários aspectos. Por isso a nova Guerra Fria corre o risco de naufragar. Algumas diferenças substantivas: primeiro é que a União Soviética só conseguia ombrear e rivalizar com os Estados Unidos no campo estratégico-militar, em algumas tecnologias estratégicas, por exemplo a missilística e a aeroespacial. Já a China não. A China não só rivaliza como está à frente em um conjunto muito significativo de tecnologias: energia solar, motores elétricos, baterias, supercomputadores, produção de eletroeletrônicos. Há um conjunto muito grande de tecnologias em que a China está à frente.”

O segundo ponto, prosseguiu ele, é que a União Soviética estava em grande medida circunscrita a um bloco, no qual havia uma identidade socialista. Diferentemente da atual China, que é o maior parceiro comercial de 140 países.

Segundo o professor da UERJ Elias Jabbour, presença de Washington na área já se configura como um problema de segurança

U.S. Navy – Flickr
Elias Jabbour: "Os americanos não têm nada a oferecer ao mundo faz tempo"

O professor explicou que a União Soviética não tinha condição de bancar o sistema do ponto de vista do financiamento, das relações comerciais, da criação de iniciativas político-diplomáticas e comerciais que transbordassem a sua esfera de influência para além do bloco estritamente socialista. A China, por sua vez, faz isso em escala global.

“O produto interno bruto [PIB] chinês já é superior em poder de qualidade de compra, deve ultrapassar [o PIB dos EUA] em dólar, e a projeção para as próximas décadas é que venha a ser o dobro do PIB estadunidense. Então isso tem um impacto geopolítico extremamente grande. Os aliados americanos da Guerra Fria praticamente não tinham relações com a União Soviética, sobretudo os principais. Hoje os principais aliados americanos, inclusive na Ásia, inclusive no Indo-Pacífico (Japão, Coreia do Sul, Índia, Austrália, entre outros), têm nas relações com a China o seu principal mercado”, elencou.

Fuzileiros navais dos EUA em exercício militar simulando ataque de helicóptero, em Okinawa, no Japão, em 13 de dezembro de 2022 (Foto: Comando Indo-Pacífico dos EUA / William Wallace)

Na época da Guerra Fria, disse Pautasso, os Estados Unidos ofereciam toda a estrutura de “estabilidade do sistema”: ofereciam uma moeda, um financiamento, o seu mercado e um paradigma econômico e tecnológico.

Com isso, conseguiam fazer com que os países gravitassem em torno do polo hegemônico que era o Atlântico Norte, enfim, os Estados Unidos.

“Hoje o que os Estados Unidos têm a oferecer é basicamente cooperação militar e uma estratégia securitária e de produção de rivalidades. Só que sem a contrapartida econômica, comercial e tecnológica, que hoje é oferecida pela China aos países vizinhos e aos países do mundo de maneira geral. Portanto essa estratégia de contenção, de tentativa de interditar uma economia das dimensões da economia chinesa é insuficiente, porque é como tentar agarrar uma criança e tentar agarrar uma bola grande. Não há capacidade para isso. A economia chinesa transborda por todos os lados. E pior: isso vai precipitar o desenvolvimento da autossuficiência chinesa em setores sensíveis, entre eles o setor de semicondutores.”

Caça F-16 Fighting Falcon, da Força Aérea dos EUA, durante exercício militar na Coreia do Sul em 20 de dezembro de 2022 (Foto: Comando Indo-Pacífico dos EUA / Skyler Combs)


A presença como um problema

Elias Jabbour, professor de economia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor do livro “China: o Socialismo do Século XXI”, lançado neste ano, afirmou que a estabilidade da região do Indo-Pacífico está em xeque.

A tentativa de isolar a China da Coreia, Japão e outros países dentro daquela região da Ásia, argumentou Jabbour, vai provocar instabilidade com propósito único de tentar minar as possibilidades de a China alcançar a soberania tecnológica nas infraestruturas de semicondutores.

“A própria presença dos Estados Unidos na região hoje é um problema de segurança na região. Se observar o mapa da China, por exemplo, a China está cercada de bases militares. Os americanos fazem grandes lançamentos de Taiwan para demonstrar que elas são águas internacionais”, diz o professor da UERJ.

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Isso vem provocando uma escalada que, nos últimos dias, levou Pequim a fazer uma grande operação de “invasão” do espaço aéreo de Taiwan.

“Invasão entre aspas porque Taiwan é parte da China. Então hoje, em certa medida, ao lado da Ucrânia e do conflito ucraniano, a região mais perigosa do mundo é o estreito de Taiwan. São os três pontos do mundo hoje […], como chamaria o velho marxista, onde a luta de classes atua em sua maior forma, que é onde a luta de imperialismo e povos da periferia se dá de forma mais intensa. Então a presença americana já é um problema de segurança, de política, de economia. Os EUA estão querendo encurralar a Coreia do Sul, só que a maior parte das exportações da Coreia do Sul hoje são para a China”, observou.

Aviões da Marinha dos EUA voam em esquadrão com caças 16s das Forças Armadas da Indonésia, em 18 de dezembro de 2022 (Foto: Comando Indo-Pacífico dos EUA / Chad J. Pulliam)

Perguntado sobre se há a possibilidade de isolar a China na região, Jabbour deu uma resposta categórica: “Não”.

Isso porque todos os países ali dependem da China de alguma maneira no mercado de exportação e importação.

“Há muitas empresas chinesas migrando para países como Bangladesh, Vietnã, Laos e outros países. E todo mundo ali tem a China como seu principal mercado doméstico. É impossível isolar a China do mundo porque a China hoje é a principal parceira comercial de 140 países do mundo. Então é impossível isolar a China do seu entorno. É uma tarefa hercúlea”, ressaltou.

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“O que os americanos têm a oferecer, por exemplo, àqueles países como Camboja e Laos, que hoje recebem grandes investimentos chineses em infraestruturas? O que os americanos podem entregar a Filipinas e Indonésia?”, questionou. “Eu não vejo nada. A não ser o discurso de instituições, democracia, como foi na Cúpula das Américas, em que os países latino-americanos ficaram ansiosos com um possível discurso do Biden oferecendo um grande pacote de investimentos em infraestruturas na região e o que veio foi discurso de democracia e instituições. Enfim, os americanos não têm nada a oferecer ao mundo faz tempo, não é? Cá entre nós”, concluiu.

Cúter da Guarda Costeira dos EUA atracado em Sydney, na Austrália, em 14 de dezembro de 2022 (Foto: Força Aérea dos EUA / Chad J. Pulliam)

Redação | Sputnik Brasil


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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