Acostumados como estamos a viver a vida contemplando-a através das telas, conseguimos criar eficazes anticorpos contra a dor, mas sobretudo contra a necessidade de envolver-nos naquilo capaz de transtornar nosso espaço pessoal.
Já somos mestres no truque de abstrair quanto possa destruir essa ilusão de segurança que nos permite ir por caminhos pavimentados, onde tocamos a realidade tangencialmente graças ao fato de nos ser apresentada fracionada em cápsulas fáceis de digerir.
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A tragédia alheia, então, pode ser observada sem esse incômodo prurido de culpa – que se fosse mais potente – nos obrigaria a agir.
Este sistema, desenhado para dar-nos a ilusão de participar ativamente, utiliza os grandes meios de comunicação, que têm desempenhado um papel fundamental por sua capacidade de entrar nas nossas casas, o espaço pessoal mais íntimo e seguro.
Durante a segunda metade do século passado, a cobertura midiática das guerras e invasões – nas quais começaram ser utilizados recursos cinematográficos de enorme impacto visual e psicológico – teve o efeito de converter a destruição e a morte de outros em um espetáculo capaz de absorver nossa atenção sem afetar de maneira significativa nossos sentimentos, nem transtornar nosso sentido da realidade.
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E ainda mais: a abundância de imagens e informação editada com o propósito de nos levar a tomar partido, sem nos dar a possibilidade de escavar mais profundamente na busca da verdade, converteu-nos em meros espectadores.
Ilustração: TT Catalão
A abundância de imagens e informação editada com o propósito de nos levar a tomar partido
Hoje seguimos a tendência marcada desde então; e esse hábito de observar sem sentir a obrigação de participar ativamente, potencializou-se de maneira importante com o uso das redes sociais, a partir das quais mostramos a um público desconhecido uma faceta polida e maquiada de nossa verdadeira personalidade.
Nelas somos revolucionários, sem ser. Nelas tomamos a liberdade de opinar sem a responsabilidade de responder por isso perante ninguém, porque afinal de contas “são meus espaços e ponho neles tudo o que tenho vontade porque tenho o direito a gozar minha liberdade de expressão”; e graças a esse truque mágico das plataforma digitais, nos erigimos como participantes legítimos dos acontecimentos que estremecem o mundo.
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No entanto, há aqueles que o fazem; participam ativamente e defendem seus direitos saindo às ruas para enfrentar a repressão exigindo mudanças. São outros – não nós – a quem não lhes bastam as redes sociais como forma de protesto, porque sabem que desde aí nada mudará, porque sabem reconhecer um paliativo mental e não estão dispostos a se conformar com isso. Outros que vemos cair aos montes, asfixiados pelos gases e vítimas de toda classe de abusos por uma única razão: enfrentar um sistema cruel, desumano e depredador criado para o benefício de uns em desmedro das amplas maiorias cidadãs.
Mas eles, ao fim e ao cabo, formam parte do espetáculo que outros consomem avidamente mesmo quando padecem dos mesmos males. Talvez seja o momento de envolver-se e lutar por valores tão elementares como o império da justiça e o respeito pela vida humana.
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Lutar para não ver na tela a agonia de uma criança migrante, e desviar o olhar. Lutar para sair da segurança da palavra e fazer um pacto com a consciência; assumir a autoridade de todo cidadão diante da dor dos demais, essa dor que hoje não dói porque se matiza com as cores de um filme de ficção do qual não somos – nem queremos ser – protagonistas.
O espetáculo não basta. É imperativo participar e sentir a dor de outros.
*Carolina Vásquez Araya, Colaboradora de Diálogos do Sul da Cidade da Guatemala
**Tradução: Beatriz Cannabrava
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