Desde o século XIX se acreditou, por décadas, que o número de doentes numa epidemia seguia uma distribuição normal, e que a diminuição do número de enfermos e mortos, depois de atingir um máximo, era devido a uma perda da infectividade do agente patogênico. Henri Poincaré, entretanto, já alertava que “o problema com a distribuição normal é que os matemáticos pensam que é uma lei da natureza enquanto os cientistas da natureza acham que é uma lei dos matemáticos”. Para muitas epidemias demonstrou-se, posteriormente, que a infectividade do agente patogénico varia pouco durante a epidemia. Este fato foi consensual somente depois da segunda guerra mundial. Imunidade, sistema imune, resistência, intervenção não farmacêutica (ou ação política), imunidade de rebanho bem como o efeito da vacinação numa pandemia são conceitos relativamente recentes.
Desde que a expressão “imunidade de rebanho” é hoje muito mencionada, e pouco esclarecida, decidimos enfocar este conceito pois, numa pandemia como a do Covid-19 que enfrentamos hoje, é mister que os termos usados nos debates tenham um significado consensual.
Prefeitura de Cachoeiro
Imunidade de rebanho (Q), ou imunidade coletiva, é um conceito aplicável para doenças transmitidas de uma pessoa para outra. Q descreve uma situação onde a cadeia de infecção é bloqueada, isto é a doença para de se alastrar, pois uma porcentagem de indivíduos, numa população definida, adquire imunidade a essa infecção e assim protege os que ainda não tem imunidade de serem infectados. Esta imunidade, ou resistência à infecção, pode ser adquirida pelos indivíduos que se recuperaram, após sofrer a doença, ou foram vacinados contra o agente causador. Em princípio, um indivíduo imune não se re-infecta após um período que varia com a natureza do agente infectante. Quando quantidade suficiente de pessoas tem imunidade para atingir a imunidade de rebanho, a propagação da doença diminui, não porque a infectividade do agente patogênico tenha diminuído, mas porque diminui a possibilidade de uma pessoa contagiável entrar em contato com uma pessoa infectada. O conceito fundamental a ser compreendido é que a população imune serve como barreira que impede que um transmissor da doença o infecte.
A definição aritmética de Q é a seguinte:
R0, o “número de reprodução” de uma doença contagiosa, representa o número médio de pessoas que são infectadas por um único doente, antes deste se recuperar e se tornar imune, ou morrer. O conceito R0 tem origem na Demografia, onde expressa o número médio de filhos nascidos de uma única mulher numa população definida e se conhece como “número básico de reprodução”.
Em epidemiologia o valor de R0, para uma doença nova é de difícil definição absoluta, pois depende do tempo da doença ativa, do período infectivo do doente, do grau de interação social, entre outros. O valor de R0 adquire mais consistência quanto mais se conhece sobre a doença, a epidemia causada por esse agente, o local onde acontece, e as características da população afetada, como mobilidade, densidade populacional e condição social. Para a covid-19 hoje se estima que R0 é 2,5 é, portanto 60% da população deveria estar imune para atingir a condição de imunidade de rebanho (Q = 60, ver equação 1)
Se uma fração da população (v) é protegida da infecção, vacinada com vacina protetora, o valor efetivo de R0 deve se modificar (Rv), já que destarte uma fração da população é imune. Nesta condição um novo valor de Q (Qv)deve ser calculado, pois o número de doentes curados (imunes) necessários para proteger a população toda será necessariamente menor.
E, portanto:
Tomando, de novo, a covid-19 como exemplo, se 50% da população fosse vacinada, v seria 0,5, Rv = 1,25 e Qv = 20. Portanto se 20% da população adquirisse imunidade por ter se curado da doença, se alcançaria a imunidade de rebanho e a doença não mais se alastrava.
É necessário também refletir, no caso concreto qual o significado destes números para o Brasil. Atingir 60% da população imune por ter se curado de covid-19 implica que, no país, com uma população de 210 milhões de habitantes, teríamos entre 1 e 2 milhões de mortes causadas pelo sars-CoV-2, pois a mortalidade por essa doença varia entre 1 e 2% dos infectados. Se metade da população estivesse vacinada e precisasse de 20% de infectados curados, o número de mortes esperado seria entre 210 e 420 mil mortos.
Esses números assustadores e trágicos somente podem diminuir por uma ação política que implemente proteção individual e distanciamento social até que uma cobertura vacinal de, pelo menos 60% da população, garanta um efeito manada com um mínimo de mortes adicionais.
Abaixo apresentamos alguns exemplos onde não se considera a evolução temporal:
Veja também