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Julius R. Nyerere: Democracia requer muito mais que voto universal e não floresce na miséria

Artigo do ex-presidente da Tanzânia foi publicado na edição de fevereiro de 1993 da Revista Cadernos do Terceiro Mundo
Julius R. Nyerere
Diálogos do Sul Global
Dodoma

Tradução:

O texto que vocês lerão a seguir é de autoria de Julius R. Nyerere, ex-presidente da Tanzânia, e foi publicado na edição de fevereiro de 1993 da Revista Cadernos do Terceiro Mundo. Apesar de ter sido escrito há quase 30 anos, suas palavras tornam-se atemporais com sua tese de que é impossível uma democracia ser consolidada em países ou regiões onde a pobreza e a miséria predominam [Nota da edição. Por Gabriel Farias].

A definição de democracia mais sucinta — e acredito que a mais aceita universalmente — é a formulada por Abraham Lincoln: um governo do povo, para o povo e pelo povo. 

Sob essa definição, a democracia se assenta em dois princípios. O primeiro é que todos os seres humanos — todos os povos — têm os mesmos direitos e deveres na sociedade. E o segundo é que a sociedade está constituída pelo conjunto das pessoas, sem nenhuma exclusão. Se um destes princípios é relegado pelas estruturas de governo, então não há nem pode haver democracia. A definição de Lincoln, no entanto, nada diz sobre como devem se organizar os povos para exercer seu próprio governo. Eu penso que talvez o povo de cada país deveria determinar por si mesmo como pôr em prática estes princípios, de acordo com suas próprias circunstâncias. 

Artigo do ex-presidente da Tanzânia foi publicado na edição de fevereiro de 1993 da Revista Cadernos do Terceiro Mundo

Acervo cadernos do terceiro mundo
Democracia e fome não podem coexistir segundo o autor Julius R. Nyerere

A verdade é que a democracia requer muito mais que o sufrágio universal, não importando se há ou não numerosos partidos 

A democracia exige garantias para a vida e para a -liberdade das pessoas. Não tem sentido falar de democracia quando grupos rivais – em nossos dias com armas modernas – lutam pelo poder dentro de um Estado. O que significa a democracia para uma mulher em Mogadíscio, capital da Somália, que não pode socorrer seu filho à beira da morte por desnutrição porque pode ser ferida ou morta no caminho? 

A democracia requer a aceitação geral de leis que devem ser cumpridas. Para os camponeses e os trabalhadores, qualquer sistema que garanta o respeito às leis é quase sempre melhor que um onde não impera a lei. Mas para que haja democracia, o estado de direito deve estar subordinado à justiça e não por cima dela. As leis devem vigorar tanto para os ricos quanto para os pobres, para as pessoas instruídas ou não.

Em particular, a democracia requer liberdade de culto. Algumas pessoas podem ser forçadas a obedecer os ritos e as formas externas de uma religião na qual não acreditam. Mas outras – como demonstra a História – suportarão torturas ou darão a vida para não renunciar a suas crenças.

A democracia requer também um grau razoável de estabilidade social. Uma ampla maioria da população deve sentir-se satisfeita com as estruturas e a organização da sociedade, e deve contar com a possibilidade de modificá-las por meios pacíficos, já que estabilidade não é o mesmo que imobilismo.

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A democracia exige o acesso generalizado a um nível básico de alimentação, vestuário e moradia e que – pelo menos quando este nível é muito baixo – se limitem rigidamente as desigualdades econômicas na sociedade. A pobreza compartilhada pode ser um insulto ao potencial humano, mas a pobreza absoluta em meio à abundância não é compatível com a liberdade política. 

A primeira prioridade de um faminto é conseguir comida para ele e seus filhos. Para não morrer de fome, mentirá, roubará e também votará em qualquer candidato que lhe dê alimentos hoje, prometendo-lhe outros mais amanhã. Aceitará de bom grado qualquer militar golpista ou qualquer ditador que pareça ter a explicação e a solução para seus males. 

E embora tra te da liberdade, esta lista de requisitos omite referências aos limites inevitáveis à liberdade em toda sociedade, já que a liberdade política não admite que cada um faça tudo o que quiser. A liberdade deve estar restrita pelos deveres e pelas necessidades da sociedade em seu conjunto.

Uma coisa, porém, está clara: a organização de uma democracia política – seus mecanismos, estruturas e convenções – deve estar determinada pelas condições históricas, geográficas, culturais e econômicas específicas da sociedade em que opera. Não só não tem sentido, como além disso se torna perigoso para a democracia, que as nações mais ricas exerçam pressão sobre os governos de nações subdesenvolvidas, para que adotem um tipo particular de sistema democrático. 

E é particularmente imoral que os líderes do Norte digam aos países do Sul: “Sejam democráticos, ouçam a  voz do povo, sejam pluralistas, permitam a liberdade de imprensa”, e ao mesmo tempo os pressionem a adotar poli ticas extremamente impopulares (que eles mesmo elaboram) de “ajustes estruturais” que submetem os povos do Sul a uma economia internacional injusta e controlada pelo Norte para servir a seus próprios interesses.

Isto nos leva a pensar que outra condição para a democracia seja um pouco de honestidade. Em último lugar, deve haver uma política a nível internacional para que ela possa florescer e subsistir, em suas variadas formas, dentro de cada nação. E em todos os casos, a democracia deve abranger tanto o controle dos fatores econômicos como dos políticos. ‘’


Texto publicado originalmente na página Revista Cadernos do Terceiro Mundo – Acervo Digitalizado

‘’A democracia não floresce na miséria’’ por Julius R. Nyerere .

CADERNOS DO TERCEIRO MUNDO. Rio de Janeiro, ano 15, n.158, fev. 1993. 44 p.

Link: http://ctm.im.ufrrj.br/…/49827073472276114009107624…/…


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Julius R. Nyerere

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