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ToggleNo dia 12 de maio, a Justiça Federal suspendeu a remoção dos quilombolas de Alcântara (Maranhão) que vivem em área vizinha ao Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) da Força Aérea Brasileira (FAB). O ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI), general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, havia assinado em 26 de março, em meio à pandemia do coronavírus, uma resolução que previa a remoção de famílias quilombolas para expansão da base espacial.
Na data em que foi publicada a resolução, o mundo atingia a cifra de meio milhão de pessoas infectadas pelo coronavírus. No Brasil, havia 2.988 casos confirmados e 77 mortes. O próprio general Heleno editou a medida enquanto estava de quarentena, pois foi contaminado em visita aos Estados Unidos em março.
De lá para cá se passaram dois meses e o Brasil contabilizava nesta quinta-feira (21) com 310.087 casos confirmados e 20.047 mortes pela Covid-19. Alcântara não faz parte das quatro cidades do Maranhão com lockdown (bloqueio total) decretado pelo governador Flávio Dino (PC do B) para diminuir a disseminação do vírus na capital São Luís e nos municípios da região metropolitana. O estado tem 16.058 casos da doença e 663 mortos.
A decisão do juiz federal Ricardo Felipe Rodrigues Macieira de suspender a remoção dos quilombolas até que seja feita a consulta foi vista como uma “pequena vitória, mediante tudo que temos que enfrentar ainda nessa luta, mas bastante significativa pelo momento em que vivemos” por Dorinete Serejo Morais, uma das coordenadoras do Movimento de Atingidos pela Base Espacial (Mabe). “Pequenas decisões como essa nos permitem respirar um pouco e avaliar os próximos passos serem dados”, diz ela.
Desde 2008, as comunidades quilombolas de Alcântara possuem o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) assinado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que aponta que o território tradicional possui 78,1 mil hectares, mas o processo de titulação não foi concluído durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Para os quilombolas, a resolução do general Heleno não observava os preceitos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário e que foi ratificada pelo Congresso. Pela convenção, povos tradicionais devem ser consultados, de maneira livre, prévia e informada, sobre obras que impactem em seus territórios.
O juiz federal Ricardo Felipe Rodrigues, que deu liminar em favor da ação popular mobilizada por organizações quilombolas de Alcântara e pelo MPF-Maranhão, entende que o Brasil deve respeitar a Convenção 169 e o governo federal precisa realizar uma consulta às comunidades.
Foto: Eduardo Queiroz/Amazônia Real
Imagem dos pescadores da comunidade de Canelatiua
Ameaças de remoção e pandemia
Dorinete Morais acredita que a portaria do governo Bolsonaro “foi usada de muita má-fé”, já que por conta das recomendações de distanciamento social “não estamos nem conseguindo sair de casa, para visitar todas as comunidades, e explicar a situação para todos”. Ou seja, a estratégia do governo foi vista como tentativa de desmobilizar os quilombolas nesse momento de fragilidade da população.
Com o Brasil passando por dificuldades na luta contra o novo coronavírus, a resolução do GSI pegou os quilombolas de surpresa, somando-se às incertezas sanitárias e financeiras que atinge a todos. Dorinete afirma que “nunca nos falaram quais serão realmente as comunidades afetadas”. A estimativa do Mabe, feita com base na área informada na resolução, é a de que cerca de 700 famílias seriam removidas.
A resolução do governo federal previa que fosse realizada uma consulta às comunidades quilombolas, mas também já apresentava os detalhes de como seria feita a remoção. Caberia ao Ministério da Defesa, “providenciar, por meio do Comando da Aeronáutica, a execução das mudanças das famílias realocadas”, e ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento “elaborar e custear, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, projeto de reassentamento com base no mapeamento fundiário e no cadastramento socioeconômico”.
Histórico de articulação política
Em março de 2019, o Brasil assinou Acordo de Salvaguarda Tecnológica (AST) com os Estados Unidos para inserir o País no mercado de lançamentos espaciais. Embora tenha sido ratificado pelo Congresso, o AST nunca esteve atrelado a uma consulta sobre o que pensam as comunidades quilombolas.
“A gente aqui já esperava algo nesse sentido. Tem a ver com a votação de como o acordo de salvaguarda foi conduzido tanto em nível federal, como estadual e do município de Alcântara. Houve um alinhamento da AST”, afirma a liderança quilombola, o antropólogo Davi Pereira Júnior.
Pereira Júnior tem mestrado pela Universidade Federal da Bahia e em estudos latino-americanos e diáspora africana pela Universidade de Texas Austin. Ele atua como assessor voluntário no Mabe e em outras associações quilombolas da região. “Antes de aprovar este acordo era necessário um dispositivo de proteção do território. Mas eles diziam que era uma discussão para depois”, afirma.
Pela dimensão da expansão na base espacial de Alcântara, prevista em 12 mil hectares, o deslocamento de comunidades seria inevitável. Mas o anúncio da resolução em meio à pandemia do coronavírus surpreendeu o antropólogo. “Isso mostra o quanto esse governo é desumano. É racista e desumano”, diz o antropólogo.
Para Pereira Júnior, um novo deslocamento forçado de quilombolas em Alcântara é o prenúncio de um genocídio. “Vai inviabilizar 20 mil hectares e impedir que as pessoas pescam e plantem”, alertou. Ele faz referência também a outro deslocamento feito entre 1986 e 1988, quando 312 famílias de 32 comunidades quilombolas foram realocadas para o interior, abrindo espaço para criação do Centro Espacial de Alcântara. O novo local se mostrou impróprio para agricultura imediata. Com a atividade pesqueira dificultada pela distância, os deslocados enfrentaram muitas dificuldades na época. As famílias que não aceitaram a remoção foram, segundo Davi, viver na periferia de São Luís ou mesmo na de Alcântara.
“O governo Flávio Dino foi o articulador da aprovação da AST. Negociando com os deputados tanto da situação como da oposição o voto a favor da AST. O governo Flávio Dino articulou a bancada maranhense [na Câmara dos Deputados] a favor”, acusa ainda o quilombola.
Contrário à remoção dos quilombolas
Questionado pela reportagem da Amazônia Real, o governo do Maranhão respondeu ser “contrário ao remanejamento compulsório de qualquer família, por não ser necessário ao funcionamento da base existente”. A nota, enviada pela Assessoria de Imprensa, faz uma reflexão sobre os problemas gerados pela remoção de pessoas no passado, que ainda não tiveram solução e cobra do governo federal o reconhecimento das comunidades quilombolas.
“É inaceitável repetir equívocos do passado, em eventual novo remanejamento, quando sequer foram solucionados os passivos de implantação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), que vem desde os anos 1980”, prossegue a nota, que solicita que o governo federal reconheça e respeite o direito das comunidades quilombolas.
Para o governo de Flávio Dino, é possível investir em tecnologias que permitam a convivência pacífica, colaborativa e contributiva entre os quilombolas e o programa aeroespacial brasileiro. E, por fim, afirma que a resolução do governo Bolsonaro “além de ser errada, veio em momento totalmente errado”.
Em nota enviada pela assessoria de imprensa do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI), datada de 26 de março, portanto antes da liminar judicial, o general Augusto Heleno Pereira afirmava que a resolução “não desencadeia ações, apenas organiza e orienta o planejamento dessas” e que “não há prazo de aplicação” para elas. Segundo o ministro, o diálogo com as comunidades já vinha ocorrendo, o que é negado pela liderança do Mabe, e respondeu laconicamente sobre alternativas para a expansão do centro espacial sem a remoção das comunidades. “Não se pode especular sobre alternativas à questão, no momento”.
Fábio Zuker, jornalista
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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