Conteúdo da página
TogglePoder de cura da cloroquina. Caixões vazios. Vírus chinês. As fake news, que foram importante instrumento da campanha eleitoral de 2018, em tempos de pandemia, são ainda mais fatais. Elas criam um ambiente que dificulta o discernimento entre fatos e opiniões, além de permanecerem na memória de quem as lê, mesmo após desmentidas.
O poder prejudicial das fake news
O combate à desinformação tem ganhado cada vez mais relevância. Pelo volume e alcance das mensagens, ficou claro que existe uma máquina clandestina, financiada ilegalmente, de fabricação e distribuição de notícias falsas nas mãos do bolsonarismo que precisa ser desmontada. E, agora, durante a pandemia do coronavírus, vemos um efeito ainda mais deletério, na saúde pública, prejudicando o isolamento social e combate correto à doença.
APOIE A DIÁLOGOS
Quando compartilhadas por Whatsapp, as fake news adquirem um efeito ainda mais nocivo, uma vez que não se consegue saber a origem nem o percurso, resultando que o contraditório não tem condições de se expressar em toda a cadeia de transmissão, apenas numa pequena parte dela, assim como os autores não podem ser identificados.
Reprodução: wallpaperflare
As fake news foram um importante instrumento da campanha eleitoral de 2018
A sociedade começa, então, a se debruçar sobre como frear essa epidemia de desinformação. Em um país onde 6 em cada 10 dos brasileiros não conseguem reconhecer uma notícia falsa (Pesquisa Kaspersky), a criação de uma lei contra as fake news é apoiada por 9 entre 10 brasileiros (Pesquisa Ibope).
Uma solução a toque de caixa
O Senado está pressionado para dar uma resposta rápida a essa demanda, que está materializada no Projeto de Lei 2630, deste ano, que institui a chamada Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet e tem como autor o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e como relator o senador Ângelo Coronel (PSD-BA).
O projeto já tem mais de 100 emendas, já teve a votação adiada três vezes por falta de acúmulo diante de um tema de resolução tão complexa e tem sido marcado por uma condução atropelada. Um novo texto está sendo apresentado hoje, quarta-feira (24), para ser votado já amanhã no Senado. Se aprovado, deverá seguir para a Câmara.
RECEBA NOSSO BOLETIM
Com as modificações que já sofreu, o projeto retirou alguns trechos problemáticos, como a parte em que incumbia às plataformas a identificação e rotulação das fake news, o que poderia levar conteúdos legítimos a serem erroneamente rotulados como falsos por precaução.
Mas para nada as alterações estão garantidas, haja vista a retirada recente de um ponto que era positivo, a exigência de transparência nos critérios de moderação de conteúdo para com os usuários, que obrigariam as plataformas a oferecer a possibilidade do usuário se defender.
O que vemos, globalmente, é uma proposta que acarreta diversos problemas graves. O usuário comum de Internet ficou no centro da vigilância e da criminalização. A Coalizão Direitos na Rede, que reúne cerca de 40 organizações acadêmicas e da sociedade civil que atuam em defesa dos direitos digitais, listou os dez principais problemas do Projeto de Lei:
10 motivos para ser contra o projeto
Coalizão Direitos na Rede
-
O projeto cria um sistema de vigilância de todos os usuários, ao obrigar a apresentação de documentos de identificação para se usar redes sociais e aplicativos de mensagem. Com o objetivo de combater ilícitos, o PL inverte o dispositivo constitucional da presunção de inocência, tratando todos os usuários como criminosos em potencial.
-
O relatório vincula ainda o uso desses serviços à posse de um número de celular ativo. Ou seja, quem não tiver uma conta de telefone não vai poder nem utilizar uma rede como Facebook ou Youtube no seu computador pessoal.
-
Embora o relator manifeste críticas às plataformas digitais pela falta de atitude em relação à desinformação, seu texto entrega dados fundamentais das pessoas a essas empresas, já conhecidos pelo abuso na exploração destas informações e pela falta de segurança na sua guarda.
-
O projeto também amplia a vigilância das plataformas e autoridades sobre as pessoas ao obrigar a guarda de dados de compartilhamentos de mensagem – a chamada rastreabilidade. Com isso, todas as pessoas que se insiram nas cadeias de compartilhamento de conteúdos, como jornalistas, pesquisadores, parlamentares e até cidadãos que repassem determinada postagem para denunciá-la terão que provar, a posteriori, sua não relação com as indústrias de disseminação de desinformação que o PL pretende atingir.
-
Ao mesmo tempo, inclui o conceito de “comunicação interpessoal” no PL, que pode impactar todo tipo de comunicação na Internet, inclusive e-mails, aplicativos de chamadas virtuais, de encontros e qualquer tipo de app em que pessoas interajam com outras.
-
Embora o Brasil já possua o crime da distribuição de notícias falsas nas eleições e os crimes contra a honra (que já poderia ser usado para combater fake news), o relatório do PL 2630 cria muitas novas formas de criminalização, com perigosos impactos sobre o debate público na Internet. Criminaliza, por exemplo, qualquer pessoa que difunda conteúdos a partir de conceitos vagos como preconceito “por preferência política” e “grave exposição a perigo de paz social ou da ordem econômica”. Assim, qualquer juiz mal intencionado poderá condenar uma pessoa a até 5 anos de prisão por uma crítica política.
-
Mais do que isso, o projeto amplia penas e punições desproporcionalmente para crimes já existentes, criando mais uma vez uma cultura que pode reduzir fortemente qualquer tipo de crítica a poderosos. Essa “inovação” vai ter um impacto dramático sobre a liberdade de expressão.
-
O relatório do senador Ângelo Coronel mantém um problema grave da versão original do PL, ao permitir que qualquer descumprimento da lei resulte no bloqueio de toda a rede social ou aplicativo de mensagens. Episódios de derrubada do Whatsapp e do Youtube em todo o país já mostraram como essa solução é absolutamente equivocada e prejudica o conjunto dos usuários.
-
E, se o projeto traz uma série de soluções desastrosas, que podem atacar a liberdade dos usuários na Internet, na outra ponta ele reduz o que as versões anteriores do texto tinham de bom. É o caso das obrigações de transparência por parte das plataformas, fundamentais para que usuários, pesquisadores e autoridades possam fiscalizar quem pratica malfeitos nas redes sociais. O texto do relator também diminui as exigências de transparência de anúncios e conteúdos impulsionados, o que é muito importante para rastrear quem financia a desinformação e a propaganda irregular, especialmente durante as eleições.
-
Por fim, outro ponto positivo de versões anteriores desmontado no relatório do senador Coronel é o chamado “devido processo”, ou seja, a existência de regras para garantir a notificação, a contestação, o direito de defesa e a reparação quando as plataformas abusam e erram na moderação de conteúdos de seus usuários. Como esses provedores lidam com análises na casa dos bilhões de posts, os erros são muito comuns e é fundamental que garantam o devido processo”
O rechaço ao projeto é amplo
No meio empresarial, Pablo Bello, diretor de Políticas Públicas do WhatsApp para a América Latina, critica a rastreabilidade e compara a lei com uma tornozeleira eletrônica. O Facebook está preocupado com uma possível falta de segurança jurídica para suas operações no Brasil advinda da aprovação do projeto.
O governo também não vê o projeto com bons olhos. Eduardo Bolsonaro tem criticado o projeto em suas redes sociais, pelo viés da liberdade de expressão. Os bolsonaristas têm acusado o projeto de censura comunista.
Os principais problemas, como listado, residem na coleta massiva de dados da população, o que pode levar a perseguição política, criminalização de movimentos sociais e violação de sigilo de fontes jornalísticas.
Tratar todos como suspeitos ou criminosos potenciais e estabelecer uma vigilância em larga escala fere a presunção da inocência. Ainda que não se quebre a criptografia e não se possa ver o conteúdo das mensagens, poder rastrear com quem cada um fala é uma grande brecha para governos autoritários infringirem direitos humanos. As punições desproporcionais que podem equivocadamente recair sobre o usuário comum deve também acabar estimulando a cultura do silêncio, autocensura, e reduzir o volume de vozes críticas aos poderosos.
Saídas
Se o problema é o uso político de robôs, que se vá direto à raiz do problema, concentrando-se no enfrentamento a “contas automatizadas não identificadas” e criminalizando quem paga pelas campanhas de desinformação. O que responde a isso é um PL enxuto, cirúrgico, não esse com 16 páginas, cheio de imprecisões e conceitos vagos como “preferência política” e “perigo de paz social ou da ordem econômica”.
Para pensar mais a longo prazo, como respostas mais de fundo, em primeiro lugar, é preciso implementar currículos de alfabetização midiática e fact-checking nas escolas. É o que vai desenvolver o senso crítico das próximas gerações.
Além disso, a população de baixa renda, que não tem acesso a planos de internet completos, muitas vezes só tem acesso a pacotes em que apenas o Whatsapp é disponibilizado gratuitamente. O acesso à internet banda larga de qualidade para todos é outra medida estrutural que dá apoio ao direito à informação.
Como vimos, os senadores estão mirando no governo, mas acertando no lugar errado. Pode parecer tentador responder rapidamente ao problema da desinformação causada pelas fake news, mas ceder a um projeto autoritário vai custar caro um pouco mais adiante. Os senadores estão se movendo, também por conta da chegada das eleições de novembro, quando não querem correr o risco de serem alvo de fake news e terem dificuldade em responder.
Então é hora de pressionar os senadores para que adiem a votação e se crie espaços democráticos que envolvam o conjunto da sociedade civil. As sessões virtuais do plenário do Senado, sem comissões, querendo votar a toque de caixa em meio à pandemia, são certamente um ambiente impróprio para elaborar com mais cautela uma lei que ataque o problema corretamente e não seja um tiro no pé.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
Veja também