Nos últimos meses estamos observando vários movimentos dentro do continente africano, os quais, para o mundo ocidental, trata-se de simples golpes de Estado que buscam desestabilizar aqueles países. Entretanto, quando nos afastamos das “análises” do Ocidente e buscamos compreender essas mobilizações, encontramos algumas explicações muito plausíveis, as quais demonstram que África, para além da visão eurocêntrica de mundo, é rica, potente e não precisa de proteção, como querem nos fazer pensar e sentir a mídia hegemônica do mundo e do Brasil. E que, por isso mesmo, resolveu tomar para si seu próprio destino.
Desde o ano de 2020 uma série de movimentos insurgentes têm tomado conta de diversos países africanos, a exemplo do Chade, do Gabão, do Mali, de Burkina Faso, e Níger, do Sudão. Esses movimentos são levados a cabo, em geral, por grupos militares, o que vem dando força à mídia hegemônica mundial no sentido de classificá-los como golpes de Estado, tirando de cena questões de fundo, sobretudo econômico, que têm impulsionado tais movimentos.
Para tentarmos compreender o que está acontecendo no continente africano, precisamos entender que a cultura dominante é a cultura ocidental, branca, anglo-saxónica e cristã-judaica, representativa dos interesses de países como Estados Unidos e daqueles que compõem a União Europeia, por exemplo, para os quais África sempre será pobre, doente, necessitada de ajuda e de proteção dos países ditos desenvolvidos. De fato, esse é o discurso dominante que circula no Ocidente, a fim de ocultar as verdadeiras razões pelas quais esses “países brancos” sempre quiseram manter os Estados africanos sob o domínio de ditadores que sempre responderam à altura das aspirações ocidentais.
Durante décadas, esses países que hoje se encontram em conflito interno foram governados por grupos que se mantiveram muito tempo no poder, graças à obediência cega ao Ocidente, que se aproveitava para explorar suas matérias-primas. A nova roupagem do colonialismo garantiu, por exemplo, a tranquilidade energética da França. Quase 70% da energia que abastece aquele potência europeia é originária de centrais nucleares, que precisam de urânio para funcionar, o qual é extraído de Níger, país que faz fronteira com a Nigéria e o Benin ao sul, o Burkina Faso e o Mali a oeste, a Argélia e a Líbia ao norte e o Chade a leste, e é o responsável por fornecer aos franceses quase 20% do urânio utilizado para fazer funcionar as usinas nucleares.
Poderíamos escrever páginas e mais páginas acerca dos benefícios que países como a França usufruem do continente africano, mas nossa intenção aqui é outra. O objetivo é mostrar como interesses econômicos e ideológicos constroem as relações que os países ocidentais estabelecem com países africanos há séculos, e como a permanência desse status é imprescindível à manutenção da hegemonia ocidental, branca e cristã-judaica no mundo. Hegemonia que conta com a indiscutível ajuda dos meios de comunicação hegemônicos do Ocidente, já que não podemos esquecer que, se não de forma determinante, mas de modo sumamente considerável, as visões de mundo disseminadas por essas mídias em geral ajudam na formação das visões de mundo de parte significativa da sociedade mundial.
Desse modo, os meios de comunicação hegemônicos tendem a referir-se ao continente africano por meio de discursos carregados de estereótipos, que quase sempre colocam suas populações no papel de vítimas da miséria econômica, das doenças, entre outras; ou, quando buscam tratá-lo de forma positiva, carregam os discursos no sentido de exaltar suas belezas “exóticas”, invisibilizando o fato de África conter muitas riquezas em seus territórios e de também produzir bens simbólicos e materiais de importância para o mundo. Inclusive, invisibilizam o fato de os europeus continuam saqueando os territórios africanos, mesmo após aquelas nações conquistarem sua independência, colocando em prática uma nova modalidade de colonialismo, através de formas de comércio, de uso de moedas, entre outros, com a anuência de uma elite nativa que se beneficia, de modo individual, da entrega de seus países ao domínio ocidental.
Pan-africanismo?
E é exatamente por isso que esses movimentos de revolta e de tomada de poder estão ocorrendo em vários países, notadamente naqueles cujo domínio francês é preponderante. Esses líderes militares questionam a hegemonia francesa, mas estão sendo retratados apenas como integrantes de grupos que querem o poder a qualquer custo. A mídia hegemônica tenta fazer o seu papel, qual seja o de desqualificar as insurgências, invisibilizando, na maioria dos casos, a expropriação, a dizimação levada a cabo pelo europeu e, por conseguinte, a subserviência das elites locais que servem de suporte para a dominação estrangeira.
Não é possível sabermos se esses movimentos desembocarão em melhorias para os países, mas o fato é que, pelo menos, há um questionamento à subserviência que há séculos só traz prejuízos à grande África. Fica aqui a torcida para que os povos daqueles países se conscientizem da força e do poder que podem ter, e que África, como continente, possa construir uma união e se transformar em uma força real no jogo de xadrez da geopolítica global, a partir da tomada de consciência da necessidade de conquistar sua soberania.
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Quem sabe, algum dia (e que não seja muito distante) possamos celebrar o Pan-africanismo, projeto ideológico e político que visa a união dos povos de toda a África, a fim de resolver os problemas raciais e sociais existentes naquele continente. Iniciado em 1963, a Organização de Unidade Africana (OUA) precisa se consolidar como nunca, sobretudo no sentido de lograr a união de grupos étnicos hoje separados, uma questão fundamental para iniciar um processo de reconstrução rumo à soberania. Quem sabe o sonho de Debois e Garvey, os principais idealizadores desse projeto, esteja sendo resgatado a partir desses movimentos que irrompem no continente.