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Recentemente, li uma matéria realizada pelo NEXO Jornal que entrevistou alguns especialistas para entender o que significa a formulação “lugar de fala”. Esse enunciado aparece com muita força em discussões que circulam nas redes sociais, principalmente entre grupos que discutem questões sócio-políticas, como direitos humanos, feminismo, racismo, gordofobia, homofobia, xenofobia, entre outros. Recomendo que leiam a matéria. É bem interessante notar como a noção de lugar de fala é apropriada a partir de diferentes campos teóricos.
Amanda Cotrim*
Recentemente, li uma matéria realizada pelo NEXO Jornal que entrevistou alguns especialistas para entender o que significa a formulação “lugar de fala”. Esse enunciado aparece com muita força em discussões que circulam nas redes sociais, principalmente entre grupos que discutem questões sócio-políticas, como direitos humanos, feminismo, racismo, gordofobia, homofobia, xenofobia, entre outros. Recomendo que leiam a matéria. É bem interessante notar como a noção de lugar de fala é apropriada a partir de diferentes campos teóricos.
Escrevo aqui porque gostaria de contribuir com esse debate, a partir do meu campo, que é a Análise de Discurso, para discutirmos a diferença entre lugar social, lugar discursivo e a posição discursiva.
Na Análise de Discurso, de linha francesa, mais especificamente com o filósofo Michel Pêcheux, há uma noção clássica a qual diz que “não há discurso sem sujeito e nem sujeito sem ideologia”. Essa perspectiva diz que todo sujeito é um sujeito do discurso, por isso ele pode produzir movimentos de identificação e desidentificação no entremeio da noção de lugar social, lugar discursivo e posição discursiva.
O sujeito, para a Análise de Discurso, não é um individuo, mas um sujeito do discurso, constituído pelo social, pelo ideológico, pelo simbólico, pelo inconsciente e pelo histórico. A nossa forma sujeito histórica, por exemplo, é a capitalista; essa forma influencia certas posições, pois como nossa sociedade é dividida, os sentidos também são divididos, de modo que o combate ao racismo ou a luta por direitos iguais entre homens e mulheres, por exemplo, não significa a mesma coisa para todos. Quando o sujeito se significa (quando escreve, pensa, constrói, age, etc), ele se identifica com alguns grupos discursivos, filiando-se a eles e se constituindo enquanto sujeito.
Jornalista: lugar social e discursivo
Vamos pensar no sujeito-jornalista. Ele se subjetiva no discurso do Jornalismo e movimentando-se entre esse lugar discursivo, o lugar social (se é mulher, homem, trans, negro, pobre…) e diferentes posições discursivas.
Para exemplificar melhor, recorrerei à minha pesquisa de mestrado sobre Cuba: o jornalista é o sujeito responsável por organizar os discursos sobre a Ilha, isso porque ele ocupa o lugar social de jornalista. Por ocupar esse lugar ele já sofre algumas determinações da ordem da exterioridade. Como escreve Evandra Grigoletto, o jornalista “passa” do espaço social (empírico) para o espaço discursivo, e se inscreve em um determinado lugar discursivo, o qual já existe, como é o caso da Imprensa. Em outras palavras, o sujeito jornalista que escreve e fala sobre Cuba “vai” até a sua “memória”, onde circulam tantos saberes sobre a Ilha, desde discursos científicos até o senso comum, recorta e incorpora, não da mesma forma, pois ele se coloca enquanto sujeito autor, produzindo outros sentidos. Nesse movimento, o jornalista se identifica com um grupo do discurso mediático tradicional e produz enunciadas, formulações que pertencem a esses saberes, materializando um discurso que pretende divulgar Cuba. É importante dizer que esse movimento de filiação também é da ordem do inconsciente, por isso o sujeito do discurso é aquele que não sabe de onde vem os seus sentidos, suas interpretações.
Quando o sujeito é interpelado ideologicamente, ou seja, é “chamado a tomar posição”, ele se constitui em um sujeito ideológico, que se identifica com determinados discursos e assume uma posição. Em outras palavras, diferentes indivíduos podem pertencer à mesma Formação Discursiva- que agrupa determinado saber-, como, por exemplo, a formação discursiva de esquerda, mas ocuparem diferentes posições discursivas.
Um caso que me vem à cabeça é o do vereador de São Paulo, Fernando Holiday (DEM), que é negro, se identifica como um vereador que combate o racismo, mas cuja posição ideológica se diferencia de outras posições de outros sujeitos que se filiam a mesma formação discursiva antirracista. O mesmo ocorre com a formação discursiva feminista, na qual diferentes mulheres assumem diferentes posições discursivas. Exemplos os quais mostram que nenhuma Formação Discursiva é homogênea.
O lugar social não é diretamente proporcional ao lugar discursivo
Todos os lugares sociais abarcam um imaginário sobre eles. Por exemplo: o lugar de professor, o de jornalista, o de militante, o de médico, o de feminista, já possui um imaginário, que vai dizer antes o que significa ser professor, ser jornalista, ser feminista, ser médico, ser militante e etc. Novamente lembrando Evandra Grigoletto, o lugar social produz efeitos sobre o lugar discursivo, mas não o determina. Por exemplo: Raul Castro ocupa um lugar discursivo, o de Presidente de Cuba, mas o mesmo também ocupa diversos lugares sociais, como: cubano, cidadão, ex-guerrilheiro. Esses lugares sociais afetam o lugar discursivo de presidente.
O lugar social é efeito de uma prática social, já o lugar discursivo se relaciona com as posições do sujeito, por isso o mesmo lugar discursivo pode operar diferentes posições sujeitos. Novamente o exemplo do vereador do DEM. Ele é negro, ocupa esse lugar social, também ocupa um lugar discursivo, que é o de combate ao racismo, mas opera de diferentes posições discursivas. Resumidamente: podermos ser determinados pelo lugar social, mas podemos ocupar diferentes lugares e posições discursivas. Por isso, o lugar social não é diretamente proporcional ao lugar discursivo.
*Amanda Cotrim é Jornalista e Doutoranda em Linguística, na Unicamp. Pesquisa na área da Análise de Discurso