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Luiz Eurico Lisbôa, um rebelde precoce – o Brasil não costuma cultuar seus mártires

A ousadia de contestar a força das armas é coisa de quem não teme arriscar a vida em defesa da democracia e da dignidade humana
Amaro Augusto Dornelles
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Luiz Eurico Tejera Lisbôa, 1948/1972 – preso aos 24 anos, torturado até a morte em 1972. Suicídio, segundo milicos. Crimes: aos 15 anos, escreveu manifesto contra a ditadura de 1964, além de assinar e distribuir, de porta em porta, em Caxias do Sul (RS). Ameaçado por professor militar e por temer consequências, mudou-se para Porto Alegre. Em maio de 1968, aos 20 anos, Eurico foi preso dentro do colégio Júlio de Castilhos, onde estudava, por lutar pela abertura do ‘periculoso’ Grêmio Estudantil. Tem ainda Lei de Segurança Nacional (LSN), entre outros “crimes”, como veremos a seguir…

Mas antes, é importante saber que em junho de 2013 um laudo da Comissão Nacional da Verdade negou a versão oficial de que Luiz Eurico teria cometido suicídio. Sem punição, oficiais criminosos abrem espaço para novos golpes de Estado até hoje, com apoio de bandidos fardados, alienados e da mídia Corporativa S.A.

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A passagem da adolescência à maturidade, como se sabe, não é determinada pela idade cronológica, escolaridade ou qualquer parâmetro fixo. Mesmo considerando o peso e a multiplicidade das relações sociais, fica difícil entender como um jovem, identificado com a poesia das letras, possa abrir mão da própria vida pra lutar contra a mais sangrenta ditadura militar que o Brasil já enfrentou. Algo impensável para quem hoje segue redes sociais como zumbi.  

A ousadia de contestar a força das armas – cacifada pelo poder jurídico/político usurpado – é coisa de quem não teme arriscar a vida em defesa da democracia e da dignidade humana. Depois de 21 anos de ditadura militar, o Brasil passou a ter inúmeras pessoas exatamente com o perfil acima, gente capaz de se insurgir contra criminosos fardados.


Cuba e morte

Com sua dimensão continental, o Brasil é cada vez mais cobiçado e saqueado por neocolonizadores do Hemisfério Norte. A maior prova dessa realidade são as 20 mil pessoas torturadas durante os anos de chumbo (1964-1985) – como registra um levantamento da “Human Rights Watch” (HRW) de 2019. Pelo menos 434 pessoas foram mortas ou seguem desaparecidas, de acordo com números oficiais. Durante o período, 4.841 representantes eleitos pelo povo foram destituídos de seus cargos. Entre os desaparecidos, Luiz Eurico Tejera Lisbôa. Perseguido, passou um tempo em Cuba. Retornou ao Brasil em 1971, na tentativa de reorganizar a ALN em Porto Alegre.

Lisbôa – o estudante “subversivo”, como ensinou a Rede Globo desde 1964) – foi preso em circunstâncias desconhecidas em São Paulo, na primeira semana de setembro de 1972. E dado como desaparecido desde então. Supõe-se que tenha morrido poucos dias depois, sob tortura, aos 24 anos de idade. Seu corpo só foi encontrado sete anos mais tarde, enterrado no bairro de Perus, em São Paulo, graças ao Comitê Brasileiro de Anistia.  

Atitudes como a de Luiz Eurico e seus companheiros de luta parecem cada vez mais distantes no horizonte do III Milênio, ao sul do Equador. A avenida Paulista estava cheia de jovens exigindo a queda de Dilma Rousseff, em 2016 – e a volta dos gorilas à “selva”.  Se já não bastasse os interesses do capital especulativo nacional e externo, a adesão da imprensa hegemônica – turbinada pelas mídias antissociais – os golpistas ainda contam com o edificante exemplo da impunidade de oficiais torturadores. 


Casa Branca suja

Ao que tudo indica, criminosos fardados jamais serão punidos por seus crimes. A negligência da Lei e da Justiça completaram quatro anos de gestão, sob a regência de um ex-capitão capacho. “Só quero saber do que pode dar certo. Não tenho tempo a perder” diz a musiquinha. Deu certo mesmo. Da próxima vez, quem sabe, encontram alguém menos idiota para fazer o papel de pau mandado de interesses da Casa Branca Suja de Sangue. 

Senão, vejamos: nascido em Porto União (SC), Luiz Eurico morou em diferentes cidades catarinenses até se mudar com a família para Caxias do Sul (RS). Na época do Golpe Militar de 1964, aos 15 anos, Luiz escreveu um manifesto contra a ditadura, que assinou e distribuiu de porta em porta. Ameaçado por um professor militar e com medo das consequências, mudou-se para Porto Alegre. Na capital do Pampa, ingressou no Colégio Estadual Júlio de Castilhos, o “Julinho”, onde entrou na militância política organizada de corpo e alma: filiou-se à Juventude Escolar Católica, JEC.

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A ousadia de contestar a força das armas é coisa de quem não teme arriscar a vida em defesa da democracia e da dignidade humana

Reprodução
"É muito difícil dimensionar, com os olhos de agora, uma trajetória como a do Luiz Eurico", afirma o irmão, Nei Lisbôa




Rebelde precoce

Entre 1967 e 1968, o movimento secundarista de Porto Alegre chamou a atenção dos órgãos de repressão. Ora, Luiz Eurico era um dos líderes do movimento. Militante, tinha participação destacada nos atos públicos. Resultado: passou a ser ‘preso preventivamente’ sempre que houvesse anúncios de manifestações. Nessa época, ele já era um dos diretores da União Gaúcha dos Estudantes Secundários (UGES), entidade que a ditadura ainda não havia fechado.

Em maio de 1968, aos 20, Eurico foi preso dentro do próprio colégio no qual estudava. Cláudio Antônio Weyne Gutierrez, outro diretor da UGES, também foi preso. Crime imputado: entregar um abaixo assinado pedindo reabertura do Grêmio Estudantil. A UGES foi fechada. Assim mesmo o grupo passou a se reunir em uma barraca na frente do Julinho, onde promoviam assembleias e iniciavam passeatas.


Val Palmares e ALN

Os líderes estudantis foram levados ao Departamento de Ordem Política e Social, DOPS, onde permaneceram presos por três semanas, sem nenhuma forma de comunicação. Luiz Eurico e Cláudio foram mantidos em uma cela fechada, com pouca ventilação, cercado de insetos e passando por interrogatórios e ameaças constantes. Como era de praxe, os dois foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional (LSN). Foram novamente presos, dessa vez por duas semanas. O motivo da prisão foi tentativa de reabertura de entidade ilegal.

Suzana e Luiz: felizes até que a ditadura o matou (Reprodução)

Com endurecimento do regime militar, o ‘rebelde com causa’ resolveu  adotar um novo posicionamento político. Foi o que ele encontrou na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, VAR-Palmares e depois na Aliança Libertadora Nacional, ALN. Lisbôa se casou com Suzana Keniger em março de 1969. Logo começou a trabalhar como escriturário no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, SENAI.


Absolvido e ‘recondenado’

O estudante foi absolvido da ‘acusação terrível’ de tentativa de reabertura ilegal do Grêmio Estudantil. Chegou a comparecer à Auditoria Militar no dia do julgamento. Porém, em outubro do mesmo ano, o inquérito policial-militar no qual tinha sido absolvido por unanimidade foi reaberto. Luiz Eurico teve que começar a viver na clandestinidade após ser condenado a seis meses de prisão por tentar reabrir a entidade estudantil. O militante teria tomado consciência de sua situação legal ao ler uma notícia de jornal, que anunciava a voz de prisão. Com isso, restou ao casal optar pela clandestinidade.

“O que eu retenho como lição dessa história é que a ditadura ceifou uma geração de líderes que até hoje faz falta”, diz Alan Martin, professor de Geopolítica da USP e conferencista: “Nós não recebemos o bastão deles, naquela velocidade. Fomos líderes mais medíocres para as gerações subsequentes”. Ele lembra que nossos heróis estão por volta dos 80: “E quanto menor a idade mais vulnerável às redes anti-sociais: necas de livro.

Leonel Brizola, Paulo Brossard, Luciana Genro, Manuela D’Ávila, Moacyr Scliar, entre outros, foram alunos do Julinho (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Em 1993, a Editora Tchê, em parceria com o Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, publicou o livro “Condições ideais para o amor”. São poesias e cartas de Luiz Eurico Tejera Lisbôa e depoimentos de quem o conheceu. A obra é organizada pelo professor Antônio Hohlfeldt.


Condições ideais para o amor

O título do livro foi retirado do texto de uma carta escrita por Luiz Eurico Tejera Lisboa a sua companheira Suzana, em 5 de julho de 1968:

“Fiquei com pena de todos eles, Suzana. Dos que mentem, dos que invejam, dos empertigados, dos ambiciosos, dos que fazem do amor um remédio, um passatempo, um negócio, um paliativo. E percebi quão poucos entre nós chegaram ao sentido final do combate que travamos. Eles não compreendem, Suzana, que nós somos um momento na luta que o Homem vem enfrentando através da História, cada vez mais conscientemente, pela felicidade. Não entendem que nós buscamos, em última análise, as condições ideais para o amor. Tanto no plano coletivo, como individual.”


Insubmissão e poesia no sangue

Legado de quem entregou a vida por seus ideais é privilégio de poucos.

Conheça a partir de agora um pouco da vida familiar de Luiz Eurico, o estudante que preferiu contestar a truculência da ditadura militar do que se submeter à barbárie. Um de seus irmãos mais novos, Nei Lisboa, há pelo menos 40 anos é um dos músicos mais importantes do Rio Grande do Sul. Sua veia poética salta à primeira audição. Herdou também a insubmissão do irmão. Em 1987, por exemplo, foi vencedor do Prêmio Sharp Revelação Pop Rock. Depois de pegar o cheque-Sharp, o músico não deixou por menos: “Levo o cheque, mas o troféu da Globo abro mão. A empresa deve estar precisando”. Detalhe: Já estava acertado para ele fazer a trilha sonora da noveleta juvenil “Malhação”. 

Amaro Augusto Dornelles – Quando Luiz Eurico entrou no Colégio Estadual Júlio de Castilhos, em Porto Alegre (RS), já era politizado. Ele nunca te indicou nada de política pra ler? 

Nei Lisbôa – Viemos de Caxias do Sul para morar em Porto Alegre em 1965. Foi quando Luiz Eurico passou a estudar no Júlio de Castilhos. Eu ingressei no ensino fundamental, onze anos mais moço do que ele. Até 1969, quando partiu para a clandestinidade, certamente muita coisa me recomendou ler e ouvir, mas duas marcaram em especial: “História da Riqueza do Homem”, do Leo Huberman, que me foi muito formador. E teve um disco, de “um cara novo muito bom”, um tal de… Milton Nascimento.

Como irmão mais velho, ele teve muita influência, do gosto ao modo de falar e vestir. Como Eurico se aproximou da resistência ao golpe? E a aproximação com a luta armada?
Foi militando no movimento estudantil, e como dirigente da União Gaúcha do Ensino Secundário, UGES, que ele passou a ter contato com as organizações e focos de resistência à ditadura. Depois do AI-5, foi condenado pela justiça militar por “tentativa de reabertura do grêmio estudantil” do Julinho, e então optou definitivamente pela luta armada e a clandestinidade, como membro da ALN. Eu o vi bem pouco a partir dali. Passou a viver mais distante – e obviamente cercado de cuidados para que não o encontrassem. O desfecho acontece em setembro de 1972. Ele foi assassinado em um quarto de pensão no bairro da Liberdade, em São Paulo. O corpo havia sido enterrado sob o nome falso de Nelson Bueno no cemitério de Perus. Mas isso só se vem a saber sete anos mais tarde, em 1979, pela diligente procura da esposa, Suzana Lisbôa.

Qual a influência dele em relação a ti e à família; alguma inspiração pra tua vida ou canção?
Eu era ainda muito pequeno, mas muito atento àquela movimentação e atmosfera inebriante dos anos 60, de militância dentro de casa, entre os irmãos e seus amigos. Muitos festivais de música, Jovem Guarda, Tropicália, anseios de liberdade e de uma revolução, que despontava logo ali, na próxima esquina. Então a repressão redobrou, prisão, mortes, tortura, uma geração e um país silenciados. Mas Luiz Eurico era também um jovem grande poeta. Deixou uma obra que foi há pouco reeditada, pela editora Sulina, “Condições ideais para o amor”. Segui os passos dele na poesia. Na forma das letras de música que passei a compor. Não foi por outra inspiração senão pelos versos que ele gostava de declamar em voz alta, pela casa.

Como se comportaram as entidades de defesa de direitos humanos depois do desaparecimento em São Paulo?
O Brasil é signatário de convenções e subordinado a cortes internacionais, que já propugnaram inúmeras vezes pela revisão da lei da anistia, pela investigação e responsabilização daqueles que cometeram crimes contra a humanidade durante a ditadura. A luta dos familiares de mortos e desaparecidos, a busca por verdade, justiça e reparação, tem sido protagonizada desde sempre por grandes guerreiras, como Amelinha Telles, Crimeia de Almeida e a própria Suzana. Mas nada disso, nem mesmo quando a esquerda esteve no poder, produziu resultados que pudessem nos poupar de uma vexaminosa comparação com os demais países do cone sul da América. É um sintoma social brasileiro: vivemos escondidos da própria história e tutelados pelo medo, pelo pavor que a ditadura disseminou com suas torturas, mortes e desaparecimentos.

Qual foi o nexo que levou teu irmão a se rebelar contra o terrorismo de Estado?
É muito difícil dimensionar, com os olhos de agora, uma trajetória como a do Luiz Eurico, daquela geração que pegou em armas. Não se trata de glorificar um heroísmo, que teve seu contexto, mas as discrepâncias são evidentes. Os sonhos e o idealismo juvenil de classe média, hoje, passam por fundar uma startup de bioenergia, não por morrer pela liberdade. Por outro lado, no universo periférico, talvez as consciências estejam mais apuradas do que nunca. E dispostas a atuar socialmente, com o despojamento da própria vida, à qual o Estado ausente e a polícia assassina não atribuem mesmo grande valor. Essa violência e impunidade são heranças em linha direta dos aparatos da ditadura. Interromper esse processo de permanência e reprodução do terror estatal é o sentido maior da luta dos familiares e do comprometimento com a verdade histórica que o Brasil ainda está por construir.

Amaro Augusto Dornelles | Jornalista e colaborador da Diálogos do Sul.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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