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Luiza Erundina, reserva moral

João Baptista Pimentel Neto

Tradução:

“Caráter como o dela conta-se nos dedos!”

Fernanda Pompeu*

Fernanda-Pompeu-1Sempre quis mudar o rumo das coisas, a começar por mim. Entrevistei a autora dessa frase, em 2005, para o livro Brasileiras Guerreiras da Paz – escrito por Carla Rodrigues, Patrícia Negrão e por mim. A coordenação coube a Clara Charf. Saiu pela Editora Contexto. É fato: lá se foi mais de uma década! Mas ao observarmos o Brasil de 2017, percebemos que são poucos os políticos que não nos envergonham. Luiza Erundina é um deles. Ela funciona como uma espécie de reserva moral da recente e conturbada história do país. Leia que segue valendo!

Luiza Erundina de Souza não arredou um milímetro de sua crença de que todo ato político é pedagógico.
Luiza Erundina de Souza não arredou um milímetro de sua crença de que todo ato político é pedagógico.

O 15 de novembro de 1988 datou a história com uma das maiores surpresas eleitorais do país. Na megalópole São Paulo, as urnas deram a prefeitura para Luiza Erundina de Souza, do Partido dos Trabalhadores – PT. Nesse dia de primavera, mais de um milhão e quinhentos mil votos derrubaram mitos e preconceitos.

Os paulistanos, de nascimento ou adoção, elegeram sua primeira prefeita. Delegaram o poder a uma mulher do povo, natural de Uiraúna, sertão da Paraíba. Um susto que pegou de calças curtas os institutos de pesquisa, a mídia, os analistas políticos e até mesmo a direção do PT.

Luiza Erundina afirma que o mérito não foi só dela: Havia uma conjuntura favorável, plasmada por um momento de alta mobilização popular. O financiamento de sua campanha, franzino comparado com os de hoje, foi encorpado pelo trabalho dos militantes e das feministas. Eles rifaram bicicletas, radinhos de pilha, relógios, faqueiros. Organizaram feijoadas, macarronadas e churrascos solidários. Deram festas-baile, festas de rua. Montaram barraquinhas para vender sarapatel e caldinhos de feijão.

Tamanha garra militante tinha coração de ser. Se, para muita gente, Luiza Erundina – nascida em 1934, sétima de dez irmãos – ganhara fama durante a campanha, para outras pessoas sua vitória significou o justo reconhecimento de anos de militância, ombro a ombro, com setores populares.

A história dessa ativista começou na Paraíba. Assistente social, se pôs ao lado dos que lutavam por terra para trabalhar e pelo teto para morar. Em 1971, auge da ditadura militar, fugindo da perseguição política, que a impediu de dar aulas na universidade de seu estado, migrou para São Paulo. No sul-maravilha, trabalhando como assistente social da prefeitura, seguiu agitando nas vilas e favelas. Eu encontrei meus irmãos nordestinos amontoados nos barracos e nos cortiços da grande cidade.

Essa mulher, baixinha de estatura, é um varapau de coragem. Por incontáveis vezes foi chamada para áreas de conflito. O povo invadia terrenos ociosos, o governo despejava a tropa de choque em cima. Erundina discursava, organizava a resistência, tentava negociar com os policiais. Viveu situações de perigo: levou empurrões, rasteiras e até cacetadas. Os oprimidos souberam retribuir. Em 1982, foi eleita vereadora. Quatro anos mais tarde, deputada estadual. Sempre pelo PT.

Seu envolvimento também abrangia outras frentes de luta. A batalha pela implantação de creches, escolas, postos de saúde. A mobilização contra as panelas vazias e o epidêmico arrocho salarial. Os esforços pela qualificação de sua categoria profissional. Corolário: a mulher que chegou à prefeitura de São Paulo tinha uma multidão atrás de si.

Mas, como acontece com todos, a prefeita não escaparia da solidão do poder. Foram quatros anos de cobranças, ilusões partidas, oposição aguerrida. Também foram quatros anos de avanços. Ela não construiu exatamente túneis e pontes. Ela ajudou a construir cidadania. Pôs os problemas da periferia no centro de sua agenda.

Em sua gestão, não somente construiu hospitais e postos de saúde, discutiu a saúde. Não apenas ergueu escolas e melhorou a merenda, discutiu a educação. Não somente enfrentou o lobby das empresas de ônibus, discutiu o transporte. Luiza Erundina de Souza não arredou um milímetro de sua crença de que todo ato político é pedagógico.

Na prefeitura, cercou-se de mulheres em funções-chave. Foram várias secretárias e coordenadoras. Sua recomendação para as colaboradoras era precisa como feixe de laser: Cabe às mulheres ocupar espaços de poder e exercê-lo melhor do que os homens. Melhor, no caso, significa trabalhar com sensibilidade e ter zelo extremado com a coisa pública.

Fez história. Formou muita gente dentro da filosofia que apregoa o fundamento número um da democracia: O poder não é de quem o exerce, mas de quem o delega. Fundamento comumente esquecido pela maioria dos governantes e por um punhado de governados.

Luiza Erundina saiu da prefeitura rigorosamente com a mesma renda pessoal com que entrou. Honestidade raríssima entre seus pares. Uma semana antes da posse, ela reuniu os familiares e alertou: Vocês são meus entes queridos, mas não esperem vantagem alguma em decorrência do meu cargo. Assim foi.

Depois da prefeitura, contra a vontade de seu partido, foi ministra no governo de Itamar Franco. O caldo entornou: ela e o Partido dos Trabalhadores, do qual foi uma das fundadoras, se desentenderam. Romperam uma relação política e sentimental. Sem deixar o barco à deriva, decidiu filiar-se ao Partido Socialista Brasileiro – PSB, pelo qual elegeu-se deputada federal. Em 2004, tentou novamente a prefeitura de São Paulo. Não deu. (Hoje, Luiza Erundina está no PSOL).

Muita água passou por debaixo da ponte Brasil, desde o 15 de novembro de 1988. No entanto, o significado daquela eleição e a contribuição da cabeça-chata Luiza Erundina de Souza seguem nos inspirando. Sua inteireza moral funciona como receituário para o poder das mulheres em prol de uma sociedade mais igualitária.

Brinde Erundina em setembro de 2017


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

João Baptista Pimentel Neto Jornalista e editor da Diálogos Do Sul.

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