Havia um clima de discreto otimismo entre os assessores e advogados de Lula. Ontem, uma decisão do STJ suspendeu o julgamento de uma questão sobre o processo do sítio de Atibaia — o que foi visto como vitória porque levaria o caso de volta às alegações finais, mas não anularia o processo, como quer a defesa do ex-presidente. Além disso, a votação em andamento no Supremo Tribunal Federal sobre a prisão em segunda instância traz, pela primeira vez, uma possibilidade concreta de liberdade para Lula, ainda em novembro.
Mais do que a esperança, porém, é a ironia que aparece na entrevista concedida pelo ex-presidente na sala da PF, onde, ladeado por policiais ele recebe os jornalistas — obrigados, pela polícia, a ficar a pelo menos três metros de distância dele. Ao comentário sobre a gravata com as cores do Brasil que usa com blazer e calça jeans dispara: “Essa gravata tem história, rapaz, é de quando conquistamos as Olimpíadas em Copenhague. Eu ganhei 18. Como vou viver até os 120 anos tenho gravata para usar o tempo que quiser”, provoca.
E não há sinais de comemoração em sua resposta sobre suas primeiras vitórias na Justiça: “Eu deveria ficar até carrancudo quando você faz uma pergunta dessa, mas é tão hilário o que aconteceu na minha vida… Estou agarrado pelo monstro e estou rindo”, diz, antes de prometer: “Podem perguntar o que quiserem, não ficarei nervoso como o Bolsonaro ficou ontem à noite”, referindo-se à live do atual presidente depois da reportagem da rede Globo sobre o depoimento do porteiro do condomínio da Barra da Tijuca, dizendo que um dos acusados de assassinar a vereadora Marielle Franco havia procurado Bolsonaro na noite do crime.
Bom humor, indignação e alfinetadas aos adversários políticos se alternam nesta segunda entrevista do dia — antes da Pública, ele tinha recebido uma equipe de TV francesa. O tempo apertado de 60 minutos marcados no relógio, por imposição das regras da prisão, pressiona ex-presidente e entrevistadores, mas ele sabe do que quer falar. “Nesse país, pode ter certeza, só tem um partido político que funciona como partido político: é o PT”, diz, para emendar: “Você percebe que o partido do Bolsonaro não existia ontem e que agora, por causa de uma eleição, eles vão receber R$ 400 milhões ou mais do fundo partidário? Qual a empresa que vai ganhar R$ 400 milhões do nada?”, cutuca.
Entre os muitos temas abordados na entrevista, a relação com Dilma e as decisões sobre as próximas eleições deixam claro que Lula, preso ou solto, vai dar as cartas em 2020. “Num partido como o PT o partido tem que fazer prevalecer a sua vontade e decidir quem vai ser candidato. Como é que você vai ganhar o carnaval se você não se apresenta?”
Foto: AF Rodrigues / Agência Pública
“Ele [Bolsonaro] aprendeu a governar com fake news“
Confira a entrevista
Thiago Domenici — A suspensão do julgamento, pelo STJ, do TRF-4, marcado para hoje, sobre o processo do sítio de Atibaia, é uma vitória para a sua defesa. E tem também a questão do julgamento em segunda instância. Como o senhor vê esse cenário?
Lula — É uma coisa que eu deveria tratar com muito mais seriedade, ficar até carrancudo quando você faz uma pergunta dessa, mas você percebe que eu sorri, porque é tão hilário o que aconteceu na minha vida… Tem uma enxurrada de processos – acho que vão chegar uns dez processos – com uma mentira mais grave do que a outra. Tem a mentira do triplex, a mentira do sítio de Atibaia, a mentira que vai vir ainda do terreno do Instituto [Lula], vai vir tudo. É uma enxurrada de fantasias criada por essa quadrilha de promotores da Lava Jato – que é uma quadrilha, chefiada pelo Dallagnol – feita por delegados que não tiveram sequer respeito à instituição Polícia Federal, que mentiram em seus inquéritos, para um juiz mentiroso e para um TRF-4 faccioso.
Estou agarrado pelo monstro e estou rindo, porque tenho certeza que, dentre tudo isso que falei, só tem uma pessoa que merece respeito nesse país, entre essas que falei, que sou eu. Eles sabem que sou inocente, sabem que mentiram, e tudo isso sustentado pela necessidade que a Globo tinha de destruir o PT. E, para destruir o PT, tinha que destruir o governo da Dilma e, para destruir o governo da Dilma e o Lula voltar não dava certo, então tinha que destruir o Lula também. Tudo isso é um conluio sem precedente na história do país.
Eu, então, que poderia ter saído do Brasil como alguns queriam, resolvi vir para cá, porque é daqui que quero me libertar de cabeça erguida. E oxalá o dia em que tiver justiça nesse país, os meus algozes venham para a cadeia.
Esse país não pode ter um juiz como o Moro, não pode ter um promotor como o Dallagnol e não pode ter na Polícia Federal alguns delegados que fizeram inquéritos mentirosos contra mim. Só posso dizer para você o seguinte: estou brigando, e como nasci para brigar – sou de um estado que briga muito, Pernambuco, antes de 1822, já estava fazendo sua luta pela independência. Estou aqui para brigar pela decência, pela inocência e por justiça. E sonho que esse país vai ter Justiça. O dia em que tiver justiça, serei inocentado.
Parece incrível, mas tenho dito aos meus advogados que não ando preocupado com a discussão [da prisão após] segunda instância. Não é pedido meu. Não ando preocupado com meu processo jurídico, porque tenho muita consciência de que a minha condenação tem 99,9% de política. O jurídico tem lá meio por cento. Veja: o processo de um triplex, que você poderia ir ao cartório, pegar a escritura de compra, pegar o recibo de pagamento, pegar algum documento, numa ou duas páginas você provaria se eu sou, ou não [dono do triplex]. Ou seja, baseado numa mentira do jornal O Globo, esse processo já tem não sei se é milhões ou 300 mil páginas. Imagina a quantidade de mentiras contadas em 300 mil páginas numa coisa que precisava apenas de uma escritura.
Eu sou vítima de uma mentira que eles não têm como desfazer, porque para desfazer o que eles montaram, para me tirar da vida libertária, eles não têm como voltar – tem que cair Moro, têm que cair Dallagnol e mais gente, têm que cair mais procuradores, tem que julgar o TRF-4.
Mesmo no Superior Tribunal de Justiça, eu vi o julgamento, ninguém entrou no mérito. As pessoas ficam falando e eu só quero saber “porra, sou dono ou não do apartamento?”. Digam! Ninguém diz.
Aí o juiz vai me julgar e diz “ele cometeu um crime de fato indeterminado, nós não sabemos, é segredo o crime”. Aí vai o procurador, depois de contar uma hora e meia de mentira da forma mais canalha possível – esse cidadão deveria ter sido exonerado no dia depois do PowerPoint –, faz uma hora e meia de acusação, cria uma fantasia – parecia um desenho da Disney – e diz o seguinte: não me peçam provas, eu só tenho convicção. E esse cidadão está aí, ganhando dinheiro e roubando, fazendo instituto para lesar e roubar a Petrobras, para roubar as empreiteiras com delação. Eu fico hiper irritado, mas de bom humor, um irritado mas calmo.
Marina Amaral — O senhor disse que a Globo queria tirar o senhor. Acha que isso se devia a quê? Ontem mesmo, houve a reportagem sobre essa situação de um dos suspeitos do assassinato da Marielle ter ido ao condomínio do Bolsonaro. O porteiro diz que ele ligou para a casa do Bolsonaro e o Bolsonaro respondeu. Tem essa questão do Bolsonaro estar em Brasília, mas, de qualquer jeito, é uma situação que mostra uma proximidade muito grande. O senhor acha que a Globo deu a matéria também com a intenção de abreviar o governo Bolsonaro ou que, nesse caso, eles agiram jornalisticamente?
Veja, eu vi a matéria da Globo ontem contra o Bolsonaro. A Globo fez uma reportagem e, nessa reportagem, mostra o que aconteceu e diz que Bolsonaro não estava em casa, porque ele estava votando em Brasília. Queria que a Globo fosse honesta comigo como ela foi com o Bolsonaro. Não sou contra que a imprensa fale mal de mim o quanto quiser, se tiver verdade. Se o Lula fez uma merda, digam sem rodeios, mas expliquem o que ele fez. Agora, se ele não fez, não mintam, e a Globo faz muitos anos que mente a meu respeito, mente deliberadamente.
Tem uma professora da Universidade Federal de Minas Gerais que está fazendo ou fez a tese dela – recebi uma cópia aqui, nem a conheço. Ela mostra que tem mais de duzentas horas do Jornal Nacional contra o Lula e nem um minuto favorável. Isso agora, depois que deixei a presidência, porque passei a incomodá-los mais do que quando era presidente.
Eu não consigo entender qual é o ódio. A única explicação que tenho é a ascensão social do povo brasileiro. Ou que, quando entrei na presidência, tinha 348 meios de comunicação que recebiam dinheiro da Secom, nós passamos para quase 4 mil. E foi pouco, porque precisaria fazer mais.
Agora está mais grave, porque agora é a Globo, a Bandeirantes, o SBT.
Presidente, nós vamos falar mais até da questão da regulação de mídia, que o senhor já tem falado. Mas queria que o senhor comentasse a mudança de conjuntura política da América Latina. Houve a eleição do Alberto Fernández e da Cristina Kirchner na Argentina. Está se desenhando a vitória da Frente Ampla no Uruguai, houve o Evo Morales na Bolívia, e nos países onde a esquerda está fora do governo, no Equador e no Chile, houve todos aqueles protestos. O senhor vê uma guinada?
Quem ama e vive a democracia precisa perceber o seguinte: em 500 anos de história, a América Latina nunca tinha tido a experiência de esquerda que teve com a chegada no governo do Chávez, minha, do Evo, do Kirchner, do Tabaré e depois do Pepe Mujica. Nunca tinha tido. Teve o [Álvaro] Colom na Guatemala, o Maurício Funes em El Salvador. Foi uma guinada histórica.
Tinha tido o general Cárdenas no México, na década de 30, o Perón na Argentina, o Getúlio Vargas aqui. Mas não eram pessoas de esquerda, era gente da elite que tinha o pensamento progressista. Mas gente com pensamento de esquerda foi a primeira vez.
O que nós tínhamos que nos preparar é que, da forma mais democrática possível, você ganha e você perde. Se pegar os Estados Unidos como modelo, vai perceber que os Democratas governam quatro ou oito anos, depois caem fora, aí entram os Republicanos, governam quatro ou oito anos e caem fora. Raramente um governa quatro mandatos; o Roosevelt foi um dos poucos que governou quatro mandatos nos Estados Unidos.
Esse revezamento no poder é salutar para a democracia, é saudável demais a mudança de governo, a alternância no poder é importante. O PT tinha que saber que um dia ia deixar de governar – não por golpe.
Essa é a safadeza de quem deu o golpe. Eles sabiam o seguinte: a Dilma foi eleita em 2014 e esse tal de Lula vai voltar em 2018. Se esse tal de Lula voltar em 2018 e fizer o mesmo governo que fez, pode se reeleger em 2022. Então, “espera aí, esse PT vai governar trinta anos esse país? Colocando preto, empregada doméstica, gente da periferia na universidade? Essas pessoas viajando de avião, comendo três vezes por dia, tendo conta bancária, produzindo a terra com muito financiamento? Vamos parar com isso”. O medo deles era que houvesse essa continuidade.
Mas o fato de você perder ou não… A Cristina perdeu eleitoralmente, com muita mentira, mas perdeu. Agora voltou. Nós já governamos o Uruguai – quando digo nós, todos os meus amigos, tanto o Tabaré quanto o Pepe Mujica – já vai fazer quinze anos. Então, chega uma hora que as pessoas querem mudar. Mas nada impede que se perca e ganhe daqui a quatro anos. O Evo Morales vai continuar, mas pode perder. É assim, não temos que ver a derrota democrática como um mal. É sempre mau para o partido, que nunca quer perder, todo mundo quer ficar o tempo inteiro.
Ai de nós, todo mundo gostaria de ter sessenta anos no poder, de ter cinquenta anos no poder. Temos que ter noção de que o tempo é assim.
Qual é o problema? É que o melhor período da América Latina foi esse período em que a esquerda governou. E se você perceber, o maior adversário em todos os países – na Bolívia, Venezuela, Argentina – é a imprensa conservadora, os donos dos meios de comunicação.
Não o jornal, porque o jornal escreve o que quer, o cara tem que comprar jornal, mas a televisão é uma concessão do Estado, então as pessoas precisam, no mínimo, ser respeitosas com quem está governando e não transformar o meio de comunicação em um partido político, que é o que é hoje a Globo. Aliás, ela vem preparando candidato já faz tempo.
Uma época, o senhor chegou a se dar bem com a Globo.
Veja, eu sempre me dou bem com todo mundo, nunca tive uma relação boa com a Globo. Aliás, a Globo nunca teve uma relação comigo. Quando o velho Roberto Marinho era vivo, quando o velho Frias era vivo, quando os Mesquita velhos eram vivos, a gente tinha uma relação mais civilizada. Parece bobagem o que vou te dizer, Marina, mas você trabalhou na Folha. O velho Frias era muito melhor do que os filhos; os Mesquitas pais, muito melhores do que essa molecada que está; o doutor Roberto Marinho era mais civilizado do que essa gente que está lá agora.
Porque essa gente deformou o poder de mando, eles não mandam mais, terceirizaram o mando. São burocratas que mandam, e burocrata não tem compromisso, não tem sensibilidade, você nem conhece. Quem é que conhece a cara do Ali Kamel? Ninguém conhece, não sabe onde ele mora, onde o filho dele estuda, em que restaurante ele come; você não conhece os Marinho, conhece de vez em quando um. Agora, nós, políticos, somos conhecidos.
O velho Roberto Marinho resolvia os problemas quando você ligava para ele. Vou te contar uma história: na Constituinte, uma vez, teve um debate de um sindicato que foi até duas, três horas da manhã, e no dia seguinte aparece um sindicalista da Força Sindical no Bom dia Brasil falando do debate na Câmara. Liguei para o Roberto Marinho e falei: “pô, Roberto, não tem sentido a gente ficar até às quatro horas da manhã brigando e no dia seguinte vocês não põem ninguém da CUT falando, colocam só da Força Sindical”. Ele me falou assim: “Lula, é o seguinte, quem que você quer que a gente entreviste, que vamos entrevistar hoje”. E mandou entrevistar uma pessoa e colocou no ar.
Uma vez, o Chico Anysio me deu uma esculhambada naquele programa que ele tinha à meia-noite de domingo. Liguei para o doutor Roberto Marinho: “o senhor assistiu ao programa do Chico Anysio ontem? O senhor viu o que ele falou?”. Ele disse: “Lula, amanhã vai um repórter lá te entrevistar, você vai ter um minuto para responder o minuto do Chico Anysio”.
Hoje, com essa molecada que está lá, você não consegue, eles não mandam, não têm autoridade. Só quero te mostrar que os meios de comunicação já foram mais civilizados do que hoje. A revista Veja já foi uma revista séria, hoje é um lixo. As revistas Época e IstoÉ não são revistas, são fake news. Você sabe que os jornais já foram mais sérios.
Eu lembro que quando eu comecei a ler a Folha de S. Paulo era porque a Folha era de esquerda. O jornal O Estado de S. Paulo era o que é hoje, de direita. Isso acabou.
Quando eles criaram um grupo chamado [Instituto] Millenium, era um grupo que determinava as manchetes. Depois que o PT entrou no governo, depois do Millenium, eles passaram a decidir as manchetes juntos. Era quase todos os jornais com a mesma manchetes; toda revista, a mesma manchete. Então, piorou muito.
Então, eu acho que eu cometi um erro no meu governo que foi não levar mais a sério uma nova regulamentação para os meios de comunicação.
Mas aí, quando o senhor está falando nessa regulamentação, o senhor está falando em uma regulamentação de ver propriedade cruzada de meios, não uma regulamentação de conteúdo?
Veja, em algum momento a sociedade tem que opinar sobre as coisas que acontecem no Brasil. Por que a gente é democrático para achar que a sociedade tem que interferir em tudo, e na hora de discutir determinado conteúdo, a sociedade é proibida de discutir? Nós não queremos ter ingerência. Não é fazer o conteúdo, mas dizer que tal conteúdo não pode ser publicado porque ele é ofensivo à sociedade brasileira, à nossa cultura, aos nossos costumes… Quem é que vai julgar? É a própria sociedade, não é o presidente da República.
Sabe, quando uma televisão conta uma mentira política, como contou tantas do Moro contra mim, e meu advogado entrava com pedido de direito à resposta, nunca tivemos. Nunca tivemos.
Mas o senhor não acha que isso corre o risco de ser confundido com censura?
Eu lembro que uma vez apareceu um ideia para gente criar o Conselho Nacional de Jornalismo. Era uma reivindicação dos jornalistas, que veio através do sindicato de Brasília. Antes da gente discutir, meu companheiro Ricardo Kotscho mandou para o Congresso Nacional, conversou com o líder da bancada…
A imprensa bateu tanto, a imprensa que defende a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], que defende o Conselho de Psicologia, que defende o Conselho de Arquitetos, de Engenharia, de Medicina…. Ela babava com ódio da possibilidade de um Conselho Nacional de Jornalistas.
Por quê? Por que se sentem tão ofendidos? Eles nem aceitaram a Hora do Brasil, mudaram a Hora do Brasil… Eles podem tudo, devem tudo, elas falam a hora que eles quiserem…
Posso te dizer: nem Silvio Santos, nem Edir Macedo, nem o dono da Bandeirantes, o Johnny [João Carlos] Saad, nem o dono da Globo vai encontrar um presidente que os tratem da forma mais civilizada do que eu os tratei. E da forma mais respeitosa. Agora, eles sabem o que fizeram comigo. Então eles sabem que é preciso mudar alguma coisa na regulação dos meios de comunicação.
Thiago Domenici — O senhor, que é amigo do Mujica e do Tabaré Vázquez, vislumbra uma possibilidade do Brasil e da política brasileira, de algo como a Frente Ampla do Uruguai?
Quando deixei a presidência, eu sonhei isso. Eu fui atrás, eu estive no Uruguai conversando, vendo como é que é. Se você for analisar bem, o PT já é quase uma frente ampla. O PT tem dez, doze tendências. Agora mesmo, na disputa interna, teve nove chapas. Ou seja, no mínimo nove tendências, cada uma tem uma filosofia, cada uma tem uma ideologia, cada uma acredita numa coisa. E o PT, eu brinco de vez em quando, que essas pessoas têm que dizer em alto e bom som que o PT deu cidadania para eles, porque todos eles viviam na clandestinidade, nos anos 1980, e o PT apareceu [dizendo] “venham para cá todo mundo, venham para cá”. O PSOL nasceu do seio do PT…
Mas por que esse sonho do senhor não aconteceu?
Quando o PT nasceu era duro nascer um partido político. A gente tinha que legalizar o partido em 15 estados da federação, tinha que ter 20% do município, tinha que ter não sei quantos filiados em cada município e tinha que ter 3% dos votos nas eleições. Agora vai ter um pouco de seriedade quando a nova lei começar a entrar em vigor. Mas você percebe que fazer partido político hoje virou empreendedorismo? Você percebe que o partido do Bolsonaro não existia ontem e que agora, por causa de uma eleição, eles vão receber R$ 400 milhões ou mais do fundo partidário? Qual a empresa que vai ganhar R$ 400 milhões do nada?
Marina Amaral — Eles já estão brigando entre eles…
Criar um partido político virou… São microempreendedores. Eu pego dois ou três deputados, eu crio um partido político, doa a direção estadual para cada um deles e doa uma parte do fundo que arrecadar. Não pode continuar assim. Assim esse país nunca vai ser altamente democrático.
É difícil imaginar uma coalizão negociando com 50 pessoas, com 50 partidos. É difícil, pergunte a quem já foi presidente. E eu acho que nós vamos ter que mudar.
E eu sonhava em criar uma frente ampla, sabe? Trazer todo mundo. Desde o tempo do [Leonel] Brizola a gente imaginou fundir… É difícil fundir o PT com o PDT… Metade dos partidos teriam que abrir mão dos seus candidatos: o PT pela esquerda, o PDT pela direita… Falei para o Brizola: não dá, sabe? Os partidos não abrem mão do seu – como é que chama? – Logotipo.
E o PT também não abre, né?
O PT se construiu brigando. Quando nós fizemos uma reunião em 1980 para criar o PT lá em um hotel em São Bernardo do Campo, tinha 90 deputados e tinha o Fernando Henrique Cardoso também. E o FHC dizia “ah, tem que mudar de nome, porque Partido dos Trabalhadores não dá”. E eu já completava dizendo “aqui não tem mudança de nome, não, se quiser entrar é Partido dos Trabalhadores”. Os trabalhadores são maioria, por que eu tenho que mudar o nome? E graças a Deus, deu certo.
O PT, para a desgraça dos meus adversários, é o mais importante partido político de esquerda da América Latina. Nós não queremos nos comparar nem ao cubano nem ao chinês, mas ninguém tem a experiência democrática. Qual é o partido no Brasil que faz um PED [Processo de Eleições Diretas] como nós fizemos, de 380 mil pessoas comparecem para votar? Qual o partido que faz isso?
Mas o PT também enfrentou uma onda de ódio muito grande.
Enfrenta ainda. Você não acha que o Flamengo, que tem a maior torcida do Brasil, não enfrenta ódio? Você sabe que o vascaíno pensa do Flamengo? Você sabe o que um palmeirense pensa do Corinthians? Assim são os outros pensando do PT.
Mas é diferente, né presidente, um clube de futebol e um partido.
Não, não é diferente. A sociedade é dividida assim, querida. São Paulo tem São Paulo, Palmeiras, Corinthians e Santos… O resto não conta. O Rio de Janeiro tem Vasco, Botafogo, Fluminense e Flamengo… O resto não conta.
Os partidos políticos são divididos assim. No Brasil, tem um partido político, o PT. Tem o PCdoB que é um partido político, legalizado. Se você for perceber, a maioria dos partidos políticos no Brasil sequer tem registro definitivo porque se você não tiver registro definitivo, você pode intervir em qualquer estado e em qualquer cidade. Se tiver um problema financeiro no partido do Acre, a direção nacional não assume. Agora, se você tiver registro definitivo, o problema é teu. Então, o PT é o único partido político que tem registro definitivo em todo o território nacional.
O MDB não tem?
O MDB não é partido político. Veja a história política do Brasil. O MDB são uma nação indígena com tribos diferenciadas que falam línguas diferentes em cada estado e em cada cidade. O MDB do Paraná não tem nada a ver com a direção nacional, que não tem nada a ver com o MDB do Maranhão, que não tem nada a ver com o MDB de Rondônia… Cada tribo é uma tribo. Vou te dar um exemplo: não tem ninguém que foi mais traído do que a melhor pessoa do MDB, que era do doutor Ulysses Guimarães.
Depois da majestosa participação dele na Constituição de 1988, depois dele ser candidato a presidente da República, ele só teve 5% dos votos para presidente porque o MDB, no Brasil inteiro, traiu ele. Todo mundo trabalhou para o Collor. E continua assim até hoje.
Nesse país, pode ter certeza, com todo o respeito a todas as legendas, só tem um partido político que funciona como partido político: é o PT.
E, por isso, somos atacados dia e noite. E eu acho que é o seguinte: nós temos que brigar. Quanto mais atacado a gente é, mais a gente tem que se defender. Eu acho que essa é uma das razões, Marina e Thiago, que eu resolvi vim para cá. Porque eu poderia não ter vindo.
Eu vim para cá porque era preciso resistir. Era visível que a Lava Jato estava se transformando em um conluio e numa quadrilha. Era visível. Era visível que gente era presa e a primeira pergunta que fazia era: “E o Lula? Conhece o Lula? Sabe do Lula?”. A senha era falar o nome do Lula. Esse Moro e aquele Bolsonaro tinham orgasmos múltiplos quando falavam o nome do Lula, não importa se fosse mentira.
Eu queria aproveitar perguntar das eleições para 2020.
Thiago Domenici — Como o senhor está imaginando a estratégia do PT daqui para frente com essas mudanças, inclusive, de legislação e da questão dos vereadores, de ser cabeça de chapa ou não ser cabeça de chapa. Enfim, qual a estratégia que o senhor está imaginando para o PT?
Tudo o que eu vejo aqui é pela imprensa, tá? Dizem que o PT não vai ter candidato em Porto Alegre, dizem que o PT não vai ter candidato em Florianópolis. O PT não tem candidato no Paraná, que o PT tem dificuldade em ter candidato em São Paulo, em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, no Espírito Santo. Quando terminar as eleições, o que será do PT? Como é que você vai ganhar o carnaval se você não se apresenta? Como seu porta-estandarte e o mestre sala vai ganhar algum prêmio, vai ter nota do juiz, se ele não se apresenta?
Então a ideia é ter cabeça de chapa?
O PT pode não ter cabeça de chapa em alguns lugares, mas na medida em que o PT é o partido mais importante, e o PT tem muitos quadros, as pessoas não podem ser candidatas apenas quando elas têm conveniência pessoal. Num partido como o PT o partido tem que fazer prevalecer a sua vontade e decidir quem vai ser candidato. Para o bem do partido, porque um bom candidato elege vereador; um péssimo candidato diminui a bancada.
As pessoas têm que saber que o PT perdeu milhares de vereadores nas últimas eleições. Foi a pior performance do PT. Pelo fato de você ter perdido as eleições em 2016, não significa que você enfia o rabinho entre as pernas como cachorro magro sarnento e fica quietinho, para não aparecer. Não.
É nessa hora que você tem que ir para a rua. É nessa hora que você tem que dizer por que você existe, tem que desafiar o seus desafetos. É nessa hora que você tem que se defender. Ora, qual a melhor oportunidade se não as eleições?
Marina Amaral — O senhor já tem os candidatos…?
Não, eu não tenho candidatos e não quero escolher. Eu acho que o PT pode tranquilamente apoiar o [Marcelo] Freixo no Rio de Janeiro. Tranquilamente. Teria o maior interesse se fosse convidado e tivesse voto em apoiar ele lá. Mas veja, a Benedita da Silva é uma personalidade política. O Lindbergh [Farias] é uma personalidade política. Ora, do que as pessoas têm receio de ir para a rua? Ora, vai, disputa as eleições, e quando chegar no segundo turno diz: “meu voto é de fulano”. Nada de Crivella, nada de Eduardo Paes.
Em Minas Gerais é a mesma coisa. O PT tem candidatos bons e um deles é o Patrus Ananias, que já foi prefeito. “Ah, eu não quero ser”. Peraí, quando você quer ser, você chega no partido diz que quer ser e o partido é obrigado a obedecer. Agora, o partido precisa de você, por que é que você não é? Mas se ele não quer, tem outras pessoas.
Eu, pelo menos, me encanto com uma professora que tem em Minas Gerais, a Bia [Cerqueira], que foi presidente da UTE [Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais]. Eu acho ela extraordinária. Seria novidade, seria uma mulher, inteligente, bonita, boa de briga…. Mas “ah, o PT tem compromisso com o [Alexandre] Kalil então não vai”. Então digam a verdade.
No Rio Grande do Sul, o PT tem dois ex-governadores, Tarso [Genro] e Olívio Dutra. O Olívio Dutra já foi prefeito, Tarso já foi prefeito, Raul Pont já foi prefeito, Miguel Rossetto já foi vice… Sabe, não tem candidato por quê? Por que vão apoiar a Manuela [D’Ávila, do PC do B]? Eu sou favorável que, se a gente não tiver chances, que a gente apoie a Manuela. Mas deixar de colocar o PT na rua… Quantos vereadores a gente vai eleger? É isso que eu defendo.
Eu não sou contra aliança, não… Onde o PT não tiver candidato, o PT apoia. É só ver nossas alianças em outros estados.
E no caso de São Paulo o senhor acha que a Marta Suplicy pode voltar para o PT? Parece que ela deu uma carta pro senhor.
Eu não acho. Eu retribui uma pergunta feita. Eu tive muitas relações com a Marta e com a família da Marta e com o Suplicy. Nós devemos muito a eles, porque vivemos muito na casa deles. E a Marta sempre foi uma figura de muita cortesia com o PT, de muita cortesia comigo e com a minha mulher, sabe? Antes de eu ser presidente, depois de ela ser prefeita. Então eu não misturo a minha relação pessoal com a minha relação política. Quando ela quis sair do PT por problemas que são de ordem pessoal, e xingou o PT, sabe, ela tinha suas razões, o PT tinha suas razões.
Ela disse que o PT era um partido corrupto.
Eu lembro que o Mangabeira tinha dito isso quando eu coloquei a pedido do Zé Alencar o Mangabeira de ministro. Aí eu fui anunciar o Mangabeira e a imprensa perguntou “Ai, mas ele chamou o PT de corrupto.” Aí eu falei “É uma boa hora para vocês perguntarem pra ele. Chama ele. Mangabeira, a imprensa quer saber por que você chamou o PT de corrupto.”
Olha, a Marta que se explique. Mas o PT não pode negar o direito dela querer conversar com o PT, e o PT conversar com ela. Se ela vai ser candidata do PT, acho difícil. Acho muito difícil.
Thiago Domenici — Mas as portas estão abertas pra essa negociação?
As portas estão abertas para conversa. Eu sei que o Jilmar [Tatto] já foi conversar com ela. Eu sei que o Emídio [De Souza, ex-presidente do diretório do PT em São Paulo] já foi conversar com ela, eu sei que a Gleisi [Hoffmann, presidente do PT] já foi conversar com ela. Não sei se o Haddad já foi conversar com ela. Mas a gente não pode deixar de conversar com uma figura como a Marta. Sabe, ela foi a melhor prefeita de São Paulo. Reconhecida pelo povo. Ela tirou uns dez pontos do Haddad na eleição passada quando foi pra prefeito.
Então o PT tem outros candidatos, tentamos lançar o Aluízio Mercadante, tentamos lançar o Haddad – eu sou um dos que não quer que ele seja [candidato]–, tentamos lançar o José Eduardo Cardozo, tem o Padilha, que foi ministro e secretário da saúde de São Paulo, tem o Jilmar Tatto que quer ser candidato. Então, o PT tem nomes.
Nós sabemos a dificuldade que nós temos, nós vamos enfrentar um governador e um prefeito, mais um ex-vice-governador e ex-governador, mais uma líder do governo. Como que o PT pode abrir mão dessa disputa, que é a chance que nós temos de ir para a rua e falar o que nós temos que falar, defender o que a gente acredita? Não pode. Aí se não for pro segundo turno, apoia. É assim que eu penso.
Marina Amaral — O senhor falou da Marta, e eu quero fazer uma pergunta bem pessoal que há muito tempo eu penso nisso. O senhor indicou a Dilma para presidência, foi a primeira presidenta do Brasil, mas mulheres fortes e petistas históricas como a Luiza Erundina, Marta Suplicy, Heloísa Helena, Luciana Genro, Marina Silva, todas acabaram saindo do partido em uma situação de briga, de discórdia. A Marina, por exemplo, foi derrubada do Ministério do Meio Ambiente, né.
Marina, não é verdade.
É o que ela diz e é o que a gente mais ou menos percebe. Por que o senhor colocou o Mangabeira Unger, ela se sentiu numa condição…
Pera aí. Se um jogador que é titular do meu time se recusa a jogar porque eu escalei um outro jogador em outra posição, realmente essa pessoa não serve para trabalhar no coletivo. A Marina não pode ser injusta. Ela é evangélica e ela não pode cometer o erro de contar mentira. Eu vou lhe contar uma história. A Marina foi no meu gabinete e pediu para não ser ministra. Você sabe quem foi no meu gabinete pedir que eu não podia tirar a Marina? Dilma Rousseff e Gilberto Carvalho. E a Marina ficou mais um ano. A Marina saiu porque ela queria sair. Chega uma hora que as pessoas cansam de fazer a mesma coisa, ela tinha pretensões políticas. Depois dela entrou o [Carlos] Minc. E depois a Izabella [Teixeira].
Marina, eu tenho orgulho de ter indicado a Dilma presidenta da República. Eu tenho orgulho.
Talvez eu tenha culpa de não ter contribuído para que ela aprendesse um pouco de maleabilidade política. Porque a Dilma foi indicada por mim porque ela foi a pessoa mais extraordinária que eu conheci do ponto de vista de seriedade, do ponto de vista de competência de gestão.
A Dilma me deu a tranquilidade para governar esse país. Porque a Dilma, como não disputava nada com ninguém, sabe, a Dilma, a Graça [Foster, ex-presidente da Petrobras], a Miriam Belchior [ex-ministra do Planejamento, Orçamento e Gestão], a nossa ministra do combate à fome, a Márcia Lopes, essas mulheres me deram uma segurança.
Porque o que eu pedia para elas não tinha chuva, não tinha raio, não tinha feriado, não tinha dia de finados. O que eu pedia, em poucas horas estava na minha mão.
Eu achava engraçado que muitas vezes a Dilma entrava numa reunião – porque sempre ela fazia uma reunião antes com as pessoas – ela falava: “se alguém for mentir pro presidente, eu vou dizer que é mentira”. Aquilo me dava uma tranquilidade para governar esse país, sabe? Eu não tinha outra pessoa para escolher se não fosse ela.
Eu tinha que entregar o país para alguém e a Dilma foi extraordinária presidenta. Eu confesso, e aí eu posso fazer uma autocrítica, eu, por cuidado e por zelo, disse que eu ia desencarnar do governo. E não é legal alguém que é ex ficar dando palpite. A não ser que a pessoa pedisse.
E eu acho que eu procurei não ter influência na Dilma, diferentemente do que as pessoas acham que eu mandava no governo. A Dilma não aceita que ninguém mande no pedaço dela, tá? Ela não aceita nem o Lula nem o Papa Francisco. O pedaço dela é dela. Eu não sei se é de todas as mulheres assim, mas é verdade.
O senhor disse antes que ela não disputava nada com ninguém.
Ela não disputava. Ela jamais imaginou ser candidata a presidenta da república.
Mas uma vez que ela foi…
Eu cometi um outro erro, que eu poderia ter discutido com ela 2014. Eu sentia a Dilma depois das eleições um pouco triste. A sensação de que não era aquilo que ela queria. Eu lembro que ela me disse: “nunca mais eu participo de um debate”. E a Dilma era uma mulher que conhecia o Brasil de cor e salteado. Ela tinha o Brasil na palma da mão. Eu coloquei ela como mãe do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] em junho de 2007.
A Dilma conhecia cada coisa. Mas ela parece que tinha insegurança. Ela ia pro debate, sabe, escrevia verdadeiros livros para ir pro debate, ela não precisava de nada, ela deveria ir de mão e peito abertos. E eu não sei, eu sinto falta de não ter me metido mais no governo da Dilma. Sinto falta.
Agora, se eu tivesse me metido, iam dizer: “caiu porque o Lula se meteu”. Porque também as pessoas vão criando outro círculo de amizade, outro círculo de confiança. Você tem que se mancar de vez em quando.
Mas eu continuo dizendo pra você uma coisa, se tem uma pessoa que eu tenho um profundo respeito e admiração… Acho que faltou a ela e ao partido compreensão política sobre o impeachment. De qualquer forma, aconteceu e não adianta ficar chorando leite derramado. É tirar novo leite e começar.
Thiago Domenici — O senhor deu uma entrevista para a BBC recentemente, em que o senhor afirma ter orgulho de Belo Monte. E Belo Monte é um tema que suscita muitas críticas ao seu governo e ao governo da Dilma. De fato, o senhor tem realmente orgulho, mesmo com todas as críticas do movimento indígena, os ribeirinhos, com todas as questões que o MPF colocou? São 25 ações, né?
As pessoas que hoje fazem crítica a Belo Monte, essas pessoas faziam antes. Tem gente que não aceita energia hídrica nem se o Papa Francisco vier aqui oferecer. Tem gente que acha que tem que ter um outro tipo de energia, a energia eólica, a energia solar, a biomassa. Tem gente que é contra isso, que é contra termelétrica, que é contra usina nuclear. Acontece que quando você é governo, você tem que fazer as coisas. Seria muito mais grave o dia que faltasse energia.
Veja, quando nós começamos a pensar Belo Monte, a Dilma era ministra da Casa Civil. O Lobão era ministro de Minas e Energia e o Minc era ministro do Meio Ambiente. Depois o Minc saiu para ser candidato a deputado. A Dilma saiu para ser candidata à presidência, assumiu a Erenice e continuou o Lobão. E a exigência que eu fazia era que a gente só poderia construir Belo Monte, se fosse fio d’água. Não podia ter lago.
Segundo, naquele tempo, a Odebrecht e a Camargo Corrêa tentaram boicotar o governo dizendo que não iam participar. Eu chamei o Lobão e disse que era uma questão de honra para o nosso governo. Nós não vamos virar refém de empreiteira. Se eles não quiserem participar, a Eletrobras assume a responsabilidade de coordenar o consórcio.
E aí a Casa Civil foi cuidando disso com o ministro de Minas e Energia. Eu tenho aqui uma carta do MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens]. Foram feitos vários acordos com o MAB. Foi feito plano de desenvolvimento regional. Em outubro de 2010 eu assinei um decreto que instituiu um cadastro socioeconômico dos atingidos por barragens. Foi criado um comitê provisório para isso.
A condição sine qua non que eu dei para fazer Belo Monte era que fosse conversado com todas as pessoas envolvidas.
A questão de Belo Monte também tem várias terras indígenas afetadas. Não deveria ter sido programado o fortalecimento da Funai?
Mas foi. Foi. Você pesquisa na história se em algum momento a Funai teve 10% do respeito que ela teve comigo, quando eu era presidente da República. Para começar a obra, a empresa teve que cumprir 60 exigências ambientais e sociais colocadas pelo Ibama e pelas populações locais. E ela cumpriu rigorosamente todas, ou não teríamos autorizado.
Eu falo sempre que eu e a Dilma somos responsáveis pela construção de Belo Monte e eu não concordo com as críticas. Eu tive reunião com o Ministério Público, eu tive reunião com bispo, eu tive reunião com índio, eu tive reunião com sindicalista. E não foram poucas.
Eu acho que a pessoa pode discordar, mas o que nós fizemos foi garantida a integridade dos 12 territórios [indígenas], uma área, 11 terras indígenas ocupadas pela população indígena do médio Xingu. Nenhum dos mais de 5 milhões de hectares ocupados por oito etnias foi alagado pela reserva. Só para você ter ideia: 12 reuniões públicas, 10 oficinas com comunidades, 15 fóruns técnicos, 4 deles em Belém, reuniões com gestores públicos na região do Xingu, 30 reuniões em aldeias indígenas com a participação de aproximadamente 1700 indígenas, visita dos agentes de comunicação social dos projetos, 5238 famílias, 61 reuniões de comunidade com a presença de 2100 pessoas e 10 palestras em escolas de ensino fundamental e médio para aproximadamente 530 alunos. Quer dizer, nós ainda fizemos um apanhado de 396 mil animais silvestres foram resgatados. Desses, 92% foram soltos e apenas 8% foram levados para instituições porque estavam feridos ou machucados.
Então, deixa eu dizer uma coisa para vocês. Faz dez anos, eu deixei a presidência em 2010, a Dilma assumiu em 2011, as obras começaram a ser construídas em junho de 2011. Eu, pelo que eu conheço da Dilma, eu duvido que a Dilma tenha deixado começar alguma coisa sem cumprir os acordos que foram feitos. Duvido.
Marina Amaral — E porque então os resultados foram terríveis para as populações que estavam ali?
Eu gostaria que vocês procurassem a Izabella lá em Brasília, procurassem a Erenice lá em Brasília. Porque isso está escrito e documentado. Olha, 10 anos depois, você não pode perguntar para mim.
Olha Lula, se o Brasil tinha PAA para comprar alimento para agricultura familiar, esse país tinha bastante escola técnica, esse país tinha isso e agora não tem mais, que culpa que eu tenho se entrou esses fascistas para destruir o país? Olha, se depois que tiraram a Dilma do governo as pessoas deixaram de cumprir os pressupostos acordados, o que que eu posso fazer?
Altamira virou uma favela, mas aí não é culpa da hidrelétrica. É culpa do modelo de desenvolvimento.
São Paulo tinha 2 favelas nos anos 70. Hoje tem 3 milhões de pessoas morando em favela. Então é preciso a gente ligar que possivelmente a hidrelétrica tenha sido motivação de muita gente sonhar que indo para Altamira ia ter algo que não teve. Eu não sei quem prometeu isso.
A hidrelétrica foi feita para gerar uma quantidade de energia para ser colocada na rede federal para atender aos interesses produtivos desse país. E ela foi feita com todo o cuidado.
Thiago Domenici — Nessa linha ainda. O que diferencia a política do PT para a Amazônia daquela defendida por Bolsonaro e militares do atual governo?
Você estava ainda nessa pergunta por causa de uma bobagem que o companheiro Raoni falou [o líder indígena afirmou à BBC que a luta dos indígenas contra Bolsonaro é a mesma que contra Lula e Dilma]. Eu vou te dizer que no nosso governo, a gente diminuiu 80% o desmatamento na Amazônia. A gente foi para Copenhagen e assumiu o compromisso, e foi aprovado em lei, que o Brasil iria diminuir a emissão de gases de efeito estufa em 80%. E nós cumprimos. Depois que a Dilma deixou o governo, cresceu 280% o desmatamento.
Quando eu sair daqui, pode ficar certo que eu vou a Altamira.
Marina Amaral — Deixa eu perguntar uma última coisa. O senhor é um homem da política do ganha-ganha. A gente tinha uma visão da sociedade brasileira quando o senhor estava no governo, que havia conciliação possível. Foi o que o senhor sempre disse. O senhor descobriu que havia um Brasil, esse Brasil que votou no Bolsonaro, o senhor estava enganado antes? O que aconteceu? Onde estavam essas pessoas?
Essa gente estava onde tá hoje. Essa gente existe. Essa gente foi pra praia com você, muita dessa gente já almoçou com você, já jantou com você, já trabalhou com você.
Essa gente não se manifestava porque logo depois que terminou o regime militar, era muito vergonhoso as pessoas assumirem que tinham alguma aliança com o regime militar. Nem os militares se apresentavam. De repente essa gente parece que ressurgiu, como os dinossauros. Essa gente tava aí e foi promovida pelo ódio disseminado pela política da Rede Globo de Televisão.
Volto a dizer, a Rede Globo tem muita responsabilidade pelo ódio disseminado nesse país. Porque ela pregou o ódio da política. Toda vez que você prega o ódio à política, o que nasce é pior. Você tá lembrado do Jânio Quadros, ele foi eleito com a vassourinha. Tá lembrado do Collor? Foi eleito com o mesmo discursinho. Toda vez que você levanta o discurso de que o problema do país é a corrupção, o que vem é pior.
O Bolsonaro conseguiu enganar um terço da população de que ele não era político, apesar de só ter trabalhado na vida na política. 32 anos de mandato, e conseguiu passar que não era político. Nunca entrou num partido que prestasse, porque ele não quer saber de partido, ele quer saber dele.
Ulysses Guimarães falava: toda vez que se fala em mudança radical, o que vem é pior.
É importante lembrar, Marina, que eu fui candidato várias vezes. Eu sempre tive 30% dos votos. Eu tive 17% em 1989, depois 24%, depois 32%, e depois eu ganhei. Mas a sociedade brasileira é ideologicamente dividida assim: você tem 30% que tá mais pra esquerda. Você tem 30% que tá mais pra direita, e você tem um pouco mais de um terço, que é a sociedade que fica na expectativa de ver o que vai acontecer, de ver se o candidato é bom.
Você vê, eu tive 47%, a Dilma teve 47%, vou chegar a 60% no segundo turno, porque você conquista um pedaço. Então esse um terço o Bolsonaro ganhou uma parte através da mentira. Que pode chegar a 15% – que aí é o fake news.
Quem vinha fazendo política há muito tempo sabia que existia uma indústria de fake news com discurso próprio. Como esse das hienas.
Esse discurso das hienas não foi feito pra você, não foi feito pra mim, foi feito pros milicianos dele. Isso é dirigido.
Então é assim, ele [Jair Bolsonaro] que era tão favorável a minha punição, que achava que eu reclamava demais… Eu vi ele na televisão. Você nunca me viu num gesto histérico como ele ontem. Um presidente não pode ser assim.
Um presidente tem que ter calma. Um presidente, quando ele fala, ele tá falando pro povo. Se não, não tem necessidade dele ir na televisão.
Agora, ele aprendeu a governar com fake news. Fake news é de quem não quer responder, de quem não quer falar. Fake news é de quem quer futrica. Então o presidente da República… Ele e o Trump. Outro dia eu vi uma matéria, o Trump conta não sei quantas mentiras por dia. Vocês já contaram quantas mentiras o Bolsonaro conta?
Ele não tem nenhum compromisso com a verdade. Aqueles filhos do Bolsonaro, eles sentem prazer de ser mentirosos. Eles não agem com seriedade. Então é o seguinte, esteja certa de uma coisa: esse ser humano que vos fala está com muita disposição de brigar nesse país. Eu não aceito a ideia de que o Brasil seja destruído como está sendo destruído. E o Bolsonaro falar as bobagens dele pra entreter o povo, entreter a imprensa, e o [Paulo] Guedes vai vendendo o Brasil, e vai vendendo o Brasil e daqui a pouco nós não somos mais uma nação. Perdemos a nossa soberania.
Então, eu espero que vocês estejam muito vivos e fortes pra ver esse país voltar a sorrir. Pode ficar certo, Marina. É muito melhor ser bom, é muito melhor ser agradável. Você come melhor, você dorme melhor, você tá de bem com a vida. Você imagina eu, não poderia estar aqui chorando? Estou aqui rindo pra vocês e dizendo pra vocês: primeira coisa que quero fazer quando sair daqui é casar outra vez.
Colaborou: Anna Beatriz Anjos, Ethel Rudnitzki, Rute Pina e Rafael Oliveira.
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