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Lula, Gaza e Holocausto: ter senso crítico não é cruzar linha vermelha

Como chefe de Estado, Lula não deve se furtar de emitir sua percepção acerca do conflito entre Israel e Palestina
Verbena Córdula
Diálogos do Sul
Salvador (BA)

Tradução:

O termo genocídio foi cunhado pelo jurista polonês Raphael Lemkin em 1944, e é definido como atos cometidos com a intenção de destruir, de modo total ou parcial, um grupo étnico, racial, religioso ou nacional. Esses atos podem incluir, entre outras coisas, assassinatos em massa, danos físicos ou mentais graves, imposição de condições de vida que prejudiquem fisicamente o grupo.

A prática, principalmente a partir do assassinato em massa, ocorreu em várias partes do mundo, em variados momentos históricos. Tomando esse conceito como base, o que está acontecendo na Palestina não é um genocídio? O presidente Lula não tem razão ao dizer que as incursões do Estado de Israel contra mulheres e crianças palestinas são atos genocidas e lembram o que ocorreu na Alemanha nazista?  

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A definição legal de genocídio teve sua formalização na Convenção para a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio, criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948. Foi convencionado, naquela ocasião, que genocídio é um crime internacional, pode ser punido, e é um dos mais graves atentados aos direitos humanos

Os atos genocidas em geral trazem em seu bojo discriminação e perseguição com base em características como etnia, religião, nacionalidade ou raça. O genocídio é caracterizado por sua natureza sistemática e intencional de destruição de um grupo como um todo.

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Foi assim no Império Assírio, no século VIII a.C.; na Alemanha nazista, durante a Segunda Guerra MundialIugoslávia, nos Bálcãs; em Ruanda, na África Ocidental. Me parece que, infelizmente, está sendo assim em Gaza, porque retaliar os ataques do Hamas matando pessoas inocentes, principalmente crianças, mulheres e idosos, não tem outra explicação.

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Como chefe de Estado, Lula não deve se furtar de emitir sua percepção acerca do conflito entre Israel e Palestina

Montagem | Fotos: Agência Brasil
Lula não pode se deixar intimidar, nem pelos sionistas, nem pela oposição irracional a seu governo




Genocídios na história da humanidade

O primeiro genocídio documentado na história da humanidade geralmente é associado ao Império Assírio, no século VIII a.C., e ocorreu durante o reinado do rei assírio Salmaneser III, tendo alcançado seu auge sob o governo de seu sucessor, Sargão II. Os assírios – que habitavam uma região que hoje corresponde principalmente ao norte do Iraque, ao nordeste da Síria e a partes do Irã – eram conhecidos por seu império militarmente poderoso e brutal. O genocídio em questão teve como alvo os povos do Reino de Israel, após a queda de Samaria em 722 a.C., quando as tribos do norte de Israel foram deportadas, além do fato de muitas terem sido assimiladas por outros povos.

Os métodos assírios de genocídio incluíam o uso de táticas de terror, como, por exemplo, o esquartejamento público e a exibição de corpos mutilados. Com essas práticas buscavam dissuadir qualquer resistência. As deportações em massa também eram outro método comum, o qual também visava destinadas inibir a qualquer tentativa de resistir, afinal, a dispersão das populações tornava a resistência menos plausível.

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Como é possível perceber, ainda que o termo “genocídio” tenha sido cunhado na Idade Contemporânea, essas atrocidades cometidas pelos assírios apresentam características que se associam a ele, pois inclui a destruição deliberada de um grupo étnico, racial, religioso ou nacional. Este episódio na Antiguidade serve como um lembrete acerca das tendências destrutivas da humanidade ao longo da história, assim como ressalta a importância de reconhecermos e prevenirmos esses atos de violência extrema. Mas, infelizmente, os avanços tecnológicos e científicos, bem como a chamada “civilidade” tão apregoada pelo Ocidente não nos têm livrado dessas atrocidades. 

Em abril de 1994, após o assassinato do presidente ruandês hutu Juvénal Habyarimana, as tensões étnicas escalaram rapidamente e desencadearam um genocídio contra os tutsis, um dos três povos nativos das nações centro-africanas de Ruanda (e também Burundi), os últimos povos a estabelecer-se naqueles países. Encorajadas por membros do governo e outros grupos, as Milícias hutus – formadas pelo grupo majoritário em Ruanda –propagaram mensagens de ódio e iniciaram uma campanha brutal para eliminar os tutsis e hutus moderados. Durante aproximadamente 100 dias foram perpetrados massacres em grande escala, bem como estupros em massa e torturas, o que resultou em um número estimado de 800.000 a 1 milhão de mortos. 

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O genocídio em Ruanda é um lembrete trágico das consequências devastadoras do ódio étnico e da negligência internacional. Aquela “limpeza étnica” em Ruanda converteu-se em um dos episódios mais trágicos e violentos da história recente da humanidade, que teve raízes históricas nas tensões étnicas entre os grupos majoritários hutus, e minoritários, tútsis, agravadas pela colonização belga, a qual contribuiu, de modo significativo, para a criação de divisões sociais e políticas naquela nação africana. Infelizmente, muita gente já esqueceu.

Na mesma década de 1990, outro exemplo significativo de “limpeza étnica”, ou genocídio, ocorreu durante os conflitos na ex-Iugoslávia, na região da Bósnia e Herzegóvina, de modo especial entre os anos de 1992 a 1995, na chamada Guerra da Bósnia, onde croatas, sérvios e bósnios muçulmanos foram vítimas de violência étnica, levada a cabo através de massacres, estupros e deportações em larga escala. 

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Entre as principais atrocidades, se destacou o genocídio ocorrido em Srebrenica, uma cidade bósnia muçulmana, em julho de 1995, quando forças sérvias lideradas pelo general Ratko Mladić dominaram a cidade e assassinaram mais de 8.000 homens e meninos muçulmanos. Ali também houve campos de concentração, execuções sumárias, deslocamento forçado de populações, entre outras atrocidades. 

Mas, sem dúvida, o Holocausto, um dos episódios sombrios da história da humanidade ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial, entre 1941 e 1945, é o mais lembrado pelas pessoas. Naquele trágico período, o regime nazista perpetrou um genocídio sistemático contra diversos grupos, especialmente judeus. Estima-se que aproximadamente seis milhões de judeus foram brutalmente assassinados pelos nazistas, em campos de concentração, extermínio e execuções em massa. Além dos judeus, outros grupos também foram alvos do regime nazista, incluindo ciganos, pessoas com deficiência, homossexuais e dissidentes políticos.


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Dito isso, torna-se indispensável deixarmos de lado nossas preferências políticas, geopolíticas, culturais, entre outras, e nos debruçarmos apenas como seres humanos, sobre o que vem acontecendo em território palestino desde a formação do Estado de Israel, em 1948. Naquele ano, quase 80% do território palestino foi tomado pelos israelenses. Foram 78% do território palestino ocupado/invadido. Os números de pessoas forçadas a deixar suas casas está estimado em mais de 700 mil. 

De la para cá, o povo palestino só conheceu hostilidades por parte dos governos de Israel. Em 2008, 2012, 2014 e 2021, Israel desferiu ataques militares contra o povo palestino, atingindo residências, hospitais, escolas, e, consequentemente, matando milhares de pessoas. E desde outubro de 2023, após ter sofrido um ataque inesperado do Hamas, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu partiu, como nunca, em uma investida militar feroz, desumana.

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Conforme reportagem da BBC Brasil publicada em novembro de 2023, Israel acusa o Grupo Hamas, considerado terrorista, de ter matado mais de 1.400 israelenses e cidadãos estrangeiros em consequência do ataque desferido no dia 7 outubro. “As autoridades israelenses identificaram 1.159 dos mortos naquele dia, incluindo 828 civis e 31 crianças”. No entanto, ressalta a mesma reportagem, “do lado palestino, quando a guerra entrava na sua quinta semana, o número de mortos em Gaza e na Cisjordânia atingiu um marco sem precedentes”. O texto da BBC Brasil informa, ainda, que, em 6 de novembro, o Ministério da Saúde palestino em Gaza, dirigido pelo Hamas, disse que “em média, uma criança foi morta a cada 10 minutos” pelas forças israelenses.

Esses números, atualizados por várias fontes, indicam que houve um aumento exponencial da força letal israelense contra o povo palestino. As últimas informações dão conta de que já foram mortas quase 30 mil pessoas, entre as quais crianças e mulheres, que nada têm a ver com o exército do Hamas. 

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Diante desse quadro, como podemos criticar o Presidente Lula pelas duras falas em relação ao que está ocorrendo em Gaza, e diante, sobretudo, da omissão da maioria dos governos/governantes do Planeta? 

Independentemente de gostar ou não do mandatário brasileiro, é preciso ressaltarmos o nosso senso de humanidade, como bem disse Lula. E é muito importante salientar que o presidente brasileiro não comparou Gaza com o Holocausto, mas o que ele disse, a meu ver, foi que a fúria com a qual o governo israelense se lança contra o povo palestino lembra a fúria daquele nazista alemão contra os judeus. Foi assim que compreendi a fala de Lula.

O Presidente Lula teve muita coragem para dizer o que disse. E, a meu ver, não mostrou-se antissemita. Pelo contrário. Ele quis chamar Netanyahu à reflexão. No entanto, parece que o ódio do mandatário israelense extrapola a sua capacidade de raciocinar. Pelo menos é o que parece. Ademais, muitas pessoas estão acostumadas à maldita polarização: se se tece uma crítica ao Estado judeu, é antissemita. É como aqui no contexto político brasileiro: uma crítica feita à Lula e ao PT, é porque a pessoa é “bolsonarista”; uma crítica feita a Bolsonaro, coloca a pessoa nos braços do PT e do Presidente Lula, ainda que não seja assim.  

Nós, seres humanos, precisamos conviver bem com a crítica. Nem tudo é 8 ou 80! Precisamos valorizar o pensamento crítico. Mais do que isso: precisamos usar o pensamento crítico para o nosso próprio crescimento enquanto sociedade. Do contrário, estaremos nos digladiando todo o tempo, deixando de construir coisas boas que nos beneficiem. As divergências e diferenças sempre haverão. Esse é um traço fundamental da convivência humana. Mas o respeito precisa prevalecer. E, sobretudo, o senso de humanidade. Não podemos aceitar a desumanização do outro. Ainda que esse outro tenha ideias divergentes às nossas.

E quanto à reação de Netanyahu à fala de Lula, espero que o nosso Presidente não ceda à arrogância típica do mandatário israelense. Como chefe de Estado, Lula não deve se furtar de emitir sua percepção acerca do conflito entre Israel e Palestina, sobretudo porque, antes de mais nada, ofereceu-se como mediador, antes de criticar. De fato, já escrevi em um texto anterior que mandatários que não estão de acordo com essa incursão israelense deveriam se pronunciar de modo mais contundente, como o fizeram os da Bolívia e Colômbia. Lula não pode se deixar intimidar, nem pelos sionistas, nem pela oposição irracional a seu governo que está tentando usar esse fato para desestabilizar seu governo. Ter senso crítico não é cruzar linha vermelha. 

Verbena Córdula | Doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporâneo pela Universidad Complutense de Madrid. Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, Bahia. 


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Verbena Córdula Graduada em História, Doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporânea pela Universidad Complutense de Madrid e Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, BA.

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