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Maio terminou e nas ruas de Paris não há rastros do que aconteceu há 50 anos, mas muitos artigos em diários e revistas, entrevistas na televisão, novos livros revisionistas, etc. Os que o viveram e os que não, igualmente, querem opinar sobre o tema. Sensatas análises políticas se estendem sobre a “revolução estudantil” de maio de 1968, para todos um momento de inflexão que mudou a França, embora para alguns como Regis Debray tenha significado “a primeira contrarrevolução triunfante”.
Alfonso Gumúcio*
Já não existe a praia debaixo do calçamento porque nas avenidas e ruas onde os estudantes armaram suas barricadas já não há pedras, só esse pavimento perfeito que torna homogênea a cidade, sobre o qual são pintadas as flechas, as mãos de direção e os sinais do que está permitido e do que está proibido. É um paradoxo a mais nesta cidade de bem-estar, onde o proibido goza de amplo consenso, a sociedade da vigilância se protege, onde já poucos marcham pelas grandes causas mundiais e menos ainda pelas causas nacionais.
“Sous les pavés la plage” (debaixo do calçamento está a praia) era um dos grafites mais emblemáticos de maio de 1968, símbolo de que escavando as ruas cinzentas e sóbrias de Paris, se poderia encontrar a areia, o sol e outro horizonte.
E não era para menos: a sociedade francesa estava em decadência. Algo tão evidente que o prestigioso colunista do Le Monde Pierre Viansson-Ponté publicou no dia 15 de março um artigo intitulado “Quand la France s’ennuie” (“Quando França se entedia”), onde, em 15 parágrafos, descreve um país sumido na apatia, no racismo, na indiferença e na falta de solidariedade. O “francês médio” era um cidadão medíocre que não participava na política, que não se interessava pelo mundo e que vivia resmungando sem motivo.
Era sem dúvida um texto premonitório da revolta de estudantes de maio de 1968, quando eles saem às ruas para manifestar seu descontentamento contra essa sociedade repressiva e desgastada pela mediocridade e pela apatia. Os franceses, adormecidos pela televisão e satisfeitos com sua baguete embaixo do braço e uma taça de vinho tinto, não enxergavam além de seus narizes.
O que veio depois conhecemos bem e foi objeto de livros, artigos e filmes. Tanto a direita no poder, como a esquerda tradicional se encontraram, de um dia para outro, desconcertados e sem poder entender o que estava acontecendo. Apesar da violência das manifestações e da repressão dos agentes antidistúrbios da Polícia Nacional francesa, conhecidos como CRS, somente houve uma morte acidental nesses dias que fizeram balançar o governo, embora como diz a sabedoria popular “Plus ça change” (mais do mesmo).
Não foi um “momento fundador” da França contemporânea, tão direitizada hoje como então, mas me consta que mudou a vida cotidiana de uma geração, porque vivi aqui seis anos quando ainda esse espírito estava fresco, e senti que as pessoas haviam mudado, a vida universitária era outra, os valores tinham sido recuperados, entre eles um muito importante: a solidariedade (e o sentido do humor, essencial).
Embora maio seja o mês chave, o movimento começou em 22 de março na Faculdade de Nanterre, com Daniel Cohn-Bendit (o “anarquista alemão”, segundo escreveu depreciativamente o comunista Georges Marchais), um dos líderes históricos do movimento, hoje membro do Parlamento Europeu pelo Partido Verde, ecologista.
Daí em diante, uma bola de neve em plena primavera. Expulsos de Nanterre se instalam no coração de Paris, na Sorbonne, e mobilizam os estudantes dessa universidade símbolo da cultura francesa. De 6 a 31 de maio, das barricadas à greve geral de 8 milhões de trabalhadores, Vietnã, Palestina, o Che, Mao, o discurso de De Gaulle… Enfim, a cronologia que já conhecemos.
O que eu vivi na Faculdade de Vincennes, criada para encurralar os revoltosos, e o que senti na vida cotidiana no início da década de 1970 nos jovens como eu, era maravilhoso: muita avidez por se meter com o “mundo mundial”, de saber tudo, de ler, de fazer filmes provocadores, de inventar slogans com pura poesia que o Atelier Populaire (ex- Escola de Belas Artes) imprimia em serigrafia: “Proibido proibir”, “Sejam realistas, peçam o impossível” e outros.
Essa atmosfera de mudança, sem preconceitos, livre, durou todo o tempo que vivi em Paris. Hoje, Viansson-Ponté poderia escrever o mesmo artigo… mas ninguém o leria.
A insurreição é o acesso de furor da verdade.
Às vezes insurreição é ressurreição.
—Victor Hugo.
*Colaborador de Diálogos do Sul, de La Paz, Bolívia