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ToggleA questão habitacional é um problema antigo no Brasil, remonta do período colonial e persiste até hoje. Apesar de ser um direito fundamental garantido constitucionalmente, o acesso à moradia vem sendo constantemente negligenciado e negado para grande parte da população.
A carência habitacional é resultado da extrema desigualdade social existente no país e de um projeto de expansão urbana ancorado na segregação socioespacial como sinônimo de modernização e progresso. Sem uma renda adequada, grande parte das famílias não possui acesso a uma moradia com condições mínimas de habitação e segurança, fazendo com que muitos sejam esquecidos e colocados à margem da sociedade em favor da especulação imobiliária que aumenta desenfreadamente.
A lógica do mercado imobiliário, no qual os custos de compra de terras e imóveis são demasiado altos, associada à carência de políticas públicas eficientes no campo habitacional, fazem com que a aquisição da casa própria seja praticamente impossível para as camadas mais pobres da população, renegadas a viver de modo precário, sem acesso adequado a infraestrutura urbana, como transporte, educação, saúde e lazer.
Dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania revelam que, em 2022, 236,4 mil pessoas viviam em situação de rua no país – um em cada mil brasileiros. Somado a isso, 5,9 milhões de pessoas vivem em déficit habitacional.
Em razão disso, a luta por moradia no Brasil se insere como uma importante e histórica bandeira dos movimentos sociais e se materializa por meio de ocupações de imóveis e terrenos desocupados ou sem função social por um lado e através da institucionalidade por outro.
Nesse cenário, as mulheres, não por acaso, têm se inserido como líderes nesse processo, mostrando não só o avanço de uma luta feminista classista e pelo direito à cidade e à moradia, mas também a feminilização da pobreza.
A questão habitacional no desenvolvimento do país
No Brasil, o desenvolvimento das cidades foi baseado na negação do acesso à terra e à moradia à população mais pobre. Em decorrência disso, a história da ocupação das terras no país é a história da ocupação irregular. O início da questão habitacional remonta ao período da colonização. Já naquele contexto, populações indígenas, negras, migrantes, e, de forma geral, aqueles que constituíam a base da pirâmide social, tiveram restrição de acesso à propriedade em razão de uma crescente lógica mercantil.
Em meados do século XX, em virtude da política desenvolvimentista da era Vargas, o Brasil se industrializou em altos índices e vivenciou uma explosão migratória para o meio urbano. Durante esse período, as cidades brasileiras vivenciaram o crescimento de cortiços e favelas em grandes proporções. As regiões mais afastadas dos centros tornavam-se as únicas áreas nas quais os trabalhadores conseguiam estabelecer residência em razão do aumento dos preços de lotes e imóveis. Entretanto, essa ocupação das periferias não foi acompanhada de um processo de desenvolvimento de tais locais. O resultado disso foram regiões com alta concentração de barracos e habitações precárias, sem infraestruturas adequadas de acesso e manutenção da vida.
Com a globalização nos anos 1980, a questão da terra colocada como mercadoria se agrava. A modernização crescente só produzia aumento das desigualdades e segregações urbanas e precariedade nas condições de vida e moradia. Explicando isso, o cientista político Lúcio Kowarick, contrariando o senso comum, aponta que não há crescimento desordenado, nem caótico, nas cidades brasileiras. Pelo contrário, o crescimento urbano no Brasil é caracterizado por um mesmo padrão: expansão de periferias pobres e autoconstruídas.
A aparente desordem apresenta assim uma lógica: a segregação da pobreza e da riqueza de setores sociais não se apresenta como um desvio ao modelo de desenvolvimento urbano e portanto explicável pela ausência do Estado ou de planejamento urbano. Contra essa hipótese da ausência, a noção de espoliação urbana desenvolvida por ele demonstra que crescimento e pobreza não são opostos.
Na realidade, crescimento e pobreza retroalimentam-se. A partir dessa lógica, crescimento é sinônimo de produção de pobreza. A partir dessa percepção entende-se o papel de mecanismos como a especulação imobiliária, a gentrificação dos espaços e mesmo a ausência de políticas públicas habitacionais eficientes e de um plano diretor que leve em conta o direito à cidade à população periférica. Tais tecnologias colocam-se como mecanismos de manutenção das lógicas desiguais no espaço, garantindo a conservação dessa segregação.
A luta por moradia
Em contrapartida a esse processo e, sobretudo, como resultado dele, passou-se a se desenrolar também meios que permitissem o acesso à moradia à população mais pobre, ainda que de modo irregular. Principalmente a partir do século passado, populariza-se a tática de ocupações urbanas de terras sem função social, em paralelo ao âmbito institucional, marcado por batalhas pela garantia do direito à moradia contra esse projeto de desenvolvimento.
Do ponto de vista institucional, observa-se um crescente – mas ainda completamente insuficiente – debate sobre a questão da habitação desde os anos 70, passando pelo importante marco da Constituição de 88 que incorporou uma série de avanços no campo urbanístico ao dedicar um capítulo específico à Política Urbana e estabelecer a noção de que as propriedades urbanas subordinavam-se ao cumprimento da função social. Complementarmente, em 2001, foi aprovado o Estatuto da Cidade, resultado direto de duas décadas de mobilização política e participação popular. A aprovação do estatuto representou um novo marco regulatório para a política urbana, definindo instrumentos que visavam garantir o direito à cidade e à moradia digna, a função social da propriedade e a democratização da gestão urbana.
Desse modo, nas últimas décadas, os debates sobre os direitos à moradia e à cidade se desenrolam nas instituições de modo crescente, permitindo avanços importantes, como a implementação de políticas públicas e projetos de moradia popular, como foi o caso do Projeto Minha Casa Minha Vida. Contudo, tais projetos não rompem com o processo segregacionista do desenvolvimento urbano apontado por Kowarick. As residências criadas se encontram muitas vezes em locais sem infraestrutura urbana, são precárias e ainda com número insuficiente de vagas.
Assim, as ocupações e demais projetos de organização e mobilização da sociedade civil em relação a essa questão surgem como resposta a essa incapacidade institucional de resolver o problema de modo eficiente. É cada vez maior o número de ocupações de edifícios vazios pelos movimentos de moradia organizados nas áreas centrais das grandes cidades brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife e Belo Horizonte. Em outubro de 2016, o então secretário de Habitação de São Paulo calculava que eram cinquenta os edifícios ocupados na região central da cidade, segundo dados da Folha de São Paulo, contra trinta e um edifícios ocupados em janeiro de 2013. Em maio de 2018, já eram mais de setenta os edifícios ocupados.
E as mulheres?
No processo de desenvolvimento social no Brasil, assim como em outros países, a divisão social avançou para uma separação entre os trabalhos de homens e o trabalho de mulheres, conhecida como Divisão Sexual do Trabalho. Nesse cenário, à mulher foi destinada a esfera privada, doméstica, a reprodução biológica, educação e cuidado dos filhos, e aos homens, à vida pública, o trabalho fora de casa. O resultado disso, entre outras coisas, é uma dependência histórica das mulheres em relação aos homens. Essa dependência se dá não apenas em termos psicológicos, mas principalmente por meios materiais: mulheres durante muito tempo não podiam trabalhar, portanto, não tinham renda própria e com isso ficavam sujeitas à renda dos parceiros ou familiares para sobreviver.
Entretanto, nos últimos 30 anos muitas mudanças ocorreram na sociedade e no mercado de trabalho brasileiro, contribuindo para uma maior inserção feminina, mas as desigualdades de gênero ainda persistem. Durante o período da pandemia, por exemplo, um estudo realizado no final do ano de 2021 pelo Ministério do Trabalho e veiculado pelo Portal G1, constatou-se que houve a perda de mais de 480 mil empregos com carteira assinada, sendo mais de 462 mil destes de mulheres. Ou seja, um percentual de 96%.
Ainda, conforme pesquisa do IBGE realizada em 2022, em média, de cada dez mulheres em idade para trabalhar, apenas 5 participam do mercado (empregadas ou buscando um emprego). Já entre os homens, 7 a cada 10 estão na força de trabalho. Além disso, uma mulher recebe, em média, 78% do que ganha um homem, ou seja, há uma desigualdade salarial entre os gêneros de 22%. Essa realidade, além de contribuir para uma manutenção da relação de dependência das mulheres em relação aos homens, contribuindo para a preservação de uma cultura machista, também delineia o perfil da pobreza no país.
Feminização da pobreza
Segundo dados da Síntese dos Indicadores Sociais (SIS) divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no fim do ano passado, em 2022, o Brasil tinha 67,8 milhões de pessoas em situação de pobreza e 12,7 milhões em situação de extrema pobreza.
A faixa etária que corresponde ao perfil da pobreza no país são majoritariamente os jovens: dos quase 11 milhões que não estudam e seguem desempregados, 61,2% se encontram abaixo da linha da pobreza. Dentro desse recorte, 47,8% eram mulheres pretas ou pardas.
Além disso, a questão racial também chama atenção. Entre os brasileiros pretos e pardos, 40% viviam em situação de pobreza em 2022, praticamente o dobro da proporção de brancos (21%) nessa situação.
Para além desses índices, o IBGE também destaca que o arranjo domiciliar formado por mulheres pretas ou pardas, sem cônjuge e com filhos menores de 14 anos concentrou a maior incidência de pobreza: 72,2% dos moradores desses arranjos eram pobres e 22,6% eram extremamente pobres.
Esses dados indicam que o perfil do pobre no país é jovem, feminino e negro. Quando voltamos o olhar para a questão da habitação, esses dados são confirmados pela taxa de mulheres presentes no déficit habitacional brasileiro.
Déficit habitacional brasileiro
3,4 milhões de mulheres do país são responsáveis por domicílios considerados inadequados para habitação. Suas moradas respondem por 60% do déficit habitacional brasileiro, que em 2019 era de quase 5,9 milhões de casas, de acordo com cálculos feitos pela Fundação João Pinheiro (FJP), com base em números do IBGE.
Compõem o déficit habitacional famílias ou pessoas que vivem em três situações: em casas extremamente precárias ou improvisadas; dividindo uma mesma residência com outra família; ou que pagam um aluguel tão caro em relação a sua renda que precisam escolher entre comprar comida ou pagar a despesa mensal.
Em todos esses casos, as mulheres são maioria, de acordo com os dados mais atualizados sobre o assunto, apresentados pelo governo federal em 2021.
A feminização do déficit habitacional só pode ser compreendida a partir de determinados processos sociais que vão de mudanças demográficas e dos arranjos familiares à reprodução histórica de violências de gênero que atravessam as trajetórias femininas.
Em primeiro lugar, em relação aos arranjos familiares, destaca-se que ao menos desde os anos 1960, um dos perfis de família que mais cresce no Brasil é o monoparental com filhos. Esse grupo é formado, majoritariamente, por mães solo: em 2018, eram mais de 11 milhões de famílias, cerca de 5% do total de arranjos domiciliares do país era composto por elas.
Ainda, a monoparentalidade deve ser lida a partir da intersecção entre gênero e racialidade, dado que, segundo dados do IBGE em 2018, dentre as 11 milhões de mães solo no Brasil, 61% delas são mulheres negras. Além disso, 63% das casas que têm como principal responsável mulheres negras, com filhos até 14 anos, estão abaixo da linha da pobreza, já nos domicílios de mulheres brancas com filhos, a porcentagem é de 39,6%, o que revela as desigualdades entre mulheres brancas e negras e suas reverberações nas experiências habitacionais e urbanas das diferentes mulheres.
Ademais, as mulheres idosas são outro grupo que necessita observação, uma vez que acabam indo morar com parentes depois de certa idade, com preferência por suas filhas, situação que gera coabitação para ambas.
Também destaca-se as condições de trabalho que, como já mencionado, estruturam-se por meio da desigualdade de gênero, fazendo com que as mulheres ocupem cargos mais baixos, mais precarizados e com menores salários. Com baixos salários ou com salários mais baixos que os dos homens e responsáveis pela família, as mulheres se equilibram entre o trabalho produtivo e reprodutivo, e muitas vezes não conseguem arcar com os custos da moradia levando ao déficit habitacional.
Por fim, sublinha-se também a violência doméstica como consideração em relação ao déficit habitacional e sua feminilização. A violência contra a mulher é um problema social e urbano invisibilizado, que afeta 1 em cada 4 mulheres no Brasil e na América Latina, particularmente aquelas sujeitas às discriminações e desigualdades interseccionais.
A luta por moradia e direito à cidade
O debate do direito à cidade – e em especial a luta das mulheres por moradia – traz a ideia fundamental de que as desigualdades e opressões são determinantes e estão determinadas na produção do espaço.
A imposição de padrões de segregação e violência a segmentos sociais específicos faz parte da constituição social e política dos territórios da e na cidade segundo o atual modelo de urbanização. Desse modo, a transformação radical conclamada pelo direito à cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo para reformular os processos de produção do espaço.
A partir disso, os movimentos sociais estruturam sua luta sob as bandeiras da autogestão, a participação popular nas políticas públicas e a luta pelo fim dos despejos e contra a criminalização dos movimentos sociais. Tais objetivos se traduzem em reivindicações, lutas concretas e propostas dirigidas ao poder público nas três esferas de governo.
Nesse sentido, a União Nacional por Moradia Popular (UNMP) – organização conjunta dos Movimentos por Moradia do país – se posiciona ativamente frente ao Estado, buscando a negociação e a ação propositiva, sem deixar de lado as ferramentas de luta e pressão do movimento popular. Em seus mais de 35 anos de luta, a UNMP conseguiu ajudar mais 20 mil mulheres em situação de violência e construiu cerca de 50 mil unidades de moradia em sistema de autogestão no Brasil.