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Mais que repúdio a mineradora, Panamá se levanta contra regime servil ao colonialismo

A sociedade panamenha ingressou em uma crise que não encontrará solução em nenhuma tentativa de retorno ao estado de coisas anterior
Guillermo Castro H.
Diálogos do Sul
Alto Boquete

Tradução:

“Ao que se deve estar atento não é à forma das coisas, e sim a seu espírito.
O real é o que importa, não o aparente.
Na política, o real é o que não se vê.
A política é a arte de combinar, para o bem-estar crescente interior,
os fatores diversos ou opostos de um país, e de salvar o país
da inimizade aberta ou da amizade cobiçosa dos demais povos.”
José Martí, 1891
[1]

O Panamá nas últimas semanas manifestações massivas de descontentamento social e protesto político. A curto prazo, os atos tiveram por objeto o repúdio a uma transnacional mineira que há 20 anos vem explorando a céu aberto uma enorme jazida de cobre e ouro nos limites do Corredor Biológico do Atlântico Meso-americano, ao amparo de um contrato declarado inconstitucional pela Suprema Corte de Justiça do país 20 anos atrás. A médio prazo, no entanto, os protestos se dirigiram contra o regime político estabelecido a partir do golpe de Estado de dezembro de 1989, que de 1990 para cá tolerou primeiro, e ampliou ano a ano depois, este tipo de manejo dos recursos da Nação.

Este repúdio já tivera uma primeira expressão nas grandes mobilizações de protesto ocorridas em julho de 2022, encabeçadas por organizações sociais de base popular que reclamavam o direito das camadas médias e dos trabalhadores de receber do Estado tanto apoio, pelo menos, como o que este oferece ao conjunto maior do setor empresarial. Aquele movimento obrigou os organismos governamentais a dialogar com as organizações sociais para discutir este apoio em âmbitos como os da atenção à saúde, segurança social, educação, além do incremento constante nos preços dos produtos de primeira necessidade. Dali resultou uma série de propostas que o Estado remeteu de imediato ao esquecimento, salvo em casos pontuais, como o subsídio ao preço dos combustíveis.

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Neste ano a situação foi distinta. Às manifestações contra a mineradora – e contra a mineração metálica a inferno aberto, como a chamou um de nossos poetas – somou-se a denúncia da deterioração da vida política, particularmente no que se refere ao incremento do clientelismo, aos desmedidos privilégios do poder legislativo, e ao claro interesse do governo em outorgar à empresa mineradora um novo contrato que, na prática, estabelecia um novo enclave colonial no país.

A isso se agregou um elemento novo na política crioula: a mobilização massiva de estudantes, profissionais e trabalhadores que eram crianças em 1989 ou nasceram depois, sem chegar a conhecer mais vida política que a organizada pelo regime estabelecido a partir daquele golpe de Estado. Estando assim as coisas, o alcance e a riqueza destas mobilizações inaugura, na prática, uma nova etapa na história política do Panamá. Dela pode dizer-se, com José Martí, que

Precede as grandes épocas de execução, como a passagem à maturidade, um movimento espontâneo de almas por onde conhece o observador a realidade oculta aos que só quiseram vê-la coroada de flores, e quando veem espinhos, negam que seja realidade. De um lado decrescem, sem mais forças que as necessárias para manter o catecismo importado, as criaturas oscilantes e apagadas da colônia, que não conseguem manter definitivamente com o braço as liberdades a que aspiram com a razão; e de outro crescem, com a ordem intuitiva e oportuna da natureza, as forças criadoras que dos elementos colo niais desfeitos comporão, sob a guarda do mar e da história, a nação futura.[2]

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A sociedade panamenha ingressou em uma crise que não encontrará solução em nenhuma tentativa de retorno ao estado de coisas anterior

Foto: Reprodução
Panamá chegará, em breve, ao momento de reconhecer que para sempre ficou para trás a ideia de que, sem Canal, não pode haver país

A sociedade panamenha ingressou, assim, em uma crise que não encontrará solução em nenhuma tentativa de retorno ao estado de coisas anterior. Esta crise teve sua expressão principal na rejeição do contrato minerário, condenado como uma tentativa de venda do país e de seu patrimônio a um consórcio de empresas estrangeiras. Nesse plano, o governo nacional tentou sustentar seu interesse em outorgar o contrato nos benefícios econômicos que traria ao país, sem chegar a captar que aquilo que estava em disputa não era o preço que se punha no interesse nacional, e sim o interesse dos cidadãos em que sua nação não fosse vendida.

Algo mudou de julho de 2022 a novembro de 2023, e esse algo deixou deslocados em maior ou menor grau todos os participantes do processo político que vive o país. Uns, espantados de coração ou por encomenda, veem uma negra agenda do comunismo, que busca criar o caos para tomar o poder. Outros parecem crer que estamos em um redemoinho que gira em direção a uma transformação revolucionária ainda por definir. E a maioria silenciosa de quem depende de seu trabalho para viver aspira a ver seu país transformado em uma república moral, próspera, equitativa e sustentável.

É a favor destes últimos que sopram os ventos da mudança. De fato, o que está em crise aqui é um modelo de desenvolvimento cujas raízes remontam ao século XVI, que organizou o país em função da demanda de serviços de trânsito interoceânico, e do benefício de quem controla a oferta destes serviços, que hoje são de apoio à circulação do capital em escala global. A coluna que suporta toda a produção de riqueza e toda a geração de pobreza no Panamá consiste em uma Plataforma de Serviços Transnacionais estruturada em torno do canal interoceânico.

Esta plataforma inclui hoje, também, um Centro Financeiro Internacional, e serviços de logística, transporte, telecomunicações e sedes de empresas transnacionais. O processo de montagem da plataforma vinha desde a década de 1970; acelerou-se a partir da transferência do Canal do governo dos Estados Unidos ao do Panamá, e hoje parece aproximar-se do limite de suas possibilidades de expansão.

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Estando assim as coisas, a passagem ao extrativismo minerário foi vista como um mecanismo para manter um processo de crescimento econômico baseado no desperdício das vantagens comparativas do país – como a abundância de água, biodiversidade, e possibilidades de conectividade interoceânica e interamericana – que não vê como um problema a crescente iniquidade no acesso da população ao progresso técnico e seus frutos, como uma vez definiu Raúl Prebisch o desenvolvimento. Tal é, afinal de contas, o que cabe na racionalidade desta modalidade de organização do país, seu território e sua população que já cria mais problemas dos que pode resolver.

No caso do Canal, por exemplo, a concentração da população e o investimento no corredor interoceânico acabou por afetar as bacias dos rios que abastecem a água para o funcionamento da via interoceânica e o consumo dos habitantes do enclave. O que só poderá ser resolvido incrementando-se a competitividade da vantagem comparativa representada pela capacidade dos ecossistemas panamenhos de garantir o abastecimento de água e preservar a biodiversidade do país.

Isto só poderá ser obtido vinculando-se a inovação tecnológica à mudança social, em termos que permitam ampliar a base social do mercado nacional, e articulá-lo de maneira muito mais eficiente aos serviços que oferece o enclave canaleiro para ampliar e diversificar suas atividades produtivas. A lógica que sustenta a racionalidade do enclave mineiro não só conspira contra as necessidades do país, como o faz contra a própria possibilidade de tornar sustentável o desenvolvimento humano no Istmo.

Chegaremos, em breve, ao momento de reconhecer que ficaram para trás para sempre os dias em que se proclamava que sem Canal não podia haver país. Agora ingressamos em uma fase nova em nossa história, em que descobrimos que sem país não haverá Canal. Estando assim as coisas, encerramos com Martí a reflexão que ele nos ajudou a iniciar: “Em coisas de tanto interesse”, disse-nos, “o alarme falso seria tão culpado como a dissimulação. Nem se há de e xagerar o que se vê, nem distorcê-lo, nem calá-lo. Os perigos não se hão de ver quando estão em cima, mas sim quando se pode evitá-los. A primeira coisa em política é esclarecer e prever.”[3]


Notas

[1] “La Conferencia Monetaria de las Repúblicas de América”. La Revista Ilustrada, Nueva York, maio de 1891. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. VI, 158.

[2] “Las Antillas y Baldorioty Castro”. Patria, 14 de maio de 1892. IV, 405.

[3] “Congreso Internacional de Washington. Su historia, sus elementos y sus tendencias. I. Nova York, 2 de novembro de 1889”. La Nación, Buenos Aires, 19 de dezembro de 1889. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. VI, 46-47.

Guillermo Castro H. | Colunista na Diálogos do Sul – blog martianodigital.com
Alto Boquete, Panamá, 8 de novembro de 2023.
Tradução: Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Guillermo Castro H.

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