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Mandato repleto de polêmicas, denúncias de corrupção e manobra para se manter no poder: entenda quem foi Juvenal Moïse

Presidente do Haiti foi assassinado na madrugada desta quarta-feira (7) em sua residência. Empresário do setor bananeiro, chegou ao poder com o apoio de ex-presidente próximo do clã dos ditadores Duvalier
Bárbara Ester
Celag
Buenos Aires

Tradução:

  • Jovenel Moïse foi assassinado na madrugada de 7 de julho. O Haiti vive há três anos uma espiral ascendente e aparentemente incontrolável de insegurança, associada à existência de mais de 77 grupos criminosos armados, segundo dados da Comissão Nacional de Desarmamento, Desmantelamento e Reintegração (CNRDDR). 
  • Moïse, um empresário do setor bananeiro do norte do país chegou ao poder em 7 de fevereiro de 2017 após um processo eleitoral turbulento que incluiu a anulação do primeiro turno presidencial, em outubro de 2015, e um longo período de governo interino. Com uma participação muito baixa, em um país de cerca de 12 milhões de habitantes, apenas 600 mil teriam apoiado o falecido presidente nas urnas, para quem a contagem oficial deu 55% dos votos.
  • Em fevereiro de 2018, Moïse executou um plano de ajuste elaborado com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Em troca, o organismo prometeu empréstimos financeiros de 96 milhões de dólares para ajudar o país a pagar sua dívida. Isso desencadeou uma nova crise política diante do aumento do preço do petróleo e seus derivados: 38% gasolina, 47% diesel e 51% querosene. Diante disso, a rua explodiu novamente, os protestos se tornaram massivos e a polícia atuou com repressão, gerando mais mortes e caos. Por fim, a medida foi revogada.

  • As eleições parlamentares marcadas para 2018 foram suspensas diversas vezes. Diante da impossibilidade de ter representação oficial na Câmara e nos dois terços dos senadores que seriam renovados, Moïse decidiu fechar o Parlamento, governando por decreto desde janeiro de 20201.
  • Em fevereiro de 2019, na sequência de um escândalo de corrupção envolvendo fundos do programa Petrocaribe (dos quais recebeu 6 milhões de dólares durante o governo Martelly, que o nomeou como seu sucessor), os protestos populares contra ele tomaram fôlego   e nunca mais se extinguiram. 
  • A sua tentativa de reformar a Constituição, incluindo a possibilidade de regressar ao sistema presidencial da era Duvalier e de poder revalidar o seu mandato, acabou por inflamar as ruas, que explodiram mais uma vez.
  • Claude Joseph, o atual primeiro-ministro, que deveria ser substituído nesta semana após apenas três meses no cargo, será quem assumirá temporariamente, seguindo a cadeia de comando. Joseph é doutor em políticas públicas pela The New School de Nova York e trabalhou como professor universitário nos Estados Unidos. O recém-nomeado presidente pediu calma à população e garantiu que tanto a polícia quanto o Exército estão encarregados de manter a “ordem”. Joseph estaria comprometido com a proposta de reforma constitucional de Moïse.     

 

A ascensão de Moïse ao poder

Moïse chegou à política como um outsider, representando a elite agrária graças ao seu papel como líder da Agritrans, uma empresa bananeira do Nordeste. Sua experiência política anterior era nula, mas ele foi escolhido por Martelly (PHTK) como seu sucessor. Nas eleições primárias de outubro de 2015, Moïse obteve o primeiro lugar, com 32,81%. No entanto, as eleições foram marcadas por denúncias de fraude, intimidação de eleitores e protestos de rua, que  foram finalmente anuladas. 

Martelly, com o apoio dos Estados Unidos, da Organização dos Estados Americanos (OEA) e de outros governos estrangeiros, desejava o mais rápido possível resolver a transferência do Governo para seu sucessor. No entanto, os funcionários eleitorais — devido aos protestos sociais persistentes e uma nova catástrofe, a passagem do furacão Matthew — atrasaram uma nova votação três vezes consecutivas devido à ameaça de violência irreprimível. 

Entre fevereiro de 2016 e fevereiro de 2017, foi estabelecido um governo interino comandado por Jocelerme Privert, que foi eleito pela Assembleia Nacional para preencher o vácuo de poder após o fim do mandato de Michel Martelly. Novas eleições foram realizadas em novembro de 2016 e, na contramão da conjuntura, Moïse foi eleito no primeiro turno, com 55,67% dos votos. Mais uma vez, a denúncia de fraude atrapalhou uma eleição que levou mais de um mês para ser validada.

Desde o início, Moïse careceu de legitimidade e enfrentou forte oposição de setores da população. Isso se expressou em uma agitada troca do primeiro-ministro — ele passou por sete primeiros-ministros em quatro anos — entre eles, Joseph Joute e Claude Joseph, inconstitucionalmente nomeados pelo presidente sem ratificação pelo Parlamento.

Em fevereiro de 2018, veio o ajuste projetado com o Fundo Monetário Internacional que gerou protestos em todo o país. Um ano depois, em fevereiro de 2019, estourou o escândalo de corrupção popularizado como #PetroCaribeChallenge. A hashtag se originou de um tweet que perguntava em creole: onde está o dinheiro da PetroCaribe? Desde então, iniciou-se um ativismo pela auditoria coletiva e uma nova onda de mobilizações contra o governo haitiano, acusado de desviar bilhões de dólares provenientes do subsídio venezuelano. No final de maio, o Tribunal de Contas entregou ao Senado um relatório em que concluiu que pelo menos 14 ex-funcionários desviaram mais de 3,8 bilhões de dólares do programa PetroCaribe entre 2008 e 2016. Sobre o atual presidente, o relatório detalha que a Agritrans obteve os contratos para construir projetos bananeiros e rodovias que nunca foram executados, apesar de receberem o dinheiro para tais fins.    

As eleições parlamentares marcadas para 2018 foram suspensas diversas vezes. Diante da impossibilidade de ter representação oficial na Câmara dos Deputados e nos dois terços dos senadores que seriam renovados, Moïse decidiu fechar o Parlamento, governando por decreto desde janeiro de 2020.

O outro aspecto central da paupérrima qualidade democrática do governo haitiano foi o decreto presidencial que, sob o pseudônimo de “Fortalecimento da segurança pública”, criou a Agência Nacional de Inteligência (ANI), um  corpo miliciano com poderes para reprimir protestos sociais legítimos. Assim, a Rede Nacional de Direitos Humanos classifica 2020 como o ano da acelerada “gangsterização” do Haiti, caracterizada pela violação sistemática das liberdades fundamentais e individuais dos cidadãos. Estima-se que pelo menos mil pessoas foram sequestradas no Haiti em 2020 e um número semelhante morreu em meio ao aumento da violência.

A este estado de ruptura da ordem democrática deve se somar a intervenção e nomeação irregular de juízes nos principais tribunais do país — o Superior Tribunal de Contas e o Tribunal de Cassação —; bem como a prorrogação ilegal do mandato presidencial, expirado em 7 de fevereiro deste ano. 

Em meio a essa incerteza política, Moïse afirmou que seu mandato terminaria em 2022 e promoveu uma reforma constitucional que seria submetida a referendo, a princípio marcado para 25 de abril, depois 29 de junho e novamente adiado por motivos sanitários e políticos, já que a rejeição da população foi contundente. Apesar disso, foi reprogramado pela terceira vez para 26 de setembro, mesmo dia previsto para as eleições legislativas e presidenciais. Se houvesse um eventual segundo turno, ele ocorreria no dia 21 de novembro, enquanto no novo calendário eleitoral as eleições municipais foram adiadas para o dia 16 de janeiro do próximo ano.  

Presidente do Haiti foi assassinado na madrugada desta quarta-feira (7) em sua residência. Empresário do setor bananeiro, chegou ao poder com o apoio de ex-presidente próximo do clã dos ditadores Duvalier

Reprodução/ Presidência do Haiti
Presidente haitiano Juvenal Moïse. Foto tirada em novembro de 2019

O novo texto constitucional propõe um retorno ao antigo esquema presidencial da época dos Duvalier; a eliminação do Senado e a construção de um legislativo unicameral; a eliminação da figura do primeiro-ministro e sua substituição por um vice-presidente; e a possibilidade reeleição por dois mandatos presidenciais consecutivos. A única forma legal de modificar a Carta Magna é a parlamentar, mas o Parlamento, com maioria de oposição, foi suspenso de suas funções, de forma que até ontem [terça-feira 6] o partido governante conduzia o país por decreto, concentrando a totalidade do poder público.  

O polêmico referendo foi rejeitado pela oposição política local em bloco, desde os movimentos e organizações sociais concentradas na Frente Patriótica Popular até a conservadora “oposição institucional”. Da mesma forma, o Instituto Móvel de Educação Democrática (IMED), uma organização jurídica de defesa dos direitos humanos reconhecida e os setores empresariais se manifestaram. A influente Conferência Episcopal do Haiti (CEH) também expressou sua desaprovação: os bispos pediram, por carta, que a convocação fosse suspensa. Deve-se destacar que a Cúria desempenhou um protagonismo importante após o sequestro de membros de sua congregação por gangues. O arcebispo de Porto Príncipe, Monsenhor Max Leroy Mésidor, principal elo entre as negociações de Moïse e com a oposição, expressou publicamente sua rejeição em 10 de dezembro (Dia Internacional dos Direitos Humanos).

Em janeiro de 2020, o Secretário-Geral da OEA, Luis Almagro, assegurou haver  acordado com Moïse o fortalecimento do combate à corrupção no Haiti e apoiou a reforma constitucional, assumindo, como Moïse, que a atual Magna Carta é a causa dos problemas do país.

Finalmente, a gestão da pandemia foi nula. O Haiti é o único país da América Latina e Caribe que ainda não iniciou seu processo de vacinação. A única resposta do Estado foi a autorização da importação e distribuição privada de vacinas. De acordo com declarações feitas pelo Diretor Geral do Ministério da Saúde Pública e População, Laure Adrien, o próprio governo rejeitou a oferta de vacinas a que tinha direito através do mecanismo Covax, com relutância de inocular a população com a vacina AstraZeneca.

Um assassinato anunciado?

Após o assassinato do presidente, começou a circular uma entrevista ao jornal espanhol El País, na qual Moïse mencionava uma tentativa de golpe de Estado e tentativas de assassinato por parte da elite local. A entrevista foi realizada em fevereiro de 2021, justamente às vésperas do que a oposição e o Supremo Tribunal Federal consideravam o fim de seu mandato. Isso se deve ao fato de Moïse ter demorado um ano para assumir o poder após as eleições de 2015. No entanto, os magistrados do Supremo Tribunal foram presos, sob a acusação de perpetrar um golpe de Estado contra um governo que não realiza eleições livres desde 2016. Nesse contexto, Moïse concedeu a entrevista em claro tom vitimista, escondendo seu estilo ditatorial próprio, ou seja, um governo sem contrapesos.

Na mesma entrevista, Moïse menciona descaradamente “os oligarcas corruptos acostumados a controlar presidentes, ministros, Parlamento e Judiciário pensam que podem tomar a presidência, mas só há um caminho: eleições. E não vou participar nessas eleições”. Entre os principais candidatos do partido no poder à sucessão de Moïse estavam Michel Martelly, ex-duvalierista e ex-membro do corpo miliciano dos Tonton Macoutes (polícia secreta e milícia pessoal do ditador haitiano F. Duvalier); Laurent Lamothe, seu ex-primeiro-ministro; e há até quem se atreva a propor o mesmíssimo Nicolás Duvalier, neto do primeiro ditador do clã.

O ponto de inflexão de sua gestão foi, sem dúvida, o fato de que algumas famílias da elite econômica, como o investidor Reginald Boulos, abandonaram Moïse e exigiram publicamente sua saída. O partido no poder, Tèt Kale, passou a acusar Boulos e a família Vorbe, que controla o setor elétrico, de financiar as manifestações de rua que exigiam a renúncia do presidente. Poucos dias depois do discurso do presidente no qual ele falou do “sistema”, o Governo emitiu intimações a empresas privadas e anunciou a revisão de contratos com o Estado, entre eles os chamados conglomerados como Haytrac, E-Power, HLS International e Sogener, esta última propriedade da família Vorbe.

Moïse e sua relação com os Estados Unidos e organizações relacionadas

Moïse estabeleceu laços estreitos com D. Trump em 2019. O atual governo rompeu relações com a Venezuela  de onde recebeu petróleo a preços subsidiados por mais de uma década, desencadeando uma crise energética. Nesse mesmo ano, Moïse reconheceu Juan Guaidó como presidente bolivariano e, no final de novembro de 2020, o Haiti foi o primeiro — e único — país americano a abrir uma embaixada no Saara Ocidental, reconhecendo a soberania marroquina sobre o território. Moïse não hesitou em adotar uma posição de total subordinação às mais selvagens aventuras geopolíticas de Donald Trump, mesmo com a rejeição da comunidade internacional e do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

O Core Group, formado por embaixadores de Alemanha, Brasil, Canadá, Espanha, Estados Unidos, França, União Europeia, o Representante Especial da Organização dos Estados Americanos e o Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas, manifestou preocupação com a usurpação de poderes do Legislativo. O comunicado alerta que as medidas do presidente “não parecem estar em conformidade com certos princípios fundamentais da democracia, do Estado de Direito e dos direitos civis e políticos dos cidadãos”.

Mais de sessenta congressistas democratas exigiram “uma revisão significativa da política dos EUA no Haiti” por parte da administração Biden. A carta alertava que “a insistência dos EUA em eleições a todo custo no Haiti ainda este ano corre o risco de agravar o ciclo de instabilidade política e violência no país”. Na carta enviada ao secretário de Estado Antony Blinken, os legisladores pediram que Biden usasse sua “voz e voto” junto à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA) — ambas com financiamento dos EUA — para garantir que o dólar dos contribuintes não sejam usados para apoiar o referendo constitucional. Até o momento, tanto a OEA quanto o escritório político da ONU no Haiti haviam oferecido seu apoio ao processo e a ONU controlava um fundo comum de arrecadação para as eleições, incluindo o referendo.  

Notas:

Em janeiro de 2020, terminaram os mandatos de todos os deputados, dois terços dos senadores e da maioria dos prefeitos, ninguém assumiu sua substituição devido à impossibilidade de realização das eleições

Tradução: Vanessa Martina Silva


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