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Marx e Mariátegui: confluências na história

Gustavo Espinoza M.

Tradução:

Os Desnorteados
Material para releitura e reflexão
Gustavo Espinoza M.*

“Os tempos passados, meu amigo, são para nós um livro de sete selos”

                                   Goethe

gustavo espinoza perfil dialogos do sulRetornar a Marx e a Mariátegui é, como dizia Goethe, abrir um livro de sete selos. Porém não porque suas vidas pertençam ao passado, mas porque refletem um mundo já vivido, que retorna em nosso tempo ao cenario de nossas lutas, e assoma como um vigoroso repto para os homens de hoje, e de amanhã. Empreendamos a tarefa.

É que em poucas ocasiões como esta – evento convocado por Amigos de Mariátegui – surge a possibilidade de abordar um tema pouco trabalhado em nosso tempo: o que vincula as vidas das insignes personalidades – cada um em seu momento e em seu contexto – que contribuíram criadoramente ao pensamento universal, e hoje assomam cada vez mais ligados ao destino de nossos povos.
portada mariateguiNão se trata de forçar paralelos, nem de cair na tentação de comparar nem de equilibrar um com o outro, que são personalidades distintas; trata-se simplesmente de perfilar confluências da história em um cenário muito amplo, que tem como tela de fundo o combate dos trabalhadores pela libertação e o socialismo.
Formalmente caberia reconhecer, de fato, diferenças entre Carlos Marx e José Carlos Mariátegui. Embora ambos tenham nascido no século XIX, pertenceram a épocas diferentes. O Titã de Tréveris – a pequena aldeia renana no oeste da Alemanha – nasceu em 1881, e morreu aos 65 anos de idade, em 1883, em Londres. Enquanto que o Amauta, se bem conheceu a vida a partir de 1894, viveu mais plenamente a primeira parte do século XX e faleceu antes de cumprir 36 anos, em abril de 1930.
Marx pertenceu a uma família ilustrada. Embora no transcurso de sua vida, e sobretudo em sua etapa mais criadora, teve que afrontar penalidades materiais extremas que só alcançou superar graças a colaboração solidária de seus companheiros mais próximos, entre os que se destaca Frederico Engels; teve notável formação acadêmica que lhe permitiu dominar os temas da economia, filosofia, a história, política e o direito. Visitante assíduo dos ambientes universitários e das grandes bibliotecas, o autor de “O Capital” foi realmente um sábio, ou seja, um homem de cultura muito ampla, vastos conhecimentos, relações diversificadas e produção intelectual qualificada. Bem se poderia considerar insuperável no manejo dos temas fundamentais do conhecimento. Ninguém, no século XIX, brilhou no mundo como ele. E na vastidão de seu pensamento ele honrou sempre à velha sentença de Terêncio: “nada do humano me é alheio”.
Mariátegui, homem de méritos excepcionais em nosso continente, teve outra origem e dificuldades talvez mais profunda a enfrentar. Ficou enfermo ainda criança e sofreu os efeitos de um mal cruciante que finalmente lhe tirou a vida ainda muito jovem, quando sobre seu horizonte se erguia uma vasta e criativa obra.
Mariátegui não foi universitário. Ele mesmo se proclamou extra-universitário, e até anti universitário, porque recusou conscientemente a formação ritual, ultrapassada  e dogmática propiciada pela universidade da época. Impelido pela circunstância, procurou obsessivamente a auto formação e se converteu no forjador de sua própria personalidade e cultura. Aberto ao mundo, no entanto, pode absorver fragmentos da realidade europeia, e conhecer de fonte direta o pensamento marxista. Identificado com as ideias socialistas desde 1918, pode ler a Marx em alemão, e esteve também em seu país, entusiasmado pela coragem e arrojo do proletariado, cujas ações acompanhou depois já no Peru.
Ainda se recorda, de fato, que estimulado por um internacionalismo consciente e definido, descreveria as históricas barricadas de 1923, destacando um conceito certamente novo para os peruanos de sua época. “Cada um dos operários que cai nestes momentos nas ruas de Berlim ou nas barricadas de Hamburgo, não cai só pela causa do proletariado alemão. Cai também por vossa causa, companheiros do Peru”, disse emocionado na noite de 2 de novembro desse ano nos amplos salões das Universidades Populares González Prada.
Não obstante, além das distâncias e das diferenças, pode-se esboçar uma identidade entre estas figuras da história. É que Carlos Marx é considerado hoje o Homem do Milênio; Mariáteui se afirma recentemente como o mais destacado pensador marxista de América no século XX. Ambos, certamente, são duas estrelas que brilham com luz própria no firmamento revolucionário dos povos. Sem complexos, então, é bom que alentemos a ideia de destacar as coincidências que fluem da vida e obra destas admiráveis personalidades, expressões muito altas do pensamento humano.
 
Quatro coincidências básicas
Se nos detivermos na análise do processo social, encontraremos que, entr Marx e Mariátegui existem inegáveis coincidências básicas. Nos ocuparemos de quatro deles por considera-las talvez as mais claras e definidas, as que perfilam com maior clareza a identificação dessas figuras.
1 – Os dois chegaram ao domínio do socialismo científico e o converteram em sua concepção de mundo e de vida, em teoria e na doutrinam mas também em guia para a ação.
Como uma homenagem a Marx, hoje se considera expressões sinônimas Socialismo Científico e Marxismo. E é que a vida e a luta dos povos converteram a ambas em similares. Porem há certamente uma ampla gama do pensamento socialista que careceu de base científica e que os historiadores atribuíram diversas denominações. Inclusivo no Manifesto Comunista se fala de um “socialismo reacionário”, considerando como expressão do mesmo o chamado socialismo feudal, o socialismo pequeno burguês, e o socialismo alemão. Porém , em seguida se distingue também o socialismo burguês ou conservador e o socialismo e o comunismo crítico, como expressão das “primeiras tentativas do proletariado para aprofundar diretamente em seus interesses de classe”.
É que ao longo de um prolongado processo da história, o pensamento socialista não uma doutrina mas sim um ideal. De alguma maneira podemos vê-lo refletido na luta dos oprimidos desde os primeiros anos da história. Espartaco, por exemplo, simbolizou este ideal não só com sua vigorosa rebelião afogada em sangue, como também em seus sonhos primários, mas muito vivos. Eles foram alegoricamente recolhidos na mensagem que o líder Trácio entregou a um romano, a quem chamava Legado, encarregando-o de transmitir sua mensagem ao soberbo Senado.
Conta a lenda que Espartaco chamou um anônimo soldado que tinha capturado durante uma batalha, e lhe deu o Bastão de Marfim pedindo que transmitisse suas palavras. A história não reconstruiu o texto aludido, mas Hoard Fast da uma versão literária do mesmo. Ainda que a forma não corresponda necessariamente com o original, sem dúvida recolhe a essência do movimento libertados dos escravos, fonte inesgotável de todas as batalhas humanas por liberdade e justiça.
“Diga-lhes que eles enviaram contra nós suas legiões e que nós as destruímos. Diga-lhes que somos escravos o que eles chamam o instrumentum vocale, a ferramenta com voz. Conte-lhes o que dizem nossas vozes. Dizemos que o mundo está cansado deles, cansado de Senado apodrecido e da vossa apodrecida Roma. O mundo está cansado da riqueza e esplendor que vocês sugaram de nossa carne e de nossos ossos. O mundo está cansado da canção do látego…. Essa é a única canção que os romanos conhecem…”
Nós, disse finalmente Espartaco imaginando sua vitória
“Construiremos cidades melhores, limpas, cidades sem muros onde a humanidade possa viver unida, em paz e felizmente”.
Expressou-se dessa maneira já naqueles idos anos o que representa através da história humana o ideal socialista, a ideia que permanece e a que se obstinam os homens de nosso tempo já com asco do regime de dominação capitalista que tornou imunda a vida dos homens e se converteu em verdadeiro desafio para a espécie humana.
Marx e Mariátegui lutaram, sem dúvida, por uma sociedade mais humana em que fosse possível conquistar a liberdade mais plena e o acesso a todas as criações da cultura, da arte e da vida. Um mundo em que a espécie humana possa viver unida, em paz e feliz.
Exemplos de internacionalismo solidário
2 – Um segundo elemento a considerar nos leva a reconhecer que tanto Marx como Mariátegui foram acentuadamente internacionalistas. Tiveram uma visão mundial da política e não a consideraram nunca encerrada nos estreitos marcos nacionais.
Marx nasceu na Alemanha, mas viveu na França e Inglaterra, considerada como o laboratório mais qualificado do capitalismo desenvolvido. E se solidarizou plenamente com a luta dos trabalhadores de todos os países. Em seus escritos, fala com frequência do processo política da Rússia czarista – em que depositou fundadas expectativas – Polônia, Bélgica, Irlanda, Itália e outros Estados europeus; mas também a Índia, China e América. Estados Unidos chamou sua atenção a tal extremo que, em um momento e logo depois da crise da Associação Internacional de Trabalhadores – a I Internacional- colocou a possibilidade de instalá-la nesse país, como uma maneira de preservá-la das deformações que amalgamavam já o proletariado europeu da época, alentadas no período pela pregação anarquista dos bakuninistas.
O interesse de Marx por determinados países pode ser percebido desde sua posição doutrinaria. Abrigava, de fato, a ideia de que o socialismo como novo sistema mundial será possível só como criação da classe operária, que se abriria passo a partir do esgotamento da sociedade capitalista. Dito de outra maneira, Marx estava convencido de que para o triunfo do socialismo era indispensável um proletariado forte, numeroso, organizado e consciente. E que isto só poderia surgir no marco de uma sociedade capitalista altamente desenvolvida. Daí – anota Ivanov – seu interesse particular por Londres, empório comercial e industrial do mundo”, onde viveu 33 de seus 40 anos de atividade pública. Era alí, de fato, onde recebia suas visitas – como disse Pieper – não com saudações mas com fórmulas econômicas.
Mariátegui, curiosamente, nunca foi a Londres. Seu périplo europeu – talvez por falta de recursos – esteve distante deste laboratório do capitalismo mundial. Procurou por outros cenários: Alemanha, França e, sobretudo, Itália, onde mais que a produção industrial, brilhava a consciência operária emergente que iniciava suas lutar e seu processo de organização de classe. Na apresentação de seus “7 Ensayos”, consciente de sua evolução política, o Amauta diria de forma categórica: “Fiz na Europa meu melhor aprendizado. E creio que não há salvação para Indo-América, sem a ciência e o pensamento europeu ou ocidentais”.
Foi certamente o sentido internacionalista de sua concepção política que o levou a aceitar em 1919 o “convite” formulado pelo governo de Leguía como uma maneira de distanciá-lo. O que o regime de então não intuiu foi o fato de que Europa, em lugar de distanciá-lo do Peru, o aproximou ainda mais. Permitiu que refletisse sobre nossa realidade e lhe abriu novos horizontes que lhe tornou possível compreender mais cabalmente a natureza de nossos problemas.
Nacionalismo ou Internacionalismo?
O tema, sobre tudo nas condições concretas de nosso país, pode prestar-se a delicadas e ainda acaloradas controvérsias. Há quem, de fato, busca contrapor internacionalismo e nacionalismo, como se fossem expressões excludentes. A manobra não é nova. Foi utilizada em seu tempo por Haya de la Torre, que qualificou Mariátegui de “europeísta’;  e de ver “desde fora” nossa realidade.
A Apra (Aliança Popular Revolucionária Americana, partido criado por Haya de la Torre), apareceu no cenário nacional em seu momento como a “versão peruana do socialismo”. “O marxismo para Europa, o aprismo para o Peru”, parecia ser a síntese do pensamento de Haya desde os anos primordiais do antimperialismo e a Apra. Essa foi a tese oferecida a Zinoviev nos quiméricos sonhos do Kuo Ming Tang Latino-americano. No fundo, gerava uma contradição entre nacionalismo e internacionalismo, como se quem interpretasse a realidade nacional fizesse a expensas e em detrimento da cultura universal.
Poder-se-ia considerar essa sutileza do debate como um fenômeno superado. Mas não o é, por duas razões: porque agora renasce no Peru um sentimento nacional definido que toma forma inclusive no plano político; e porque, ao mesmo tempo, são estimuladas em nosso continente rivalidades de ordem nacional, territorial ou fronteiriço que visam enfrentar, em nossa região, uns países contra outros. O tema do internacionalismo então não é figura do passado. Tem enorme vigência.
Mariátegui, como se recorda, não considerou contrapostos estes conceitos. E mais, julgou que o nacionalismo, que nos países desenvolvidos jogava um papel chauvinista e reacionário, e que poderia inclusive servir de base para o fascismo – como ocorreu realmente na Itália e Alemanha e hoje ocorre em boa medida nos Estados Unidos. Em países dependentes como o nosso adquiriria outra particularidade e poderia ser inclusive revolucionário posto que se ligava à emancipação nacional, a afirmação dos próprios valores. Essa ideia lhe permitiu precisar melhor o sentido de sua política: nacional por sua forma, mas internacional por seu conteúdo.
Para entender melhor a mensagem, poderíamos nos referir a nossa própria experiência com o nacionalismo e suas projeções. Vejamos então: Não foi, por acaso revolucionária – dentro dos limites da Revolução Democrático Burguesa – a experiência de Velasco? Não poderia ser revolucionária, nas condições de hoje, uma política que impulsionasse transformações profundas na estrutura de dominação capitalista e ajudasse a afirmar a nacionalidade e enfrentar a voracidade imperialista em uma circunstância como a atual, quando as forças do Império buscam nos devorar com o modelo neoliberal e o TLC?
É que o nacionalismo bem entendido assegura a preservação dos próprios valores, os aportes da cultura nacional, os sentimentos e expectativas de nosso povo. Mas não pode contrapor-se à luta internacional dos trabalhadores porque o capitalismo opressor não é um fenômeno peruano, mas sim mundial. E a luta contra ele não se limite, obviamente, às fronteiras nacionais.
O Peru é um país muito rico em todas as expressões da vida humana. Além disso tem história, tradições antigas e cultura; que nos pode encher de legítimo orgulho nacional. Não temos do que invejar de outros povos porque não somos menos que nenhum outro. Porem tampouco somos mais que todos os demais.
O orgulho nacional não pode levar-nos e incubar ideias de superioridade, com relação a outros povos que sofrem tal qual sofremos os efeitos da dominação capitalista, que são vítimas da voracidade e da perfídia das oligarquias locais e a ação espoliadora  dos monopólios. Todos que vivemos sob a férula do imperialismo e das classes dominantes, temos o dever de lutar contra eles até vencer, e afirmar a partir dessa luta, o projeto de uma sociedade melhor na qual desapareça a opressão capitalista e o trabalho assalariado.
Mariátegui foi claro representante dessa posição de classe. E lutou resolutamente por alentar e promover a amizade e a solidariedade entre nossos povos. E quando o imperialismo tratou de explorar diferenças nacionais entre os Estados da região, promovendo conflitos armados, como ocorreu em seu tempo entre Paraguai e Bolívia, o Amauta disse:
“O dever da inteligência, sobretudo na América Latina, é mais que em nenhum outro setor do mundo, o de manter-se alerta contra toda aventura bélica. Uma guerra entre dois países latino-americanos seria uma traição ao destino e à missão do continente. Só os intelectuais que se entretêm com plagiar os nacionalismos europeus podem mostrar-se indiferentes a este dever. E não por pacifismo sentimental, nem por abstrato humanitarismo que nos toca vigiar contra todo perigo bélico. É pelo interesse elementar de viver prevenidos contra a ameaça de balcanização de nossa América em proveito dos imperialismos que disputam surdamente seus mercados e suas riquezas”.
Quanta simplicidade e quanta precisão em nosso Amauta! Quanta atualidade de suas palavras em nosso tempo quando começam a soar tambores de guerra no continente acossado pelo Império!
Estados Unidos, e mais precisamente a administração Bush, trazem para nossas fronteiras conflitos de ordem bélica para alinhar-nos em “eixos” em função dos interesses do grande capital. Evidenciam isso os conflitos com o Equador; o treinamento militar agressivo contra o Peru na Bolívia; a ingerência venezuelana na nossa política; as antigas diferenças com o Chile. Muda de tom de acordo com a ocasião mas a afirmação do sentido nacionalista de caráter patrioteiro e chauvinista mostra a cara sem enrubescer. Sob o pretexto da “bandeira da pátria”, um dos mais caracterizados impostores da burguesia, pediu recentemente que instalássemos bases militares estadunidenses em nosso território; e o governo dos Estados Unidos nos envia tropas ianques que já estão no Peru e permanecerão em atividades de caráter bélico até o final do ano. É para isso que serve a prédica chauvinista?
Para enfrentar essa política devemos afirmar o internacionalismo de Mariátegui, que foi também o de Marx e que é finalmente o internacionalismo revolucionário do proletariado que não tem ódios nacionais mas sim a vontade suprema de fazer justiça em seu próprio país acabando com os privilégios de classe dos exploradores, à margem de que nacionalidade tenha.
Devemos dizer claramente que nossos inimigos não são – nem serão nunca – os trabalhadores de outros países, mas sim os exploradores do nosso e dos demais. Porque a luta não é entre Estados, mas entre classes. Uma guerra justificável, então, não será nunca a que enfrente a países e povos irmãos, mas às classes opostas.
Isso deveria estar muito presente sobretudo em quem se sente comunista, dizem que são ou aspiram chegar a esse nível de definição humana, porque Marx diferenciava os comunistas do resto dos proletários em uma só coisa:  “os comunistas – dizia – não se distinguem dos demais partidos proletários mais que nisto: em que destacam e reivindicam sempre, em todas e cada uma das ações nacionais proletárias, os interesses comuns e peculiares de todo o proletariado, independentemente de sua nacionalidade, e em que, qualquer que seja a etapa histórica em que se movo a luta entre o proletariado e a burguesia, mantém sempre o interesse do movimento focado em seu conjunto”.
O verdadeiro sentido da Revolução Social
3 – Marx e Mariátegui se definiram com meridiana clareza em torno ao tema da Revolução Social como um fenômeno orientado a mudar de raiz a estrutura de dominação da sociedade. O tema da Revolução como fenômeno político nos regressa a um antigo debate: a contraposição – que pode ser verdadeira ou falsa – entre reforma e revolução.
Desde os primeiros socialistas houve quem desestimasse a ideia de mudanças radicais na sociedade. Uns as consideraram inviáveis, utópicas, impossíveis, inevitavelmente destinadas a derrota. Outros, simplesmente as julgaram inecessárias.
Para os primeiros, tentar uma mudança radical parecia inútil. Era algo assim como um desafio impossível que não se poderia empreender por estéril. Para os segundos era melhor impulsionar mudanças curtas, pequenas, destinadas a melhorar gradualmente a condição dos trabalhadores no marco de uma sociedade capitalista. Em outras palavras, resultava melhor promover “reformas” que pudessem aperfeiçoar – poderíamos dizer, embelezar – a sociedade capitalista, no lugar de demoli-la. Estes foram os reformistas.
Marx lutou firmemente contra os que levantaram a bandeira das reformas julgando-os inoperantes e utópicos. Apelou a que se tomasse distância deles de maneira clara e definida. E por isso estimulou e promoveu a organização independente dos comunistas, a luta revolucionária do proletariado e o assalto ao poder. Estimulou, então, a Revolução.
“A Revolução não só é necessária –disse Marx em A Ideologia Alemã – porque a classe dominante não pode ser derrocada de outro modo, mas também porque unicamente por meio de uma revolução a classe que derrubar conseguirá sair do pântano em que está atolada e tornar-se capaz de fundir a sociedade sobre novas bases”.
E Mariátegui seguiu escrupulosamente o mesmo roteiro. Não só polemizou abertamente com Henri de Man, o mais caracterizado expoente do socialismo reformista europeu de seu tempo, mas também se enfrentou a todas as variantes do reformismo, inclusive em seu próprio entorno. Não se deve esquecer, de fato, que tomou distância do grupo de Luciano Castilho no marco dos debates sobre o tema. Mariátegui foi partidário da revolução social e não teve ilusão alguma de que se pudesse mudar a sociedade através de reformas. Mas teve uma ideia clara do que era uma Revolução.
Uma Revolução – disse – “não é um golpe de estado, não é uma insurreição, não é uma daquelas coisas que aqui chamamos revolução. Uma Revolução não realiza senão em muitos anos. E com frequência tem períodos alternados de predomínio das forças revolucionárias e de predomínio das forças contrarrevolucionárias”. “A ideia da Revolução – insistiu – é o que salvou o proletariado do aniquilamento”.
Há que advertir, contudo, sobre o perigo de uma deformação. Não é mau de per se lutar no marco da sociedade capitalista por reformas ou mudanças que melhores a vida ou a situação dos explorados. Há que defender-se é da ideia de que essa luta é o caminho e a solução dos problemas dos trabalhadores; e que esgota, portanto, o programa estratégico do proletariado. Em outras palavras, a luta pelas reformas não supõe em nenhum caso a renúncia ao trabalho pela revolução por uma mudança radical e profunda das relações de produção. As reformas podem acelerar a revolução, ou atrasá-la, mas em nenhum caso, substituí-la.
O tema se vincula a outro debate: quando falamos de uma mudança radical – e violenta- da sociedade, estamos falando sempre e em todos os casos, de formas armadas de luta, de enfrentamentos físicos e materiais entre pessoas e de derramamento de sangue? Certamente que não. Uma mudança radical implica em mudança desde a raiz, ou seja, desde a base mesmo da sociedade. Marx disse em seu tempo: “Ser radical, é compreender a raiz das coisas”. Mas a ideia de uma mudança violenta não implica que se faça necessariamente por métodos violentos. Significa sim que se processo de um modo ágil e rápido. Mas, sobretudo, desde posições de força.
A luta de classes como contradição basilar
No fundo, o tema tem a ver com outra discussão de fôlego: a existência de classes, a luta entre elas e a chamada ditadura do proletariado, que enrubesce a certos reformas e arrepia o corpo dos oportunistas de todo cariz, apesar de ser simplesmente a democracia popular mais ampla.
Hoje há quem afirme temerariamente que a globalização capitalista atenuou, quando não desapareceu, com a existência das classes e a luta entre elas. Como uma maneira de fundamentar o conceito, utilizam argumentos supostamente “universais”. Dizem, por exemplo, que fenômenos como a contaminação ambiental, o aquecimento planetário, as catástrofes naturais ou a falta de água, existem “à margem das classes”, e “afetam a todos”, independentemente da classe a que pertençam. São problemas, dizem, que transcendem a luta de classes e a superam.
Isso é rigorosamente falso. A contaminação ambiental não foi gerada pelos povos nem pelos trabalhadores mas pelos grandes consórcios industriais, mineradores empenhados em sugar a riqueza da terra sem poupar meios para conseguir. Em nosso país, por exemplo, é fato conhecido que o centro metalúrgico de La Oroya está contaminado em extremo devido as atividades da mineradora Doe Run. Hoje, ali, 96% das crianças menores de onze anos têm os pulmões contaminados por chumbo. Isto é responsabilidade dos trabalhadores ou da empresa imperialista, espoliadora em essência, e que o estado capitalista, de maneira cúmplice, a libera de compromissos de proteção ao meio ambiente?
O aquecimento global, não é, por acaso, consequência direta da ampliação do buraco de ozônio na atmosfera – hoje maior que o território do Canadá – e que foi produzido precisamente pela contaminação ambiental e o uso de produtos que danificam a natureza e o ecossistema? Por acaso não se sabe que as catástrofes naturais como as ocorridas nos últimos anos na Indonésia e nos Estados Unidos, são consequência natural das agressões contra a ecologia? E a falta de água – os degelos do ártico e das zonas nevadas – não é por acaso outra coisa que uma consequência do aquecimento global?
As grandes empresas, o grande capital, os monopólios, desenvolvem uma política de espoliação e contaminação que afeta a toda a humanidade e levam o planeta à beira de sua destruição. Lutar em defesa da ecologia e o meio ambiente, pela proteção dos recursos naturais e pela biodiversidade não só é uma exigência legítima como também uma maneira qualificada de desenvolver a luta de classes defendendo os interesses dos povos e enfrentando a ofensiva do capital.
A luta de classe não foi, certamente uma maquiavélica invenção do socialismo. E não é tampouco um fenômeno passageiro que pode se evaporar como a água submetida ao extremo calor. A luta de classes é uma realidade vigente no plano interno de cada país e no cenário de nosso tempo. E se expressa de maneira dramática nos índices de miséria, desnutrição, abandono, atraso social, analfabetismo e outras lacras. Porém também na política predadora e agressiva do imperialismo contra os povos, na guerra contra o Iraque e o Afeganistão, no bloqueio contra Cuba, no extermínio do povo palestino, nos ataques contra a Venezuela, na campanha contra o Equador e a Bolívia.
Teórico e ao mesmo tempo ativista
4 – O quarto elemento comum entre as personalidades que abordamos é sua identificação plena e absoluta com a luta social. Carlos Marx foi certamente um teórico notável, mas foi ao mesmo tempo um ativista revolucionário de extraordinária qualidade. Consciente da certeza de suas ideias não se limitou a formulá-las mas trabalhou por elas ativamente na luta concreta dos trabalhadores.
Tinha 24 anos quando empreendeu a tarefa de divulgar suas concepções fundamentais publicado a célebre “Gazeta da Renânia”, que teve curta  duração mas desempenhou papel de excepcional importância na tarefa de afirmar ideias de classe na cabeça dos trabalhadores. E 30 anos quando vinculado já a Frederico Engels, entregou “O Manifesto do Partido Comunista”, publicado em fevereiro de 1848. Há que destacar, contudo, que em todo esse período, o vínculo de Marx com a luta do proletariado foi marcado no processo histórico.
Recorde-se que a Revolução Francesa de 1789 teve um período histórico muito curto e acabou regada em sangue, envolvida nas vicissitudes do governo de Terror de Robespierre, as intrigas de José Fouché e os afãs conspiratórios do Diretório e Bonaparte. A etapa mais convulsiva – pós revolucionária – desenvolveu-se na França entre 1796 e 1815. Os estertores da etapa chegou ao fim neste ano com o retorno dos Burbons ao trono de Paris sob a forma de uma monarquia constitucional. A realiza foi recolocada em suas funções depois do Congresso de Viena e isso permitiu comprovar que os desterrados de Coblença, no dizer dos críticos da época, em seus anos de desterro nada aprenderam  e não esqueceram nada. A doce França voltou aos anos dourados da corte, mas o proletariado continuou impetuoso na luta por uma sociedade melhor.
Uma contradição dessa magnitude entre os interesses de uns e de outros não poderia ser resolvido senão através da força. E ela abriu passagem a partir da constante agitação social vivida sobretudo entre 1842 e 1848. Ela não ocorreu só no antigo território dos gauleses, mas também na Germânia. Desse modo. França e Alemanha viveram uma etapa convulsa que permitiu mudanças súbitas na condução do Estado. No centro desse processo esteve a Revolução de 1848 que, desde Paris, finalmente restaurou a República e colocou o poder nas mãos da burguesia.
Essa foi uma etapa de complexas lutas em que o proletariado buscou afanosamente abrir caminho para as demandas legítimas no marco de uma crise profunda que assolou o velho continente. A fome estendida gerou agudas tensões internas mas também conflitos de fronteira entre diversos Estados. Revoluções e guerras afloraram no cenário dando a impressão de uma iminente explosão de proporções colossais. As grandes metrópoles dos países desenvolvidos viram muito de perto diferentes expressões da luta de classe no extremo que Flaubert prognosticava que, a cabeça do Império Otomano, Constantinopla, se converteria nos próximos cem anos em capital do mundo.
Marx e Engels, atores do processo, se envolveram abertamente na ação dos povos insurgentes, mas sobretudo nas lutas dos camponeses e dos operários empenhados em forjar uma nova ordem social. Nesse contexto, a repressão desatada pela classe dominante não se fez esperar.
A velha “teoria” do complot
Marx foi obrigado a abandonar a França enquanto que Engels tomou as armas para participar nas revoltas da época. Entre 1848 e 1851, quando ressoavam pelo velho continente as solenes profecias do Manifesto Comunista, as massas combatiam nas condições mais adversas, enfrentando uma brutal repressão. Expressão nítida foi sem dúvida o Processo aos Comunistas de Colônia, de 1852, iniciado originalmente contra Marx e seus colaboradores mais imediatos. Foi essa a primeira experiência no mundo do uso de um suposto “complot comunista”. 75 anos mais tarde, em junho de 1927, a teoria do “complot comunista”  foi usada pela primeira vez no Peru contra José Carlos Mariátegui e seus companheiros.
A atitude de Marx diante do Processo aos onze comunistas de Colônia e a posição de Mariátegui diante do presunto complot comunista de 1927, foi muito parecida. Marx colocou em evidência o caráter inconsistente das acusações contra seus companheiros. E Mariátegui fez exatamente o mesmo em uma carta redigida no Hospital Militar de San Bartolomé, onde estava transitoriamente confinado. Ali, aproveitou para desmentir o propagado pelo Ministério de Governo de então destacando a distância de “todo tipo de complot caboclo dos que podem ser produzidos aqui pela velha tradição das conspirações. A palavra revolução tem outra acepção e outro sentido”.
Marx e Mariátegui tiveram em alta estima, sem dúvida, o papel da classe operária como a força revolucionária por excelência e construtora da nova sociedade. Ela, dizia o autor de “O Manifesto” “não pode emancipar-se já da classe que a explora e oprime, da burguesia, sem que ao mesmo tempo se emancipe para sempre e por inteiro a sociedade da exploração e opressão”. O proletariado era, nesse concepção, a garantia da vitória e do futuro.
O papel do proletariado foi destacado com meridiana clareza por Mariátegui em sua “Defesa do Marxismo”. “Não acreditamos –disse – que o projeto de criar uma nova ordem social caiba a uma massa amorfa de párias e oprimidos guiada por evangélicos pregadores do bem. A energia revolucionária do socialismo não se alimenta de compaixão nem de inveja. Na luta de classes, onde residem todos os elementos do sublime e do heroico de sua ascensão, o proletariado deve se elevar a uma moral de produtores”.  Acrescentou que “o proletariado não ingressa na histórica política senão como classe social; no instante em que descubra sua missão de edificar, com os elementos amealhados pelo esforço humano, moral ou amoral, justo ou injusto, uma ordem social superior”.
Foram similares, então as opiniões de Marx e de Mariátegui em torno da classe operária e seu papel no processo social, sua organização política e suas lutas, suas tarefas essenciais e suas formas de ação. Também, certamente na analise da perspectiva do movimento, quando, finalmente, seja destruída a sociedade da opressão e emerja sobre bases firmes uma ordem social nova e mais justa.
Coincidências pontuais
Outros elementos fluem do estudo de ambas as vidas. Curiosamente, Marx e Mariátegui foram jornalistas desde muito jovens. Enquanto o primeiro publicou, muito jovem a Gazeta Renana e depois os Anais Franco-Prussianos; o segundo editou no Peru, primeiro Nuestra Época e logo La Razón – hoje usurpado pelo diário da máfia-. E depois Amauta e Labor.
Ambos escreveram numerosas obras, das quais nem todas foram publicas ainda em vida. Estudos sociais, políticos e econômicos, analises da realidade nacional e mundial. Foram escritores brilhantes em seu tempo. E trouxeram ideias acordes com os interesses dos povos. Por isso a maioria de suas obras foram entregue ao conhecimento do mundo por seus seguidores – que somam milhões – em diversas latitudes do planeta. Os dois trataram de trabalhar pela organização do proletariado criando estruturas representativas do movimento operário em todos os níveis. Mas ao mesmo tempo, se solidarizaram com suas lutas e delas participaram porque foram combatentes da classe e não dirigentes sentados em poltronas.
Também buscaram dar luz política própria ao proletariado dando à luz estruturas partidárias que cumpriram uma função vital em seu momento. Não perseguiram postos dirigentes para estar neles, mas se valeram de suas posições na batalha de classe para servir a causa dos povos. Sofreram nesse esforço o rigor da luta de classes, e foram vítimas não só da agressão econômica do capital, mas também da represália brutal dos regimes a que tiveram que enfrentar em condições adversas.
Marx legou uma bela herança ao proletariado mundial. E Mariátegui fez o mesmo com relação ao movimento operário e revolucionário peruano e latino-americano. Os dois, em suma, foram sonhadores e nos permitem agora recordar em a formosa frase de Anatole France: “sem os sonhadores, a humanidade viveria ainda nas cavernas”.
Marx morreu em 1883, quando no mundo o capitalismo saia de uma de suas crises periódicas e alcançava uma relativa estabilização que se quebraria depois no novo século. Mariátegui nasceu em 1894 e adquiriu plena consciência política com a Revolução russa, fenômeno histórico de incalculável valor e cujos 90 anos devemos celebrar.
Mariátegui sempre se sentiu profundamente influído pelo pensamento marxista. Por isso, em sua polêmica com Henri de Man, não vacilou em destacar: “Marx está vivo na luta que pela realização do socialismo travam no mundo incontáveis multidões animadas por sua doutrina”.
* Da equipe de colaboradores de Diálogos do Sul. Secretário geral da Associação Amigos de Mariátegui (Casa Mariátegui) e membro do Coletivo de Direção de Nuestra Bandera (www.nuestra-bandera.com)
 
 
 
 
 
 
 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Gustavo Espinoza M. Jornalista e colaborador da Diálogos de Sul em Lima, Peru, é diretor da edição peruana da Resumen Latinoamericano e professor universitário de língua e literatura. Em sua trajetória de lutas, foi líder da Federação de Estudantes do Peru e da Confederação Geral do Trabalho do Peru. Escreveu “Mariátegui y nuestro tiempo” e “Memorias de un comunista peruano”, entre outras obras. Acompanhou e militou contra o golpe de Estado no Chile e a ditadura de Pinochet.

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