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Massimo Faggioli | É preciso fazer muito mais do que derrubar algumas estátuas

O que precisamos é de uma luta pela justiça e pela redenção das vítimas por meio de uma ação também política. Mas isso é impossível sem um senso de história
Redação Institudo Humanistas Unisinos
Revista IHU On-line
São Paulo (SP)

Tradução:

“A atual derrubada de estátuas no hemisfério ocidental (nos Estados Unidos, no Reino Unido e em partes da Europa ocidental) não é simplesmente uma mudança de regime político, mas sim uma crise de civilização. 

A cultura europeia e o cristianismo foram postos no banco dos réus”, escreve Massimo Faggioli, historiador italiano e professor de Teologia e Estudos Religiosos na Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por America, 22-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

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Segundo ele, “remover estátuas pode ser, na melhor das hipóteses, apenas parte de um caminho muito mais longo e mais difícil pela frente. Monumentos derrubados podem criar obstáculos ou podem ser pedras fundamentais”.

O que precisamos é de uma luta pela justiça e pela redenção das vítimas por meio de uma ação também política. Mas isso é impossível sem um senso de história

Reprodução: Twitter
A onda de destruição de estátuas de escravos no mundo; Ele reviveu os episódios dolorosos da escravidão

Eis o artigo.

Derrubar a estátua de um personagem histórico é um ato político. Assim como construir uma. A remoção de monumentos não é mais violenta do que a sua instalação, em primeiro lugar. Para aqueles que desejam entender o momento presente, o ponto mais importante não é “lei e ordem” ou “decoro urbano”. O problema é o que queremos fazer com o nosso passado.

Algumas estátuas merecem ser derrubadas e removidas, porque seu valor simbólico foi minado por uma reavaliação política e historiográfica de um passado trágico. Na Itália, meu próprio país de origem, muitos monumentos do regime fascista foram removidos muito antes de ser possível ensinar sobre a história dos regimes autoritários do século XX. Existem outros exemplos também. Na Europa oriental pós-comunista, por exemplo, estátuas da era soviética eram frequentemente transferidas para museus e parques para se tornarem parte de uma ressignificação da arte política.

Mas o nosso problema é diferente. A atual derrubada de estátuas no hemisfério ocidental (nos Estados Unidos, no Reino Unido e em partes da Europa ocidental) não é simplesmente uma mudança de regime político, mas sim uma crise de civilização. A cultura europeia e o cristianismo foram postos no banco dos réus. É claro que eles não são inocentes: colonialismo, escravidão, genocídio, opressão cultural e supremacia branca causaram muitas vítimas. Existem culturas ou religiões totalmente inocentes?

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Walter Benjamin, filósofo judeu alemão que morreu em 1940 enquanto fugia dos nazistas, escreveu que “não há nenhum documento da civilização que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie”. Eu interpreto que isso significa que destruir estátuas não é necessariamente a maneira mais construtiva de elaborar um passado trágico e de construir um futuro diferente. Somos responsáveis pelo passado, e destruir estátuas não resolverá o problema dessa responsabilidade. Isso também poderia levar à suposição de que aqueles que estão destruindo monumentos do passado estão “do lado certo da história” – algo que beira a complacência. Talvez a linguagem de “estar do lado certo” funcione na política, mas, intelectual e moralmente, beira a autoilusão.

O que precisamos é de uma luta pela justiça e pela redenção das vítimas por meio de uma ação também política. Mas isso é impossível sem um senso de história. Destruir estátuas faz a história parecer um drama. Em vez disso, ela deve ser vista como uma tragédia, onde “trágico” significa ver a nós mesmos não apenas em solidariedade com as vítimas, mas também como parte desse passado.

O que é necessário, especialmente por parte de quem tem uma vocação profissional para fazer isso, é um discernimento dos espíritos. Destruir é mais rápido do que ressignificar os monumentos do passado. Às vezes, a ressignificação não é possível e, ao contrário, levaria a mais violência e opressão. Em outros casos, a iconoclastia contra obras de arte é um obstáculo à possibilidade de compreender o passado: as obras de arte são coisas vivas, nunca fechadas ou terminadas, pois estão sujeitas a novas interpretações e estudos.

A história não pode ser desfeita, mas também não está pronta. Como ressaltou Terry Eagleton em seu livro “Hope Without Optimism” [Esperança sem otimismo], nós somos responsáveis pelo passado, assim como pelo presente e pelo futuro: “O sentido dos eventos passados reside, em última análise, na salvaguarda do presente”. O ponto de vista das vítimas deve ser o ponto de partida: “Os mortos não podem ser ressuscitados; mas há uma forma trágica de esperança pela qual eles podem ser investidos de um novo sentido, interpretados de outra forma, entrelaçados em uma narrativa que eles mesmos não poderiam ter predito”.

Essa salvaguarda do presente não pode se limitar a uma narrativa política, mas, em vez disso, deve se aprofundar em uma visão teológica da história: “A possibilidade de um mundo compartilhado através dos abismos da diferença”, nas palavras do teólogo Rowan Williams. O que não é aparente hoje é a habilidade de nos vermos como parte da história – não apenas na política, mas também no mundo intelectual católico contemporâneo, onde as disciplinas históricas foram totalmente marginalizadas.

Esse não é apenas o apelo de um historiador, mas também uma preocupação geral com essa perda de sentido da história. Deixe-me oferecer dois exemplos. O primeiro trata do problema da tradição teológica: vamos cancelar todos os Padres da Igreja que defendiam pontos de vista antijudaicos ou sexistas das grandes coleções-fontes “Patrologia Graeca” e “Patrologia Latina”? Ou, melhor, vamos lê-los de modo mais contextual a fim de aprender como a compreensão do Evangelho cresce na história?

O segundo exemplo: a nova fase da crise dos abusos sexuais (após 2018) começou uma nova rodada de pesquisas. Eu acho que os católicos ainda estão em busca de uma hermenêutica da história necessária para entender a crise dos abusos sexuais de uma forma que seja útil para construir e corrigir a sua tradição teológica e magisterial. O risco é que a Igreja se limite a derrubar – literal ou figuradamente – alguns dos monumentos do seu passado, incluindo doutrinas, instituições e lideranças da Igreja.

Os alemães, é claro, têm uma palavra para isso: vergangenheitsbewältigung, ou “lidar com o passado”. Remover estátuas pode ser, na melhor das hipóteses, apenas parte de um caminho muito mais longo e mais difícil pela frente. Monumentos derrubados podem criar obstáculos ou podem ser pedras fundamentais.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Redação Institudo Humanistas Unisinos

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