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Mercantilização e financeirização: A Sebraelização do Indigenismo na Amazônia

Governantes sempre quiseram inserir povos indígenas nos seus modelos de desenvolvimento, mas sempre se recusavam a admitir a existência de modelos próprios desses povos
Lindomar Dias Padilha
Combate Racismo Ambiental
São Paulo

Tradução:

O presente texto tem por intenção expor alguns apontamentos a serem aprofundados sobre uma leitura, talvez peculiar, que fazemos do processo que estamos chamando de “sebraelização[2] do indigenismo”.

Em tempos bicudos quanto os atuais, refletir sobre certos temas é antes de tudo um corajoso exercício de releitura quase exegética. Entretanto, como dito anteriormente, o propósito é, talvez, atiçar e provocar as mentes honestas e abertas. Não propomos verdades, mas um olhar mais crítico daquilo que pode se apresentar de forma esverdeada com a intenção de esconder as cinzas sobre as quais os modelos desenvolvimentistas se apoiam.

Se de um lado não propomos verdades, de outro não as admitimos de forma absoluta e inquestionável. Nossa análise, mesmo considerando todo o processo histórico, situa-se nas décadas de 2000/2010 e momento presente. Sempre houve intenção dos governantes, em diversas épocas históricas, inserir os povos indígenas nos seus modelos de desenvolvimento ao mesmo tempo em que se recusavam a admitir a existência de modelos próprios desses povos.

“Faz-se relevante destacar que, os Kaxinawa, juntamente com a ONG Comissão Pró-Índio do Acre e outros povos indígenas do estado, criaram uma cronologia de suas histórias e utilizam os seguintes termos: “tempo da maloca”, para designar o período da história em que viviam juntos, antes do contato com os brancos; “tempo das correrias”, para designar o momento em que há invasões das terras indígenas no Acre, e que tentavam fugir; “tempo do cativeiro”, para a época em que foram humilhados, escravizados e serviram como mão de obra para os seringais; e, finalmente, o “tempo dos direitos” para designar o momento em que foi iniciada a luta pelas demarcações de terra, a criação da Constituinte de 1988 e o surgimento do movimento político indígena, bem como suas organizações” (Grifo nosso).  (IGLÉSIAS & AQUINO, 2005).

O texto de Terri Aquino e Marcelo Iglesias indica que se criou uma cronologia histórica para realizar o que chamo aqui de primeira adequação dos povos e comunidades indígenas à lógica do capital e o desenvolvimentismo subjacente a este. Vejamos como essa estrutura teórica justifica a transformação dos povos indígenas em supostos comerciantes de Serviços Ambientais e empreendedores:

Os povos indígenas, via de regra, não possuem um pensamento histórico linear. Esta é uma forma de pensar do Ocidente Europeu, colonialista e expansionista. Segundo (PADILHA. 2016) “Falar em tempos histórico dos povos indígenas nesta lógica é impor-lhes a lógica temporal colonizadora”. É violar a lógica indígena e negar-lhe cientificidade; é ainda impor, pela história, um modelo desenvolvimentista, evolucionista linear, como se a verdadeira história indígena não significasse nada e como se só fosse possível significa-la a partir de uma “criação cronológica de sua história”, sempre dos de fora, do colonizador.

Admitindo esses tempos históricos, admitiremos necessariamente que no Acre se chegou a um tempo, identificado como “tempo dos Direitos”. Este ponto é especialmente crítico porque enfraquece a necessidade de seguir lutando por direitos e, o pior, coloca os povos indígenas como meros receptores desses direitos. Os direitos passam a ser uma dádiva, um presente, uma concessão por parte dos mandatários. Este modelo fora aplicado várias vezes em nossa história. Por exemplo, a Princesa Izabel “libertou” os escravos como que em um gigantesco ato humanitário e como se os escravizados nada tivessem feito por sua própria libertação. No caso dos indígenas no Acre a ideia é a mesma: depois que os direitos lhes foram dados por pura generosidade das autoridades do Governo da Floresta, a eles, os povos indígenas, resta apenas a eterna gratidão e subserviência. Destacamos que justamente a partir do ano de 2002/2003, em pleno Governo da Floresta, todos os processos de demarcação de Terras Indígenas no Estado do Acre foram paralisados. E raras foram as vozes que se levantaram contra esse ataque aos direitos dos povos.

A não necessidade de demarcação de novas terras, ou das terras que não foram demarcadas, quer justificar a tese de que o problema dos povos indígenas no Acre não é a falta de terra, mas sim a falta de gestão. Os indígenas, portanto, precisam aprender a serem gestores de suas terras e dos recursos que também “recebem” do governo. Entretanto, a representação tradicional dos povos indígenas não dá conta desta nova demanda já que os caciques quase sempre são vistos como incapazes, incompetentes, não letrados e essas diversas formas preconceituosas de entender a organização sociopolítica dos povos. Por isso se justifica a criação de setores especializados em fomento e gestão.

A partir de então, extingue-se o movimento das lideranças indígenas, formados basicamente por caciques e experientes líderes (a União das Nações Indígenas do Acre, Noroeste de Rondônia e Sul do Amazonas – UNI[3] Acre é falida em 2004), e o poder de representação e consulta fica restrita aos diretores de organizações por vezes sem nenhum vínculo com as comunidades. De outro lado, essa nova forma de se organizar se ajusta melhor às necessidades do governo e das ONGs responsáveis por este “diálogo” já que não precisam mais se dirigir até as aldeias, pois as coordenações dessas ONGs (Indigenistas e indígenas) são sediadas na capital, Rio Branco ou em outros centros próximos ao poder.

Essas ONGs, pelo fato de não terem capilaridade, não chegam até as aldeias e a gestão fica limitada às mesmas ONGs, sem uma prática interna, local, nas comunidades. A alternativa apresentada então é uma: transformar as comunidades ou setores dessas comunidades abrindo-as ao mercado. A questão, portanto, não é os povos indígenas terem acesso a recursos, mas, governos, ONGs e empresas terem acesso aos recursos naturais comuns existentes nos territórios. Para tanto, se faz necessário a criação de uma legislação que regulamente a expropriação:

Art. 1º Fica criado o Sistema Estadual de Incentivos a Serviços Ambientais – SISA, com o objetivo de fomentara manutenção e a ampliação da oferta dos seguintesserviços e produtos ecossistêmicos: I – o sequestro, a conservação, a manutenção e o aumento do estoque e a diminuição do fluxo de carbono; II – a conservação da beleza cênica natural; III – a conservação da sociobiodiversidade; IV – a conservação das águas e dos serviços hídricos; V – a regulação do clima; VI – a valorização cultural e do conhecimento tradicional ecossistêmico; e VII – a conservação e o melhoramento do solo. (ACRE. Lei 2.308 de 22 de outubro de 2010).

Veja que o que se tem por objetivo principal “fomentar a oferta de serviços e produtos”. Os artesanatos e utensílios são um grande exemplo de como tem se dado a sebraelização. Uma senhora que produz artesanatos, por exemplo, é alçada à condição de empreendedora. Os artesanatos, muitos com profunda e íntima relação com o sagrado, passam a ser apenas objeto de comércio, mercadoria. Há uma espécie de dessacralização da natureza, da cultura místico/religiosa.

Art. 5°. O SEBRAE tem por objetivo fomentar o desenvolvimento sustentável, a competitividade e o aperfeiçoamento técnico das microempresas e das empresas de pequeno porte industriais, comerciais, agrícolas e de serviços, notadamente nos campos da economia, administração, finanças e legislação; da facilitação do acesso ao créditocapitalização e fortalecimento do mercado secundário de títulos de capitalização daquelas empresas; da ciência, tecnologia e meio ambiente; da capacitação gerencial e da assistência social, em consonância com as políticas nacionais de desenvolvimento. (https://m.sebrae.com.br/Visitado em 17/11/18).(Grifo nosso)

Vejam que curioso. Enquanto o governo do Acre, a serviço de empresas e governos “esverdeados”, fala em “fomentar a oferta de serviços e produtos”, o SEBRAE fala em “fomentar o Desenvolvimento Sustentável e acesso à ‘crédito’ e capitalização”.

A Sebraelização das relações, a mercantilização da cultura, assim como a Financeirização da natureza por meio da economia verde (ou outro nome que soar melhor) tem um vício de origem. Ou seja, não procuram equacionar e resolver os gravíssimos problemas dos povos indígenas, mas procura apenas resolver os problemas de falta de políticas públicas da parte do governo e em vários casos, resolver o problema de caixa de governos e ONGs. Esses projetos tendem ao fracasso especialmente porque não escutam os povos indígenas nem durante a elaboração e muito menos na execução. São sempre vindos de fora, nunca nascem da vontade desses povos e se quer essa vontade é considerada.

É justamente em decorrência desta leitura política e considerando os aspectos perigosos e o desrespeito aos direitos dos povos indígenas, notadamente os direitos Constitucionais, é que o Cimi – Conselho Indigenista Missionário, soltou uma nota pública em 13/03/2012 com o título: “A Sanha do Capitalismo Verde: REDD e as artimanhas contra os povos indígenas” em cujo primeiro parágrafo lemos:

“Agora não chegam as caravelas com portugueses, espanhóis, ingleses, franceses e outros do norte desenvolvido. Chegam empresas transnacionais do norte, trazendo a tiracolo os governos de seus países, com propostas “ecologicamente corretas” e carregando em seu bojo a subordinação ainda maior dos povos do sul. A terra, lastro do capital natural, está sendo comercializada em bolsas de valores. Tal sanha também se estende aos outros elementos da natureza, como o ar, a biodiversidade, a cultura, o carbono – patrimônios da humanidade”. (grifo nosso).

A Constituição Brasileira, em seu artigo 231 é clara quanto ao reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, não dependendo de nenhuma interpretação, reconstituição supostamente histórica, ou mesmo leis estaduais que venham a lhes “garantir” esses direitos.

“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. (…)

§ 2º – As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. (…)

§ 6º – São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. (Brasil, CF Art. 231 e 232) (Grifo Nosso)

A intenção de explorar as riquezas existentes nos territórios indígenas e nos territórios de povos e comunidades tradicionais é o que sempre está por trás. Este tem sido o nosso ponto central de críticas e enfrentamentos nestes quase vinte anos últimos, coincidentes com governos da chamada Frente Popular do Acre. Os governos da Frente preferiram fazer ouvido de mercador (sem ironias) a escutar a voz crítica dos povos e comunidades.

A pesquisadora e estudiosa de temas ligados à economia verde e REDD, Juta[4] (KILL 2016) em documento enviado ao MPF – Ministério Público Federal do Acre, no contexto do inquérito Civil nº 1.10.001.000166/2016 – 90, ao falar de financiamento de atividades em terras indígenas do Acre diz:

 “É somente através dessa estrutura incomum de pagamento, que inclui pagamentos por manter o “estoque de carbono” em lugares onde não há risco de o carbono fluir para a atmosfera que o financiamento do REM no Acre foi disponibilizado para financiar atividades em Terras Indígenas (TIs). Esses pagamentossão feitos a atividades em áreas onde não há risco imediato de desmatamento e para as quais o governo do Acre não pode mostrar uma redução verificada do fluxo de carbono para a atmosfera porque não havia risco de tal fluxo acontecer: os povos indígenas vinham mantendo a floresta dentro do seu território demarcado. Os pagamentos são feitos para recompensar a conservação do estoque de carbono, e não para reduzir o fluxo de carbono para a atmosfera, conforme sugerido pela primeira letra na sigla REDD – Redução”. (KILL. Juta, A relação entre o REDD+ e o programa “REDD para pioneiros”- REDD Early Movers, ou REM do banco público alemão KFW, 2016).

Notemos que ela fala em “estrutura incomum de pagamento para manter “estoques de carbono”. No caso dos territórios indígenas o governo do Acre “não pode mostrar uma redução verificada do fluxo de carbono para a atmosfera”. Cito este documento da Juta ao final para indicar o ponto onde paramos neste ano de 2018. Ou seja, saímos de uma desconstrução do modo tradicional de vida dos povos indígenas para uma Sebraelização aprofundada até o limite da mercantilização total chegando à financeirização.

CONCLUSÃO

A complexidade do tema e o interesse de que não nos apropriemos do conhecimento dos riscos relativos ao modelo econômico vinculado à economia Verde e sua consequente Sebraelização, mercantilização e Financeirização da natureza, tem nos levado a estudos cada vez mais aprofundados e ainda os faremos por longo tempo já que uma das estratégias é a troca conceitual frequente e a utilização de linguagem não comum do dia a dia das comunidades.

No nosso entendimento, em relação aos povos indígenas, os processos foram construídos da seguinte forma, resumidamente:

a) Introdução de uma cronologia histórica apropriada para a alteração profunda na lógica adotada tradicionalmente pelos povos indígenas incutindo em algumas lideranças, notadamente lideranças não tradicionais e formadas em espaços alheios às aldeias incutindo-lhes a ideia de “desenvolvimento”.

b) Adoção de conceitos como “gestão” territorial e empreendedorismo como forma de transferir as responsabilidades pelo sucesso, ou fracasso, aos próprios povos indígenas, desresponsabilizando o poder público, ONGs empresas e governos não nacionais.

c) Conversão dos direitos em presentes dados por um governante bonzinho e que olha para os povos da floresta, vela sobre seus sonhos.

d) Contratação de ONGs que prestam consultoria ao governo na formulação de leis e na aplicação de mecanismos ligados aos interesses mercadológicos.

e) Desqualificação e desautorização das lideranças tradicionais em benefício de novas lideranças que melhor “dialogam” com essas novas formas do velho capitalismo, “empreendedorismo” e desenvolvimentismo.

f) Hipoteca das terras indígenas e áreas de conservação com discurso inversamente oposto para confundir.

g) E, por fim, controle absoluto pelo capital sobre os bens naturais comuns a todos nós por meio da mercantilização e Financeirização da natureza.

Referências:

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.

KILL. Juta, A relação entre o REDD+ e o programa “REDD para pioneiros”- REDD Early Movers, ou REM do banco público alemão KFW, 2017).

NUNES, Rosenilda Padilha. (Org.) Indígenas em espaços urbanos no acre, CIMI, Ed. Mensageiro, Acre 2011.

NUNES, Rosenilda Padilha. Entre o Português e o Jaminawa: o bilinguismo e o ensino da língua oficial. 2013; Dissertação (Mestrado em Mestrado em Ciências da LInguagem) – Fundação Universidade Federal de Rondônia. 

PADILHA, Lindomar D. et al. Dossiê Acre: O Acre que os Mercadores da Natureza escondem, CIMI, DF, 2012.


[1]Lindomar Dias Padilha é licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE e pós-graduado em Desenvolvimento e Relações Sociais no Campo, Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais pela Universidade de Brasília, UnB. E mestrando em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis.

[2] Adoto este termo desde 2012, por ocasião da Rio +20 quando foi publicado o Dossiê Acre. A expressão surge após uma leitura comparativa dos objetivos contidos no estatuto do Sebrae e a forma e objetivos contidos na Lei 2.308, a chamada Lei SISA do Acre. Ao comparar, notei que o estatuto geral do Sebrae em seu capítulo 5º repete para todos os estado a mesma objetividade, acrescendo apenas as siglas referentes às unidades da federação ( TO – Tocantins; AC – Acre) e que o mesmo ocorria com a lei acreana que era apenas adaptadas aos estados, repetindo porém, os objetivos.

[3] O fim da UNI deixa um enorme vazio na política indigenista como um todo e principalmente na política de atenção à saúde, terra e educação. Há uma grande perplexidade sobre os caminhos a serem percorridos e em relação ao Movimento Indígena. Passa a ser urgente a criação de novos espaços para reflexão. Mas, esses espaços são negados e obscurecidos por força da ação político partidária que ainda atua de maneira decisiva e controla os recursos destinados à saúde e aos demais setores da vida indígena.

[4] Jutta Kill é bióloga, ativista e pesquisadora. Sua pesquisa é orientada à ação e apoio aos movimentos sociais e comunidades tradicionais, na análise de novas tendências na conservação da natureza e proteção ambiental e seu impacto sobre as comunidades. Desde 2000 vem documentando os impactos locais de inúmeros projetos de carbono florestal e biodiversidade, em particular os que comercializam compensação de carbono. Combinando pesquisa de campo e análise crítica com fundamento teórico, seu trabalho vem apoiando fortemente a formulação de argumentos contrários aos esquemas de mercantilização e financeirização da natureza, assim como denunciando as violações aos direitos das comunidades indígenas e tradicionais na África e América Latina.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Lindomar Dias Padilha

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