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O pensamento de Rousseau constitui, sem dúvida, um dos marcos mais importantes da ilustração. Não em vão O Contrato Social se converteu em uma das obras mais lidas depois da Revolução Francesa. No entanto, esse ensaio foi eclipsado por Emílio (1762), que gozou de grande popularidade em sua época. Este escrito sobre educação escapa a uma fácil classificação em um gênero concreto. É um livro de filosofia, de pedagogia, um romance, um estudo da bondade natural do ser humano; é, enfim, uma narrativa que apresenta um modelo educativo que tenta seguir os preceitos da natureza.
Martín Almada*
No país de Rousseau, em um lugar chamado Morges, que conta com a Academia Musical, há 30 anos no mês de agosto realizam-se concertos de prestígio internacional, com academias de dança e mais de 90 centros educativos. Supõe-se que nesses centros educativos será lida e levada à prática a mensagem de Rousseau através do Emilio, seu revolucionário modelo educativo.
Justamente aqui em Genebra, na ocasião de levar a cabo um ciclo de conferências sobre os 40 anos da Operação Condor com os auspícios da Fundação Prêmio Nobel Alternativo, no dia 6 de junho de 2016, tomei conhecimento por meio da imprensa que na Cidade de Morges três adolescentes suíços foram sancionados com um mês de suspensão por haver avaliado nas redes sociais seu Professor de Educação Física.
Os diretores da Instituição escolar manifestaram que os alunos ainda não têm a capacidade para julgar a tarefa de seus professores. Que os alunos vão à Escola para aprender e os professores para ensinar e basta. Ou seja, que os alunos são incompetentes para avaliar seus professores. No entanto, os pais dos alunos em questão e outros pais pensam o contrário. Estimam que a sondagem estudantil possa melhorar a qualidade educativa. Esta história de terrorismo escolar por parte das autoridades começou em 15 de maio de 2016. O sistema educativo suíço sofreu uma ferida mortal ao castigar severamente os três transgressores do sistema obsoleto. Pelo visto na Suíça aterrissou tardiamente a Operação Condor para calar toda voz que se levante contra a imposição do modelo neoliberal de ultra-concentração da riqueza e socialização da pobreza. Sabemos que a educação capitalista apaga a curiosidade, a iniciativa e a criatividade sobre todo o compromisso social. Na Suíça, é urgente propor uma educação nova para uma nova sociedade do Século XXI.
A problemática que colocam os três estudantes contestadores coincide com os dados estatísticos que dizem que a população suíça está com incríveis índices de sedentarismo e obesidade. Quanto me anima o interesse de desenvolver em Morges uma conversação com os professores sobre o papel da educação diante do neoliberalismo selvagem e criminoso. O papel dos Estados nos países do chamado primeiro mundo consiste em manter a população tranquila para que as empresas e as sagradas instituições bancárias possam funcionar sem problemas. O maior triunfo dos senhores da indústria, do comércio e fundamentalmente dos bancos foi ter conquistado as mentes da classe política dirigente e de seus assessores intelectuais bem remunerados.
História e memória educativa: Paulo Freire no Paraguai
Meu crime: educar para a liberdade
Em 1972 fui diretor do Instituto Juan Bautista Alberdi na cidade de San Lorenzo. O colégio contava com 44 professores, 25 dos quais compartilhavam comigo a mensagem lançada pela Igreja Católica em Medellín e que se resume nestas palavras: “A educação, em todos os níveis, deve chegar a ser criadora e há de antecipar o novo tipo de sociedade na América Latina”.
Entre nossos mentores espirituais figuravam o argentino Aníbal Ponce e o brasileiro Paulo Freire. Também nos inspirávamos nas produções intelectuais do peruano Carlos Mariátegui e em alguns documentos produzidos pela reforma educativa do Peru, levada a cabo sob o governo progressista do general Velasco Alvarado. Fomos aconselhados também a incluir em nosso repertório os Cadernos da prisão, do político e ideólogo da educação, Antonio Gramsci publicados pela primeira vez entre 1948 e 1951. Sua análise das dificuldades que são propostas nas sociedades avançadas e mutantes, nas quais a classe governante exerce não apenas o poder militar, mas também a hegemonia intelectual e cultural, atraiu a atenção de Jean Paul Sartre, Louis Althusser e outros notáveis pensadores da época.
O sacerdote jesuíta Pascual Páez, integrante do Serviço de Extensão da Universidade Católica e do trabalho de voluntariado na construção da Villa del Maestro di San Lorenzo, no ano de 1971, que nos obsequiou um exemplar mimeografado da Pedagogia do Oprimido do educador brasileiro Paulo Freire, foi o fator detonante para avançar nosso trabalho de conscientização em um meio urbano.
Lógico, o momento político não era o mais propício para uma experiência de autogestão como a que propúnhamos. Basta recordar que nesse mesmo ano o Ministério de Educação, um apêndice da “Honorável” Junta de Governo do Partido Colorado (ANR) distribuiu a todas as escolas primárias e secundárias o tristemente célebre “Decálogo anticomunista” – Princípios e métodos para combater o comunismo internacional – 1976, no qual se punha em guarda todos os professores contra os supostos perigos da ideologia marxista. Consciente dos riscos que implicava executar uma pedagogia progressista carente de apoio local nos vinculamos com uma série de organizações pedagógicas nacionais e internacionais: Associação de Educadores de San Lorenzo, Federação de Educadores do Paraguai (FEP), Universidade Católica, Confederação Mundial de Profissionais do Ensino, cuja sede matriz se encontrava justamente na Cidade de Morges, Suíça e o Ministério de Cultura e Educação da Argentina. “Conheçamos nosso inimigo” foi outra cartilha distribuída no Paraguai em 1977, com a firma do Ministro Juan José Catalán. Ambos os materiais foram enviados pela Equipe de educadores do Banco Mundial, Washington. Outra forma de penetração imperialista nas Universidades latino-americanas foi “O Plano Básico”, Informe de Rudolph Atcon sob o título “A Universidade Latino-americana”, 1978, 4ª edição de ECOE, Bogotá, Colômbia.
Para definir as grandes orientações de nossa futura ação pedagógica, nos reunimos em varias jornadas de reflexão um grupo de professores/as (em sua maioria cristãos/ãs comprometidos/as). Ligados por algumas afinidades ideológicas, influenciados pela mensagem de Medellín e pelos acontecimentos de maio de 1968 na França e pensando ingenuamente que se podia mudar a instituição escolar no interior de um sistema político repressivo e retrógrado, decidimos levar a cabo determinadas ações tendentes a democratizar nosso ensino. Isso significava na prática que a comunidade participava da tomada de decisões. Os habitantes de San Lorenzo já não estariam à margem da escola da qual me encarregava. Eles eram protagonistas agora.
Com o objetivo de terminar com as velhas práticas verticais e autoritárias, decidimos proceder a um questionamento periódico tanto do diretor como dos professores. O primeiro era avaliado por seus colegas e estudantes em assembleias gerais; os segundos eram avaliados por seus colegas e seus estudantes. Quanto aos estudantes, tratamos de habituá-los a práticas de uma autocrítica sumamente rigorosa que prepararia depois a autogestão pessoal e comunitária.
Os estudantes julgavam seus professores de acordo com uma série de parâmetros tais como: a competência, a capacidade de diálogo, o desenvolvimento da imaginação e da criatividade, habilidade para vincular-se com a comunidade, entre diversos itens.
A esta altura dos acontecimentos, muitos eram os que queriam conhecer o verdadeiro rosto do Paraguai em tempo de ditadura. Muitos alunos e docentes se julgavam entre eles mesmos e a outros. Assumiram sua realidade arduamente e nossa Escola de San Lorenzo se converteu em um laboratório para despertar os adormecidos. A participação nas mais variadas ações foi se ampliando para os restantes níveis e chegou, inclusive, até o quarto grau da educação primária. Um clima diferente coloria seu desempenho.
Avançávamos na convicção de que era necessário chegar à profundidade do problema da educação. Havia que criticar, esmiuçar a cultura transmitida pela escola para poder recriá-la à luz de novos valores. Na educação é a pergunta fundamental para a criação e a mudança. E, desse modo chegamos a elaborar um instrumento de avaliação que denominamos “Termômetro Escolar”( os estudantes secundários chamavam nosso instrumento de “Como atravessar o túnel do tempo”).
Sua aplicação ia precedida de uma proposta esquemática da história social e da estrutura de dominação e dependência de cada etapa. Seguia uma descrição do homem e seu desenvolvimento bio-psico-social. Concluía com a apresentação de três tipos de educadores que derivam de concepções diferentes do homem e da educação. Esses educadores correspondiam à escola “tradicional” (retardatária), à simplesmente “progressista” e à “nova”, aberta, baseada no diálogo, na facilitação da aprendizagem para a autocondução pessoal e social.
Provamos este instrumento de avaliação primeiro com os graus superiores da Primária. Seu manejo era fácil por ser esquemático e permitia detectar a “temperatura” de cada situação em aula, conforme seu professor fosse um condutor autoritário, permissivo ou democrático. Para isso a avaliação começava trazendo, por exemplo, uma linha vertical cortada por uma horizontal. No começo da horizontal colocamos o ano em que foi “descoberta” a América Latina pelos espanhóis: 1492. No cruzamento com a linha vertical colocamos o ano de experiência: 1971, e no outro extremo direito da linha horizontal o ano de 2000.
O mais importante benefício foi, sem dúvida, o despertar da consciência, da realidade concreta dos educadores e alunos e as riquíssimas inferências que surgiam da circunstância paraguaia. Onde estamos? Como vivemos? Foram as principais interrogações. A discussão chegava ao consenso: a sociedade paraguaia era e continua sendo, feudal. As relações de poder são de senhor a servo. A educação oficial reproduzia simplesmente o sistema. O combustível da ditadura foi ignorância e medo favorecendo o individualismo. Impede, portanto, de aceder à consciência social e à participação. Freia a aprendizagem de resolução dos problemas e da criatividade. Os jovens saem da escola para uma sociedade para a qual não estão preparados, mas sem resolver naturalmente a própria identidade e menos ainda a de sua terra.
O emprego do citado “Termômetro Educativo” foi se generalizando em mãos especialmente de educadores sem formação didática. Com eles havia uma corrente de entendimento superior, direta. Com os profissionais da educação, entretanto, era diferente, não no aspecto formal, mas nas atitudes. Os institutos profissionais geralmente não trabalham a pedagogia das atitudes, privilegiam as técnicas curriculares recomendadas pelo Banco Interamericano ou pelo Banco Mundial e esta carência fez com que o medo à mudança as levasse a agir como fizeram.
Anotações, computações, dados de sua aplicação foram destruídos na época da perseguição policial/militar do governo de Paz e Progresso sem comunismo. Recordo que quando chegaram ao local escolar em 26 de novembro de 1974 os “cães raivosos” me exigiram que lhes entregasse o diabólico/subversivo aparato que supostamente eu inventei. Referiam-se ao Termômetro Escolar.
Além da interpretação científica daquela memorável experiência fica a asseveração de Paulo Freire que nós fizemos nossa:
“A educação é um ato de amor,
Portanto, um ato de valor.
Não pode temer o debate,
A análise da realidade,
Não pode fugir da discussão criadora,
Sob pena de ser uma farsa”.
Por outra parte, o Lic, Lino Trinidad Sanabria com um comitê de professores se encarregou de preparar o projeto que propiciava, além do mais, a transformação do estabelecimento em uma cooperativa de professores. Nesse contexto e com o novo clima pedagógico constatamos com alegria o desejo de aprender que animava nossos estudantes, e sobretudo a vontade de compartilhar as lutas de nosso povo.
Nas lousas havíamos escrito a seguinte mensagem:
“O homem e a sociedade nova serão o fruto da solidariedade fraterna, com o povo que surge na convivência, no esforço compartilhado”.
Múltiplas barreiras foram rompidas, vislumbravam-se novos horizontes. Logicamente nem todos os professores do Instituto compartilham nossas inquietudes. O chamado “grupo reacionário stronista”, protestou vivamente quando solicitei que as folhas de exame de ciências exatas (Aritmética, Geometria, Trigonometria, etc.) fossem entregues aos estudantes depois das correções pertinentes. O grupo retardatário me dizia que tal medida poderia ocasionar um grave dano à autoridade do docente, que seria controlado tanto pelos estudantes como por seus pais, incapazes, segundo sua opinião, de um julgamento competente na matéria.
Sabíamos perfeitamente o risco que estávamos correndo, mas estávamos convencidos da justeza de nossa experiência. O compromisso de trabalhar por nossa juventude e por nossa pátria, nos impulsionava a seguir a estrela que guiava nossos passos.
Certo dia, na presença dos estudantes do 5º curso, seção da manhã, o jovem professor Roberto León Reyes, me exigiu que parasse urgentemente o processo de renovação pois, segundo ele, desembocaria inexoravelmente no caos total. Suas advertências não me amedrontaram: a confiança da maioria dos pais organizados no Clube de Pais e dos estudantes organizados no Centro de Estudantes do Alberdi era a melhor prova de que nossa ação pedagógica respondia às aspirações da comunidade educativa.
O grupo de recalcitrantes cronistas denunciou ao Ministério de Educação a experiência comunista que estávamos desenvolvendo e com isso o então Ministro a serviço da polícia secreta de Stroessner, Raúl Peña, pôs em marcha a máquina repressiva.
No dia 26 de novembro de 1974 foi ordenado o meu sequestro.
Para o regime ditatorial eu havia cometido diversas faltas gravíssimas no plano político, sindical e pedagógico.
As provas mais contundentes que foram apresentados ao Tribunal Militar integrado por militares de Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai (Operação Condor) foram:
-A experiência de autogestão educativa no Instituto “Juan Bautista Alberdi”, na perspectiva da educação libertadora de Paulo Freire.
-A minha tese de doutorado em Ciências da Educação na Universidade Nacional de La Plata na qual sustentei por uma parte que “no Paraguai a educação cumpre o papel legitimador do sistema imperante e está organizada para o subdesenvolvimento e a dependência”. Por outro, denunciei a Primeira vigilância massiva estadunidense, conhecida como Plano Camelot. (espionagem sociopolítica) de 1970.
-Mais adiante, já no Cárcere, agravei minha situação ao tentar a alfabetização de companheiros prisioneiros no campo de concentração “Emboscada” a 45 km. de Assunção.
Em definitivo, havia cometido o mais terrível crime contra a tirania. Realmente, meu crime foi ter educado nossa juventude estudiosa para a liberdade, ou seja, ter colocado “estrelas” no coração de homens livres, parafraseando a Marcos Ana, que sofreu mais de 23 anos nos cárceres do “generalíssimo “ Francisco Franco, “caudilho espanhol”.
*Martin Almada é Prêmio Nobel Alternativo da Paz e colabora com Diálogos do Sul, de Assunção. Paraguai.