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Mia Couto expressa importância dos escritores na luta contra colonizadores que "têm as mãos manchadas de sangue"

Tal como Guimarães Rosa, a escritor enriquece o linguajar com neologismos extremamente adequados a cada circunstância, num poetar que flui autêntico e doce
Carlos Russo Jr
Espaço Literário Marcel Proust
São Paulo (SP)

Tradução:

Mia Couto, ao receber o Prêmio Mário Antônio em 2001, declarou que “O último voo do flamingo” fala sobre a perversa fabricação de ausência – a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos”.

A leitura de Mia Couto caminha numa variante do realismo fantástico; talvez até mesmo melhor seria dizer que, como um mago, ele trabalha uma espécie de animismo fantástico, em que as almas encarnam em gentes com as tradições e as magias do seu pedaço de mundo, que não é somente Moçambique, mas todo o continente africano.Adota, num tempero todo seu, os nomes que por si só explicitam características psíquicas e comportamentais dos seus personagens. 

Transitando pelo trágico da realidade africana pós-colonial, nele encontramos um profundo e delicioso lirismo que ao poeta nos ata, prendendo-nos até o final em uma leitura que é feita sofregamente, mas à qual retornaremos muitas vezes para, somente então, degluti-la em seu âmago.

Tal como Guimarães Rosa, a escritor enriquece o linguajar com neologismos extremamente adequados a cada circunstância, num poetar que flui autêntico e doce

Reprodução: Flickr
O lirismo na “fabricação da ausência” da África pós-colonial.

Tal como Guimarães Rosa, Mia Couto enriquece o linguajar com neologismos extremamente adequados a cada circunstância, num poetar que flui autêntico e doce, como a unificar a estética aos pensamentos, e estes às tradições e expressões de sua gente.

Moçambique é uma nação profundamente agredida pelos anos de ocupação portuguesa, pelas guerras e pela ganância daqueles que usurparam o Poder deixado pelo Colonizador. 

Um domínio totalitário e despótico que, saindo das mãos dos colonizadores, passou a ser exercido pelos próprios africanos, os “Administradores” do hoje que, no passado, se juntaram à luta revolucionária por oportunismo, ou que, uma vez no poder, esqueceram seus ideais humanistas e socialistas, agindo em função da própria ganância, sob a hipocrisia daquilo que poderia ter sido, mas não foi.

Mia Couto disse mais: “O avanço desses comedores de nação obriga-nos aos escritores, a um crescente empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime, o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores.”

O roteiro de “O último voo do flamingo” desenvolve-se nos anos noventa, os primeiros após a guerra de Independência e dos anos de guerra civil. 

Moçambique emergira arrasado por problemas sociais e políticos, um país cindido na própria identidade. Com a retirada dos colonizadores, tropas da ONU desembarcam em terras africanas para imporem sua “ordem”, a “paz”.

Tizangara é a terra fictícia onde que transcorre a narrativa. E será essa terra que implodirá na escuridão, pendurada no tempo logo depois que o flamingo, símbolo da felicidade e da prosperidade, decidir abandoná-la em seu último voo.Permanecerá, entretanto, um fio de esperança: o voo de outro flamingo, que talvez um dia ainda faça o sol voltar a brilhar, afastando a escuridão que a tudo recobre.

O romance principia com pessoas que explodem. Primeiro os estrangeiros, os soldados Boinas Azuis; depois deles, os próprios moçambicanos. Os primeiros “explodem” quando fazem sexo com as moças locais; esta é uma explosão limpa que somente deixa rastros nos genitais e boinas pendurados em árvores. Afinal, o que eles entendem sobre o conflito daquela gente para se meterem a transar com as negras? 

Os brancos são corpos estranhos que devem ser expulsos, explodidos.

Por outro lado, quando os negros explodem, eles o fazem de verdade, com sangue e vísceras por toda parte; pisam nas minas terrestres plantadas e replantadas pelos homens de negócio e de governo, sedentos por dinheiro.

O narrador da história deverá servir de tradutor que, deveria transmitir ao estrangeiro uma “ilusão” sobre a realidade africana, comportando-se “tão bem” quanto Chibango, o assistente do Administrador, o típico “lambe-botas”, que é um funcionário “como todo “agradista”: submisso com os grandes, arrogante com os pequenos”.

O narrador, um italiano, é levado a hospedar-se na única pensão da cidadezinha, que “nos tempos da revolução chamava-se Martelo Proletário; mudaram-se os tempos, desmudaram-se as vontades. Agora se denominava Martelo Jonas.” 

Difícil explicar que “a pensão é privada, mas que também é do Partido. Isto é, do Estado”. Ironicamente, o narrador nos diz que “o camarada Administrador Jonas não abusava, os outros é que não tinham poder algum.”

O narrador-tradutor comunica-nos um pouco de si e de seus pais. “Eu lhe pedia (à mãe), explicação do nosso destino, ancorado na pobreza. Ela dizia: Já pegou mania dos brancos; quer entender o mundo que é coisa que nunca se entende. A vida, meu filho, é uma desilusionista.” Mas o narrador já provara da “árvore do saber”, “a escola foi para mim como um barco que me deu acesso a outros mundos”.

Na senda da desilusão, outro personagem confessa: “meu velho não guardava boa ideia do trabalho. Perdera crença de o trabalho criar o futuro.” Ele, nos tempos de colônia servira no Exército Colonial, como guarda florestal: “sofri racismos, engoli saliva de sapo”. “Aprendera na tropa que só se dispara sobre o inimigo quando ele estiver perto”. No caso dele, estava tão próximo que arriscava a disparar sobre si mesmo. O inimigo lhe estava dentro. O que ele atacava não era um país de fora, mas uma província de si…

“Quando os revolucionários chegaram, eles disseram que o povo seria dono e mandante. Ele se encheu de medo. Matar o patrão?” Muito mais difícil é matar o escravo que está dentro de nós. Mas apenas mudamos de patrão, conclui Mia Couto.

“Os brancos ocuparam-nos. Não foi só a terra: ocuparam-nos a nós, acamparam no meio de nossas cabeças. Somos madeira que apanhou chuva. Agora nem acendemos e nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro de nós”.

A guerra nunca partiu. As guerras são como estações do ano: ficam a amadurecer no ódio da gente miúda.

A respeito dos Boinas Azuis, quando o filho “tradutor” diz que eles “ajudam a construir a paz”, o pai contesta: “Nisso você se engana. Não é a paz que lhes interessa. Eles se preocupam com a ordem, o regime desse mundo. A ordem que lhes faz serem patrões. Essa ordem é uma doença em nossa história… a aposta dos poderosos, tanto os de fora quanto os de dentro: provar que só colonizados poderíamos ser governados. Antigamente queríamos ser civilizados. Agora queremos ser modernos.”

O sexo em Mia Couto é um forte elemento destinado a ligar ou a ser usado; quando simplesmente “bem de consumo” ele conduz à aporia das explosões dos soldados. 

Quando a conexão entre seres humanos produz vínculos de amor, estes abrem os caminhos do compreender, do compartir. Na pensão, o italiano conhecerá uma figura triste, Temporina, a jovem com a cara de velha, “pois o tempo passara e ninguém a amara”, apesar de seu corpo escultural prenunciar delícias ainda não provadas. Massimo, o italiano, verá outra Temporina em suas formas, requebros, encantos e encontrará a excitação da paixão; o único estrangeiro a amar e cujo corpo não explodirá, num amor que é compartido. Massimo deverá investigar as explosões dos Boinas Azuis começando pelo último “explodido”. Aquele que morrera ao penetrar a prostituta Ana Deusqueira. Desde cedo puta, fora, no início da Revolução, enviada para Campos de Reeducação. “Atafulharam caminhões com putas, ladrões, gente honesta e mandaram para o mais longe possível. Tudo de uma noite para o dia, sem aviso. Quando se quer limpar uma nação só se comentem sujidades”.

“A desgraça é essa: só uns poucos apreenderam a lição da humanidade.” E o aconselha: “ Massimo, nunca aspire a ser centro de nada. A importância aqui é mortal”.

Chegamos a Jonas, O Administrador: “ Quando o Administrador chegou a Tizingara, trazia uma farda da guerrilha e as pessoas o olhavam como um pequeno deus. Nessa altura, dizem, ele não era como hoje; ele entregava-se aos outros. Trouxera um sonho de embelezar futuros. “Esse país vai ser grande”, dizia. Com o tempo, a vida esqueceu-se de sua palavra, o hoje comeu o ontem”. Acontece que “ninguém é prisioneiro senão de seu próprio destino”.

Confissões do Administrador Jonas ao Camarada Superior, seu “sócio” em empreendimentos:

“Eu, de acordo com sua recomendação, sempre me faço maior que meu tamanho. Sempre faço lembrar meu heroísmo na luta armada; em pleno mato, sem nada para comer, tudo em sacrifício pela libertação do povo” … 

“Trabalhar com as massas populares é difícil, já nem sei como intitulá-las, massas, povo, comunidades, sei lá. Se não fossem essas maltas pobres nosso trabalho seria facilitado… O padre disse que o inferno não aguenta mais de tantos demônios. Estamos a receber excedentes aqui na terra, um gênero de deslocados do inferno e que nós, os antigos revolucionários, fazemos parte desse excedente. Fomos socialistas aldrabões; viramos capitalistas aldrabões… O povo é a concha que nos abriga, mas pode, de repente, tornar-se a chama que nos irá queimar… Despeço-me enviando-lhe sinceras saudações revolucionárias, ou melhor, excelentes cumprimentos”.

Passemos a algumas considerações do próprio narrador: “Os novos chefes pareciam pouco importados com a sorte dos outros. Na minha vila (porque outros lugares eu não conheço) havia tanta injustiça quanto no tempo colonial. Parecia que esse tempo não terminara, apenas era gerido por outra raça… Secretamente eu deixara de amar aquela vila, ou se calhar, a vida que nela se vivia. Aqueles que nos comandavam engordavam a olhos vistos, roubavam terras aos camponeses, se embebedavam sem respeito. A inveja era seu maior mandamento. Os novos ricos se passeavam em terreno de rapina, não tinham Pátria. Sem amor pelos vivos, sem respeito pelos mortos. Eu sentia saudades dos outros que eles haviam sido, porque afinal eram ricos sem riqueza nenhuma. Se iludiam tendo uns carros, uns brilhos de gasto falso. Falavam mal dos estrangeiros à noite e durante o dia se ajoelhavam a seus pés por migalhas. Queriam mandar sem governar, enriquecer sem trabalhar”.

As hienas inautênticas, bichos mulatos de gente. Os políticos dirigentes desfilavam em corpo de besta. Uma das hienas disse: “Nós roubamos e re-roubamos. Roubamos o Estado, roubamos o país até só sobrarem os ossos. Depois de roermos tudo, regurgitamos e voltamos a comer.” 

“As ruínas de uma nação começam no lar do pequeno cidadão”.

Caminhamos para o epílogo. Massimo prepara um relatório sobre o que vira e vivenciara. 

Por ser honesto, sabia que significaria o fim de seu emprego, e que, além disso, ninguém na ONU estaria interessado na tragédia de um povo, tão somente na Ordem. 

“Próximo do rio, a nação parecia haver sido toda engolida num vácuo. Já acontecera com outras nações da África. Entregara-se o destino destas nações a ambiciosos que governaram como hienas, pensando apenas em engordar rápido”. 

Tentara-se de tudo, de todas as magias, em vão, pois não havia gente que amasse a terra. Faltavam homens que pusessem respeito a outros homens. 

A fábula do flamingo que desistira de voar e que agora só queria repousar. O flamingo, salvador de tantos navegantes quando já perderam as direções da vida”.

Mássimo, então, transforma seu relatório em um pássaro, num flamingo de papel e diz: “há de vir outro”. 

Na tradição daqueles lugares, os Flamingos são eternos anunciadores da esperança.


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Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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