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Mídia brasileira só fala de Venezuela: o que está por trás da obsessão e ninguém te conta?

Imprensa explora Direitos Humanos contra Venezuela porque tema divide opiniões na própria esquerda; não dizem nada, porém, sobre golpe no Peru, torturas em Guantánamo ou massacre de mapuches no Chile
Leonardo Fernandes
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Quando o assunto é política internacional, os jornalistas brasileiros, em sua imensa maioria, se comportam como legítimos porta-vozes da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e da Casa Branca. Impressionam pelo nível de alinhamento do discurso do governo estadunidense e seus aliados quando se trata de qualquer sistema político que os questione. 

Desde a recepção do presidente da Venezuela, na segunda-feira, 29 de maio, em Brasília, não se falou em outra coisa nos órgãos da imprensa tradicional. De tudo, o que mais parece lhes haver doído foi a declaração do presidente Lula de que há uma narrativa sendo operada em relação ao que está acontecendo no país vizinho.

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A afirmação de Lula, embora inofensiva, já que revela o óbvio, expõe ao mundo a estratégia de descredibilização e isolamento internacional que a Venezuela passou nos últimos anos, não só do ponto de vista econômico, mas também comunicacional. 

Lula tem, além de convicções ideológicas, lugar de fala para dizer de narrativas políticas criadas em associação com grandes meios de comunicação. Em coletiva de imprensa após a realização da Cúpula de presidentes da América do Sul, o mandatário brasileiro lembrou que ele mesmo foi vítima de uma narrativa mentirosa, repetida pela imprensa brasileira para tirá-lo da política nacional.


De economia eles gostam

Como forma de moderar o discurso, para não se igualar aos “radicais”, os porta-vozes da SIP admitem a importância da retomada das relações econômicas entre a Venezuela e o Brasil, rompidas pelo governo de Jair Bolsonaro, em 2019. Esse é o limite do liberalismo econômico aplicado às comunicações. Mas por que não seria? As relações comerciais entre os dois países sempre foram superavitárias para o Brasil, beneficiando sobretudo os empresários do agronegócio que, no caso brasileiro, financiam o trabalho da SIP e seus organismos de imprensa.  

De fato, estão muito pouco preocupados com a situação do povo venezuelano. Usam dados relacionados à migração e ao aumento da pobreza como elementos isolados e ignoram o fato de serem os efeitos mais perversos de uma política de isolamento da qual eles fazem parte. 

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Desde 2014, Estados Unidos e seus aliados ao redor do mundo vêm aplicando um verdadeiro sufocamento da economia venezuelana, com a imposição de sanções — que vão da restrição de comércio até mesmo ao sequestro de empresas e reservas internacionais do país. Para que se tenha uma ideia do descalabro, somente o Banco da Inglaterra tem sequestrada uma reserva em ouro de propriedade do Estado venezuelano, avaliada em mais de 2 bilhões de dólares. 

Já no primeiro ano de aplicação das sanções internacionais contra a Venezuela, o impacto foi imediato nas relações comerciais com o Brasil. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), “entre os anos de 2014 e 2017, por exemplo, a queda das exportações brasileiras para o país vizinho foi bastante acentuada, passando de US$ 4,56 bilhões para US$ 469 milhões”. 

O endurecimento das sanções viria em 2018, quando foram realizadas eleições presidenciais na Venezuela e também no Brasil. 

Imprensa explora Direitos Humanos contra Venezuela porque tema divide opiniões na própria esquerda; não dizem nada, porém, sobre golpe no Peru, torturas em Guantánamo ou massacre de mapuches no Chile

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Lula faz um chamado à integração e sabe que esta integração está condicionada a, minimamente, isolar a direita entreguista




A matriz de opinião “ditadura”

Qualquer forma de governo que enfrente os interesses dos Estados Unidos e seus aliados no mundo será tachada pela SIP como ditadura, essa é uma regra. 

O ex-presidente venezuelano Hugo Chávez passou a ser tratado como ditador a partir daquela célebre e inesquecível frase “Yankees, al carajo!” e de toda a articulação para nacionalizar o petróleo venezuelano logo nos primeiros anos de governo. 

Relembre:

Não foi porque Chávez havia tentado um golpe de Estado em 1994, até porque ele já havia sido preso, anistiado, e chegou ao poder por meio de eleições livres, democráticas, propôs de início a realização de uma Constituinte popular, e teve seu projeto de governo referendado em 14 processos eleitorais. 

Aliás, eleições sempre acompanhadas de perto por observadores internacionais dos mais variados órgãos, e elogiadas pela segurança, transparência e massiva participação popular. O Centro Carter, fundação criada pelo ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter, emitiu declarações públicas referendando a lisura dos processos eleitorais venezuelanos. 

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Para não negar a história, os porta-vozes da SIP afirmam que houve uma espécie de “deterioração da democracia na Venezuela” a partir das eleições de 2018, quando supostamente o “ditador venezuelano”, Nicolás Maduro, teria inabilitado candidaturas presidenciais, quando as decisões de negar o registro de candidaturas compete exclusivamente ao Conselho Nacional Eleitoral (CNE), um órgão de Estado, com poderes independentes, inclusive do Poder Judiciário, de acordo com artigo 296 da Constituição da República Bolivariana da Venezuela. 

Dirão então que o CNE está aparelhado pelo governo, mas não apresentarão ao público as decisões proferidas pelo órgão eleitoral com a exposição de motivos pelos quais os tais candidatos tiveram os seus registros negados.

A verdade é que, se por um lado os partidos de oposição se sentavam à mesa de negociação com o governo para a realização de eleições limpas, transparentes, por outro, buscavam tensionar os ânimos a partir da apresentação de candidatos que estavam evidentemente inabilitados, como Henrique Capriles, condenado pela Justiça venezuelana em 2017 por diversos crimes de ordem administrativa enquanto era governador do estado Miranda; e Leopoldo López, que coordenou e financiou as ações armadas que resultaram em dezenas de mortes durante as manifestações violentas da oposição nas ruas em fevereiro de 2014.

Em 2018, quando tudo isso acontecia na Venezuela, no Brasil, o candidato favorito nas eleições presidenciais teve o registro de sua candidatura negado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e não houve, por parte da imprensa brasileira, qualquer questionamento sobre o aparelhamento do órgão, pelo contrário, a prisão ilegal de Lula foi o ápice de uma estratégia política da qual os órgãos de imprensa brasileiros foram partícipes ativos. 

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Mesmo após as eleições, os porta-vozes da SIP se limitaram a fazer críticas pontuais e moderadas ao horror que se sucedeu no Brasil, mas jamais disseram que o país havia se transformado numa ditadura

Assim como o Brasil, a Venezuela tem um sistema político imperfeito, que deve ser aprimorado, sobretudo a partir da experiência real do próprio povo venezuelano, que enfrenta, muito antes do Brasil de Bolsonaro, uma radicalização severa da violência política por parte de setores fascistas, assunto que passa longe das análises da imprensa brasileira e mundial.


Violência política e fascismo

Há uma matriz de opinião determinada nos manuais da SIP para que seus porta-vozes explorem o tema dos Direitos Humanos, já que esse é o principal divisor de opiniões dentro do próprio campo da esquerda sobre a Venezuela. 

Nesse sentido, tratam de levantar dados sobre a violência e as diversas formas de violação de direitos em penitenciárias e centros de reclusão do país, como se as prisões brasileiras fossem verdadeiros paraísos. Mas sobretudo, aplicam a narrativa dos “presos políticos” e da “liberdade de expressão”. 

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Eduardo Galeano, grande escritor uruguaio, contava de sua experiência ao chegar na Venezuela e se deparar com meios de informação, de todas as mídias e colorações existentes, que denunciavam a ausência de liberdade de expressão no país governado por Hugo Chávez. 

Era tanta a liberdade, dizia o escritor, que eles podiam até dizer que ela não existia. Naquele momento já estava em curso a estratégia da SIP, em alinhamento irrestrito com o governo dos Estados Unidos, de usar a pauta das liberdades individuais para atacar o processo venezuelano. Era o que o velho escritor uruguaio chamava de “o caso mais claro, mais escandaloso de manipulação da opinião pública mundial”.

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A violência política agudizada pela ascensão do fascismo no Brasil é rotina da política venezuelana há décadas. Desde a sabotagem a instalações do sistema elétrico e da indústria petroleira, até atos de terrorismo contra civis. Mas isso não tem cabida nas reportagens da imprensa brasileira sobre a Venezuela. 

Durante as chamadas “guarimbas”, em 2017, mais de 20 cidadãos venezuelanos foram queimados vivos pelo simples fato de serem “chavistas”. No mesmo contexto, o Ministério de Moradia foi incendiado por milícias fascistas armadas, financiadas e organizadas por supostas lideranças de partidos opositores, colocando em risco a vida de 975 trabalhadores e 45 menores de idade. 

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Dizer que essas pessoas são “presos políticos” é o mesmo que defender a barbárie promovida pela direita brasileira em Brasília no dia 8 de janeiro e se igualar à direita fascista do Brasil que chama os responsáveis por aqueles crimes de “presos políticos”. Não o são, e o Brasil sabe disso.  

Infelizmente, não se vê tamanha comoção da mídia brasileira e internacional quanto às violações de direitos humanos da prisão de Guantánamo, mantida ilegalmente pelos Estados Unidos em território cubano, ou em relação às constantes violências sofridas pelos povos Mapuches do Chile, ou ainda em relação às dezenas de mortes provocadas pelo Golpe de Estado recente no Peru. Nem o que falar da naturalização da barbárie que o povo preto e periférico passa todos os dias nas favelas brasileiras pelas mãos do braço armado do Estado. Nunca foi pelos Direitos Humanos.


Perspectivas de integração

Se os porta-vozes da SIP estivessem interessados no bem-estar do povo venezuelano, se somariam ao pedido para que sejam imediatamente levantadas as sanções econômicas e comerciais que impedem a Venezuela de ter acesso a produtos, sequestra suas reservas e estrangula sua economia, provocando os efeitos mais severos no povo. 

Lula tem razão: é preciso que haja uma contraofensiva à narrativa imposta pela SIP sobre a história da Venezuela e sua revolução. E tem razão também em construir uma política externa altiva, forte e independente das matrizes de opinião impostas pelos órgãos da SIP, que são parte de uma guerra assimétrica, irregular, e que também tem o objetivo de conquista e subordinação de nossos povos aos interesses das chamadas potências econômicas. Lula acerta ainda em oferecer ao presidente venezuelano todo o protocolo diplomático que merece um Chefe de Estado de uma nação irmã, como é o caso da Venezuela com relação ao Brasil. 

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Lula faz ainda um chamado à integração. E sabe agora que esta integração está condicionada a, minimamente, isolar a direita entreguista que ainda ocupa nações irmãs, como o Uruguai, o Paraguai, o Equador e expor as contradições de uma esquerda recuada e adaptada à lógica imperialista, como é o caso do Chile, que usa a agenda dos Direitos Humanos para atacar um país irmão, ao tempo que perde oportunidades históricas de resolver questões internas fundamentais, como os direitos dos povos indígenas mapuches, violados todos os dias pelo Estado chileno.

Que desse “momento histórico” em Brasília surja um novo movimento de solidariedade internacional ao povo venezuelano, com o objetivo central de restabelecer a verdade, contribuir para a superação da crise e fortalecer a integração latino-americana. 

Leonardo Fernandes | Jornalista, ex-correspondente da TeleSUR, mestre em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe pela Unesp.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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