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Mídia, ultradireita e hierarquia eclesiástica: a suposta "perseguição religiosa" na Nicarágua

Até mesmo o Papa Francisco, conhecedor dos antecedentes do país, pediu que não usem o nome de Deus para promover ódio e violência
Gustavo Espinoza M.
Diálogos do Sul Global
Lima

Tradução:

Se perguntássemos a um cidadão de qualquer país por sua nacionalidade, simplesmente responderia: peruano, argentino, brasileiro, colombiano, o que seja. Se essa interrogação fosse formulada a um compatriota de Rubén Darío, ele diria com muita força: “Nicaraguense, pela graça de Deus”.

Esta expressão revela o profundo sentimento religioso que embarga o nicaraguense comum e corrente. Trata-se uma fé arraigada na alma dos nascidos na terra de Sandino, e que se enlaça com o fervoroso patriotismo que o levou em seu momento a tirar às pedradas o pirata Walker e depois os marines ianques, que invadiram seu solo em 1926, conscientes de que – como o dissera o que encabeçara essa luta – “a soberania de um Estado não se discute; se defende com as armas na mão”.

Tudo isso vem a propósito da ominosa campanha de imprensa desatada nas últimas semanas contra o governo de Manágua e que alude a uma suposta, e inexistente, “perseguição religiosa”. O que se busca, é usar a fé dos “nicas” para levar água ao moinho da “contra”.

O tema não é novo. Desde os anos 1980 do século passado, quando os Sandinistas chegaram ao Poder pela primeira vez, após uma luta heróica e esforçada contra a ditadura de Somoza, as forças reacionárias se posicionaram atrás da investidura cardinalícia de Monsenhor Obando, para disparar, desde o púlpito, fogo contra Daniel Ortega e seu governo.

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Claro que nessa época a Hierarquia Eclesiástica não chegou a desempenhar um papel decisivo. A batuta estava em outras mãos: a Casa Branca. Além disso, o próprio bispo de Manágua não se sentia particularmente cômodo no papel subsidiário que lhe fora destinado.

Talvez por isso, depois mudou de rumo e, em 2007, depois de 17 anos de administrações neoliberais que o desencantaram, o clérigo se pôs ao lado do governo Sandinista.

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No entanto, os anos se passaram e a igreja trocou de personagens. E, no lugar de Obando, apareceu nessa função Monsenhor Báez, que teve papel protagônico na defesa dos grupos conservadores.

Esse assumiu um papel beligerante e destacado nos lutuosos acontecimentos ocorridos entre abril e julho de 2018. Ali, a “contra”, amamentada por Washington, quis acabar com o regime sandinista e retroagir a história.

Como se evidenciou nessa circunstância, sob a orientação de Báez, o núcleo duro da Igreja desempenhou um comportamento sedicioso. O bispo Orlando Matta – ou Monsenhor Cipriani de Manágua – atacou violentamente o Presidente Ortega, e houve sacerdotes que participaram em ações violentas: celebraram ofícios com mensagens incendiárias, protegeram delinquentes, guardaram armas nas igrejas e até interviram em tarefas francamente subversivas.

Até mesmo o Papa Francisco, conhecedor dos antecedentes do país, pediu que não usem o nome de Deus para promover ódio e violência

Presidencia El Salvador – Flickr

Nem o Governo nem o povo crente da Nicarágua estão dispostos a tolerar a reedição das ações sediciosas do passado

Ninguém esquece que o “último baluarte” da reação foi – julho de 2018 – a Igreja da Praça da Magdalena, em cuja torre se instalaram quatro franco atiradores que fizeram resistência armada. Ali, os últimos 250 ativistas da “contra” e o Pároco se bateram por oito horas até que foram derrotados. Os dirigentes da ação – incluído o padre – fugiram para Costa Rica em busca de asilo.

Quando se restaurou a ordem em todo o país, a Hierarquia eclesiástica pretendeu continuar seu labor sedicioso. E o teria feito se não mediasse a intervenção do Papa Francisco que, consciente da situação, retirou de Manágua o Monsenhor Báez e o recluiu no Vaticano. Agora, essa Hierarquia voltou a provocar.

E é Monsenhor Rolando Álvarez o que assumiu o protagonismo. A partir da Igreja de Matagalpa, usando os recursos próprios e até emissoras de rádio, buscou reeditar o abril de 2018 quando morreram ao redor de 350 pessoas, 70% das quais foram sandinistas. A tal tentativa buscaram somar-se ONGs financiadas pela USAID, que perderam sua personalidade jurídica por não cumprir a lei.

Nem o Governo nem o povo crente da Nicarágua estão dispostos a tolerar a reedição das ações sediciosas do passado, nem a violência que paralisou o país. Por isso, foram tomadas medidas de proteção e defesa.

O bispo de Matagalpa foi transferido a Manágua, onde se acha recluso em “prisão domiciliar”, assistido por sua família e próximos. A ultradireita gritou aos céus. E no nosso país houve aqueles que se somaram a ela, sem saber como nem quando.

O Papa, no entanto, não lhes prestou atenção. Conhecedor dos antecedentes e seguidor atencioso dos acontecimentos de hoje, apelou à Hierarquia eclesiástica a não usar o nome de Deus para promover o ódio e a violência e propôs à Igreja recorrer ao diálogo e não à confrontação, para superar a crise.

Em outras palavras, se impôs o que em seu momento dissera outro sacerdote ilustre, o Bispo Pedro Casaldáliga: “Nicarágua foi uma fronteira histórica, ensaiou uma revolução original, autóctone, latino-americana: sandinista, nesse caso concreto. Uma revolução anti-imperialista e popular. A serviço do povo nas transformações radicais que uma revolução popular exige: terra para os camponeses, cultura, alfabetização para todos, saúde, alimento, derrubada de privilégios da burguesia e da oligarquia”.

Os Estados Unidos, por sua parte, “condenam energicamente a violação aos direitos humanos na Nicarágua”, onde não há morrido ninguém. E se calam diante do que passa nos EUA, onde cada semana matam um negro ou latino a patadas; ou assassinam crianças de Arkansas, Oklahoma ou Nova York.

Nessa luta se encontra hoje o povo de Darío. Os nicaraguenses continuam sentindo-se depositários da graça de Deus e sua fé se mantém intacta, mas não respaldam os Bispos sediciosos. E é que, como ocorreu antes com Sandino, agora, na Nicarágua, a vitória será sempre a bandeira de seu povo.

Gustavo Espinoza M., colaborador da Diálogos do Sul, de Lima, Peru.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Gustavo Espinoza M. Jornalista e colaborador da Diálogos de Sul em Lima, Peru, é diretor da edição peruana da Resumen Latinoamericano e professor universitário de língua e literatura. Em sua trajetória de lutas, foi líder da Federação de Estudantes do Peru e da Confederação Geral do Trabalho do Peru. Escreveu “Mariátegui y nuestro tiempo” e “Memorias de un comunista peruano”, entre outras obras. Acompanhou e militou contra o golpe de Estado no Chile e a ditadura de Pinochet.

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