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Tenho dificuldade em encontrar palavras para expressar o que senti ao chegar a Istambul pela primeira vez. A cidade, fundada há 25 séculos, fascinou-me. Transcorrido mais de sessenta anos, Istambul continua a ser para mim enfeitiçante.
Miguel Urbano Rodrigues*
Voltei agora em fevereiro para mais uma despedida. Passaram apenas cinco anos desde a última visita. A primeira surpresa foi rever Santa Sofia, hoje museu. Tinha esquecido que, contempladas do exterior, duas das fachadas da Basílica, pela pobreza do material de construção (tijolo), não permitem imaginar a beleza da gigantesca nave. No interior, os mármores, os frescos da abóbada e as colunas com capitéis coríntios e compósitos deslumbram.
Justiniano, quando decidiu a sua construção afirmou que seria a maior igreja do mundo. Foi ambicioso, mas todas as grandes catedrais da Europa são pequenas com ela comparadas.
O império romano do Oriente perdera a maioria das províncias ocidentais após às invasões dos chamados bárbaros. Os generais de Justiniano reconquistaram a quase totalidade.
Das mesquitas imperiais de Istambul apenas voltei agora a Sultan Ahmet.
Maomé II, o Conquistador, tomou Santa Sofia como modelo para a arquitetura religiosa turca. As mesquitas otomanas foram inovadoras sobretudo na decoração, nos azulejos, nos minaretes na harmonia das cores das cúpulas.
Recordando Pierre Loti
O gigantismo de Istambul – 15 milhões de habitantes – impossibilita uma visão de conjunto da antiga capital da Turquia.
Limitei-me a percorrer uma vez mais, num circuito turístico, os bairros que se formaram de ambos os lados do Corno de Ouro, o golfo que nasce do Bósforo.
Foi como antes um mergulho no tempo, uma viagem pela História de culturas justapostas, mas não fundidas.
Pelo teleférico subi à casa de Pierre Loti (1850-1923) no alto de uma escarpa. Recordei que na juventude o admirava muito. Creio que hoje não seria capaz de reler os seus romances. Na casa, por onde continuam a desfilar hordas turísticas, a atmosfera oriental aproxima do escritor. Loti era um oficial da marinha francesa, mas ali vestia-se à turca, usava um fez na cabeça, vivia como um senhor otomano.
É belo o panorama que se contempla dos terraços do edifício, mobilado no estilo do início do século passado. Loti tinha bom gosto, soube escolher.
Sementeira de ruínas
Não há na Europa – nem Roma – uma cidade tão semeada de ruínas de um passado com mais de 25 séculos. Com a peculiaridade de que em Istambul elas nos projetam para civilizações antagônicas.
No espaço da velha Constantinopla muito da cintura de muralhas erguida na época de Teodósio resistiu às guerras e ao tempo. Foi ela que durante séculos deteve os assaltos dos árabes, dos hunos, dos búlgaros, de sucessivas hostes asiáticas vindas das estepes russas.
Eu tinha esquecido que panos de muralhas e ruínas de monumentos surgem um pouco por todo o lado no casco histórico. Empurram a memória para a Constantinopla bizantina, que era a maior e mais bela capital do mundo na época de Justiniano. Teria então uns 300 000 habitantes. Roma fora destruída e Paris e Londres eram ainda burgos medievais quando os cavaleiros italianos da IV Cruzada que seguiam para a Palestina a fim de combater os turcos seljúcidas, a saquearam e tomaram de assalto em 1204, proclamando o Império Latino. Foi aliás um estado efêmero, extinto em 1261 quando o imperador Miguel Paleólogo, de Niceia, retomou Constantinopla. Mas a cidade não recuperou a antiga grandeza. Era já uma sombra do passado ao ser conquistada em 1453 pelo sultão otomano Maomé II.
Na Taksim e na Istiklal
Voltei à Praça Taksim, polo da Turquia europeia. Ali principiaram em 2013 as manifestações contra o governo de Recep Erdogan, motivadas pela decisão de destruir o Parque de Gezi e as suas árvores centenárias.
Esses protestos assinalaram o início da contestação frontal à política do presidente. A grande vaga de repressão que atingiu múltiplos setores sociais só ocorreu porém após o fracasso da tentativa de golpe de estado em 2016.
Impressionou-me a presença maciça de militares e polícias armados com metralhadoras nas principais ruas do centro histórico e também na Taksim.
Desci vagarosamente a avenida Istiklal. Foi na viragem para o século XX a primeira artéria concebida em moldes ocidentais, com hotéis, cinemas, lojas modernas, restaurantes de luxo, mesquitas e igrejas.
Foi aliás em Beyoglu (Pera para os europeus) , no outro lado do Corno de Ouro, que as grandes potências ocidentais construíram as imponentes mansões destinadas às suas embaixadas; hoje funcionam consulados nesses edifícios porque as sedes das missões diplomáticas foram transferidas para Ancara.
Perambulei horas pelas ruelas de Beyoglu onde visitei o estranho Museu da Inocência criado por Orhan Pamuk inspirado pela estória do seu romance do mesmo nome. Minha companheira, admiradora incondicional de Pamuk, ficou encantada. Concluiu que a visita ao Museu foi a melhor prenda do seu aniversário, festejado em Istambul.
Foi de incompreensão a minha atitude perante o Museu e senti algum mal estar porque me habituei a ver em Pamuk um dos escritores mais importantes do nosso tempo. O seu livro Memórias de Istambul abriu-me a um entendimento diferente da cidade e dos turcos. É uma obra prima.
Uma fusão inacabada
Istambul, tal como a descreveram escritores europeus do século XIX, era ainda uma cidade oriental pela atmosfera e a cultura após a I Guerra Mundial quando os ingleses a ocuparam, decididos a destruir completamente a Turquia otomana.
O projeto britânico foi inviabilizado por Mustafá Kemal (1881-1938), o general que expulsou os ingleses e mais de um milhão e meio de gregos.
Ataturk -o «pai dos turcos» no nome que a História dele recorda- modernizou a Turquia para a salvar. Adotou o alfabeto e o calendário latinos, extinguiu o Califado, proclamou o Estado laico, e introduziu uma série de reformas revolucionárias tendentes a ocidentalizar o país.
Não viveu o suficiente para levar até onde pretendia o seu desafio ao impossível aparente. Mas o essencial da sua obra ficou.
Cenário de uma cadeia de golpes militares promovidos pelo exército, a Turquia continua a ser uma ponte entre o Oriente islâmico e o Ocidente europeu.
Na fidelidade à tradição, o turco de Istambul exibe uma educação refinada a que não estamos habituados. É cortês por tradição e vocação. Não é fácil para o forasteiro traçar a fronteira entre o presente o passado.
Há uma palavra turca, husun, equivalente à saudade portuguesa, que expressa um sentimento contraditório. O turco do século XXI não deseja voltar atrás. Mas não esquece que o seu povo, no apogeu da época otomana, criou uma grande cultura. A sua herança é identificável em múltiplos aspectos no comportamento dos habitantes das grandes cidades; Ignoro o ambiente humano nas comunidades rurais da Anatólia, onde a tradição religiosa estava enraizada.
Erdogan é um muçulmano empenhado na recuperação do sentimento religioso. Mas o exército, defensor do laicismo, não o ajuda. Registei um grande aumento na percentagem de mulheres que usa o véu. Mas, contrariamente ao que acontece nos países do Magreb, no Iraque e na Síria, não vi uma só pessoa a parar nas ruas para rezar na hora dos apelos à oração. E nas grandes mesquitas são pouquíssimos os fiéis. Não vi tchadores, nem burkas.
O prazer do convívio transparece no espetáculo do quotidiano.
Não conheço no mundo uma cidade com tantos cafés e restaurante como Istambul. Os hotéis, a maioria pequenos, mas acolhedores e confortáveis, são muitas centenas. Quase todos agora atraem um mínimo de hóspedes. O terrorismo afugentou os turistas. Foram aproximadamente 42 milhões em 2014 no país. Os atentados e a repressão afugentaram-nos. Disseram-me que no ano passado dos 10 milhões que visitavam habitualmente Istambul chegaram apenas cinco milhões. Da Rússia, de onde provinha a maioria, são poucos os que agora a visitam.
Identifiquei muitos muçulmanos da Indonésia, chineses e uigures do Sinkiang.
A cozinha turca, refinada, é uma síntese da sírio libanesa e das assimiladas nos Balcãs durante séculos de ocupação.
A densidade do comércio é outra herança do passado otomano.
Tal como no Egito, no Magreb, no Irã, no Afeganistão, na Síria e no Iraque milhares de lojas, onde se vende tudo, conferem a muitos bairros uma atmosfera inconfundível.
O artesanato é fascinante; no Grande Bazar encontram-se preciosidades por preços módicos.
No Topkapi Sarai
Repeti mais uma vez a visita obrigatória ao Topkapi Sarai.
É um enorme e feio conjunto de edifícios que foi aumentado por diferentes sultões ao longo dos séculos.
Grande parte estava em obras de restauro, incluindo as salas do Tesouro, onde os califas otomanos acumularam jóias e peças de ouro de um valor incalculável.
Em obras também se encontra o Museu Arqueológico, onde estão expostas milhares de obras de arte – estátuas, túmulos, colunas, capitéis, jóias, etc- trazidas sobretudo das ruínas de antigas cidades gregas e helenísticas da Ásia Menor, mostra comovente do respeito turco por uma cultura que admiram.
Para os turistas, o Harém imperial é o principal polo de atração do Topkapi.
A ala onde viviam as esposas e concubinas dos sultões, incaracterística nos dormitórios, ofusca pela riqueza, a profusão de ouro, a decoração e o mobiliário nos salões onde elas conviviam em principesca reclusão.
Aberração monstruosa, o harém foi durante séculos um foco permanente de intrigas e conspirações promovidas pelas esposas dos sultões com a ajuda dos eunucos que as vigiavam e serviam.
Um só sultão, Abdul Hanid II (1842-1918) teve mais de mil mulheres e foi pai de centenas de filhos.
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A ideia que a maioria dos europeus formou da Turquia ao longo dos séculos de forma grosseiramente a realidade.
A principiar pelo povo.
Quem são os turcos da Turquia, atualmente mais de70 milhões, de onde vieram?
As primeiras tribos turco fonas que se instalaram, com o consentimento do Império Bizantino, no Ocidente mediterrânico da Ásia Menor, descendiam dos oguzes, originários do Altai siberiano.
Esse povo de camponeses guerreiros era pouco numeroso. Pouco mais do que umas dezenas de milhares. Foi porém o núcleo do futuro império que em meados do século XVI ocupava territórios com 8 milhões de quilómetros quadrados habitados por 50 milhões de europeus, asiáticos e africanos de múltiplas nacionalidades.
Produto de miscigenações ininterruptas, o turco europeu atual pouco difere fisicamente de muitos balcânicos. Perdeu os traços orientais dos antepassados asiáticos. Mas pela mentalidade e cultura é um povo que não se confunde com qualquer outro.
Erdogan, na sua mitomania, sonha com um panturquismo utópico.
Na vastidão asiática vivem, desde o Estreito siberiano de Bering até ao ocidente iraniano uns 60 milhões de turco fomos, sobretudo nos países da antiga Ásia Central soviética. Mas, exceto no parentesco linguístico, as afinidades entre eles e os turcos da Turquia são hoje mínimas.
Para onde vai a Turquia?
Seria uma irresponsabilidade tentar uma resposta. Mas estou consciente de que é um grande país e um grande povo.
Orhan Pamuk, distinguido com o Nobel de Literatura confia no futuro da sua gente. Tem motivos para isso.
Feixe de contradições, a Turquia contemporânea é simultaneamente um país moderno e uma sociedade marcada por arcaísmos chocantes.
Tem hoje a quinta maior indústria automobilística da Europa (produz 1 300 000 veículos por ano), e a Turkish Airlines é uma das grandes companhias aéreas (323 aparelhos de passageiros) com voos para dezenas de países.
A Turquia orgulha-se de uma geração de cientistas e artistas de prestígio mundial, é um museu da Humanidade, mas sente enorme dificuldade em assumir plenamente uma história que, para bem e para mal, deixou marcas inapagáveis na evolução da humanidade
*Colaborador de Diálogos do Sul, de Istambul, Fevereiro de 2017
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Passaram poucas semanas desde o meu adeus a Paris, mas na despedida de Istambul senti-me muito mais fatigado e diminuído física e mentalmente do que na capital de França.
Sei que não voltarei à mais enfeitiçante cidade da Europa. É a lei da vida.