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Milionários e política

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Esteban Valenti*

Foto: Flickr/DonkeyHotey
Foto: Flickr/DonkeyHotey

Assistimos nestes dias e à distância a um exemplo terrível de como a política feita por e para milionários pode ser destrutiva para a democracia e para um país.

Silvio Berlusconi não apenas está mergulhado até o pescoço em processos e escândalos de todo tipo – acho que perdi a conta – como está confirmado que utilizou seus milhões para comprar senadores. Assim caiu o governo de Romano Prodi em 2008.

Não podemos considerá-lo apenas um exemplo distante, pois o caso merece uma reflexão mais concreta e atual. Os fatos: Berlusconi, entre outras muitas coisas, incluindo prostituição de menores em sua vila de Arcore, é acusado de ter comprado um senador do Partido Itália dos Valores, o que, depois, lhe permitiu alcançar, junto com outros comprados, os votos necessários para fazer cair o governo de centro-esquerda de Romano Prodi.

Tudo começou em 2006, quando o senador Sergio De Gregorio (que confessou e forneceu provas) recebeu três milhões de euros de Berlusconi para passar do Partido Itália dos Valores, para o Partido do Povo da Liberdade (PdL). A promotoria de Nápoles acusou Berlusconi de “comprar” senadores. Há outros casos no processo.

Nestes dias julga-se no tribunal de Milão a causa contra Berlusconi na qual o promotor o acusa  de montar um verdadeiro prostíbulo em sua vila de Arcore, conhecido como o processo Ruby rouba corações, por envolver uma menor de idade numa das famosas festas do bunga-bunga. Aqui de novo aparecem os milhões: todas as envolvidas nas bacanais recebem atualmente salários e presentes do ex premier. Uma delas, jornalista de um dos jornais de tevê da Mediaset, a empresa de Berlusconi, recebeu presentes no valor de 800 mil euros, além do salário mensal e de um carro esportivo Audi TT. Tudo reconhecido pela beneficiada na audiência.

É difícil encontrar em algum país do planeta o nível de acusações e de ilegalidades de todo tipo cometidos por um governante. E sua sobrevivência a todos estes processos com a cumplicidade de um mundo político bastante mais amplo permite ao Cavaliere continuar livre e dirigindo uma das principais forças políticas da Itália, que obteve 30% dos votos há um mês…

Mas o mais grave é um tríplice processo: por um lado a banalização, pelos meios de comunicação, pela imprensa e pelos próprios políticos, da corrupção que tratam como um fato natural, incurável e encarnado em uma pessoa e seu império empresarial.

Berlusconi é a pessoa mais rica da Itália e uma das mais ricas da Europa. A história de sua riqueza é turva, opaca e recente e coincide sempre dentro ou ao lado do poder com o uso de influências políticas.

Em segundo lugar, uma parte importante da opinião pública engoliu inteiro o trem criado por Berlusconi de que se trata de uma conspiração dos magistrados, as togas vermelhas, como ele as chama, contra sua imaculada pessoa.

Em terceiro lugar, a cumplicidade de boa parte do mundo político, incluindo a centro-esquerda que não reagiu e, em alguns casos facilitou a aprovação de leis que favoreceram diretamente Berlusconi, fizeram prescrever os delitos e outras barbaridades. Na queda do governo Prodi, em 2008, está a mão e estão os milhões do Cavaliere mas também de alguns dirigentes de centro-esquerda, como Máximo D´Alema, que acharam que tinha chegado seu momento. D’Alema é aquele mesmo que agora, com essa linguagem para o palácio e seus corredores mais sombrios, fala de negociar a governabilidade com a direita, afastando Berlusconi. Um suicídio para o centro-esquerda.

Estes três elementos são a doença mais grave que corrói a Itália, sua política, suas instituições, sua moral pública e são a expressão de sua decadência. A economia e as outras coisas vêm depois, são a consequência.

Ler hoje um jornal italiano é receber um impacto constante de más notícias. Eis o que li hoje: além de desemprego crescente, de bancos que perdem milhões de euros mas querem distribuir prêmios a seus diretores, a propriedade imobiliária vale hoje o que valia em 1985, há quase 30 anos. Todos os dias fecham na Itália 167 comércios e pequenas empresas. Todos os dias.

Quando, em alguns países da América Latina,  em um país tão próximo como o Paraguai, esboça-se um desenlace eleitoral em que pode governar um magnata como Horacio Cartes, candidato do Partido Colorado, o de Stroessner, o da mais desenfreada corrupção, um candidato acusado de traficante e de contrabandista em grande escala, não deveríamos nos alarmar pelo Paraguai e pelos países da região? Trata-se de uma possibilidade muito concreta, dentro de seis semanas.

Essa mistura de delinquência organizada, gangues internacionais e política, é destrutiva, porque mina as bases democráticas de uma nação. Assim aconteceu na Itália.

Comprar senadores, legisladores, governantes, financiar todo tipo de operações, meios de comunicação, não é o pior veneno para uma república democrática?

Faz tempo que todos os organismos internacionais lançam um alerta contra a corrupção como aliada predileta da criminalidade organizada e da lavagem de dinheiro sujo. A isso se soma o conflito de interesses, diplomático nome utilizado para denominar o uso com desperdício e disfarçado de posições de governo para enriquecer ainda mais, para favorecer seus negócios. O grão mestre e doutorado cum laude é Berlusconi, ainda que não seja o único.

Falar de um simples conflito de interesses é ridículo,  o dele é um conflito complexo e intolerável em qualquer país democrático: um conflito político, empresarial e jurídico. Indro Montanelli, jornalista histórico e conservador, escrevia no Corriere della Sera, em 20 de julho de 1998 que, ao menos sobre uma coisa, por ser tão evidente, estão de acordo os italianos: que enquanto não se desbloqueie o caso Berlusconi não haverá debate político, isto é, não haverá política. E Sergio Romano, outro colunista de opinião, de centro-direita, é ainda mais severo quando escreve: O caso do Cavaliere é o mais colossal conflito de interesses que figura nas crônicas do Estado unitário italiano.

Por sua parte, a centro-esquerda optou em seu momento pelo pragmatismo, pelo caminho do apaziguamento, nas duas Câmaras, nas televisões e nos tribunais de justiça. Não podemos esquecer que Il Cavaliere foi declarado elegível, pela Junta Eleitoral, para a Câmara de Deputados, sendo a maioria de centro-esquerda, embora uma lei de 1957 previsse a inelegibilidade daqueles que possuem concessões de serviços públicos. Que durante quase dois anos Berlusconi se tenha erigido em constituinte, ainda que sendo o político mais processado de toda a Europa. Que os bancos lhe tenham dado créditos quando suas empresas tinham 2.500 milhões de euros de dívidas e que, em nome de uma política de garantias tenha-se aprovado a legislação sobre a justiça desejada pelo Polo berlusconiano e ainda que se tenha adiado a análise de todas as leis anticorrupção.

Também por este motivo Beppe Grillo obteve 25% dos votos e a centro-esquerda perdeu 9% dos seus.

Documentos contundentes e muito claros foram sistematicamente censurados. Falemos por exemplo das declarações de Paolo Borsellino, o juiz assassinado pela Máfia, um conservador notório. Borsellino, um herói da luta contra a Máfia, deu uma entrevista a dois jornalistas franceses dois dias antes do atentado de Capaci (onde morreu o juiz Giovanni Falcone, em 23 de maio de 1992)  e dois meses antes do de Via D’Amelio (em que morreu Borsellino). É uma entrevista inédita, que desapareceu durante anos, e que sua família reencontrou recentemente, quase por milagre. Um documento impressionante pela gravidade das acusações que o magistrado mártir, normalmente prudente e silencioso, lança contra Berlusconi em função da relação  com Vittorio Mangano, o pegador de bola nas quadras de Arcore (a vila de Berlusconi em Milão). Mangano era um dos maiores traficantes de droga da Cosa Nostra.

Teríamos que refletir um pouco mais sobre esta mixórdia e sobre como agem em países muito próximos. Os milhões sujos podem ser a pior droga da política e da democracia.

 

(*) Jornalista e escritor uruguaio, diretor de Bitácora e UYPRESS. Ex coordenador geral de IPS, especial para Diálogos do Sul


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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