Pesquisar
Pesquisar

Militares bolsonaristas continuam sendo atores relevantes no script antidemocrático

Ao assumir protagonismo político, militares acossam a democracia e podem entrar num beco sem saída
Gerson Almeida
Sul 21
Porto Alegre (RS)

Tradução:

A manifestação defendia a intervenção militar, vociferava contra o STF e a imprensa. Bolsonaro, ao sobrevoar alegremente o ato num helicóptero oficial, manifestava o seu apoio às demandas autoritárias, com direito a acenos e gestos de estímulos. Para ele era apenas mais uma confraternização com a sua turma, uma verdadeira liga do mal. 

Por si só, isso já seria espantoso, pois o presidente jurou respeitar a Constituição e defender a democracia. No entanto, o abuso institucional ganhou significado de agressão à ordem democrática, pois ao seu lado estava ninguém menos do que o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva.

Essa manifestação aconteceu em 31 de maio de 2019 e não foi um ato inusitado aos bizarros padrões que a atual elite política do País quer normalizar. Outros chefes militares já haviam acompanhado o presidente em atos antidemocráticos, como os ministros da Secretaria de Governo, Augusto Ramos, e Heleno, do GSI, ambos generais. É evidente que a presença de nenhum deles é fortuita.

Ao se tornarem uma espécie de arroz de festas antidemocráticas, eles sinalizam de forma nada sutil que desejam exercer forte protagonismo político e ocupar o papel de fiadores do governo. Tudo bem que um ex-militar queira se tornar agente político. O inaceitável é fazer isto sem abdicar de manter controle e/ou forte influência sobre o braço armado do Estado, o que configura um claro distanciamento das suas funções constitucionais. Mesmo assim, esse comportamento fora do padrão esperado numa democracia só aumentou ao longo de toda a crise política que impediu o governo legitimamente eleito, sem que houvesse crime de responsabilidade.

Os militares foram atores relevantes no script antidemocrático. Sempre que algo saia do planejado, algum alto chefe militar – na ativa ou na reserva – atuava para que o trem golpista voltasse aos seus trilhos. Na véspera do julgamento pelo STF de Habeas Corpus ao ex-presidente Lula, em 2018, o então comandante das Forças Armadas, general Eduardo Villas Bôas, fez questão de tornar público um posicionamento em nome das forças armadas, intervindo num assunto totalmente fora das suas prerrogativas. Uma evidente ameaça ao STF e um claro posicionamento contra Lula, que na época ponteava as pesquisas presidenciais. Com a retirada do favorito pela maioria da população, o caminho ficou livre para a eleição de Bolsonaro.

Eleito Bolsonaro, a politização foi crescente. Ao ponto de não ser mais possível distinguir no conjunto das ações do governo, as ações do que se chamava inicialmente a “ala militar do governo”.

A defesa do governo é incondicional, mesmo quando se trata de interferir em processos de investigação, como no episódio do envio pelo STF de notícia-crime à PGR, relacionada à denúncia do ex-ministro Sérgio Moro sobre interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. O ministro do GSI, general Heleno, sentiu-se na obrigação de fazer um “alerta” de que o pedido “poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional.” Como sabemos, a defesa do presidente é responsabilidade da Advocacia Geral da União e não do GSI, e muito menos do ministro da defesa, Fernando Azevedo, outro general da reserva, que endossou a mensagem do colega Heleno. Parece que o impulso de manifestar opinião sobre temas fora da sua esfera está ficando incontido, sempre numa linguagem em tom imperativo, aparentemente destinada a gerar medo e acossar a democracia.

Ao assumir protagonismo político, militares acossam a democracia e podem entrar num beco sem saída

Palácio do Planalto
Perde a sociedade e os próprios militares, que mostram a sua inépcia para a gestão pública

A ocupação intensiva de cargos

Incontido também é o desejo de ocupar cargos no governo. Segundo artigo publicado pela BBC News Brasil, em 26/02/20, proporcionalmente, há mais ministros militares no governo Bolsonaro do que há na vizinha Venezuela. No Brasil, 11 dos 22 ministérios são controlados por militares da ativa, ou reserva (50%); na Venezuela, tratada como um ditadura, os militares comandam dez dos 34 ministérios (29,4%).

O protagonismo político crescente dos militares nos rumos do governo parece guardar uma relação estreita com o crescimento das sinecuras recebidas.

Pouco tempo depois de endossar a carta de “alerta” do amigo Augusto Heleno, o general Fernando Azevedo atuou com afinco para que os militares tivessem um tratamento excepcional e pudessem furar o teto salarial do funcionalismo público. Na sua proposta, apoiada pelos comandantes da Aeronáutica, do Exército e da Marinha, o chamado “abate-teto” (que limita os ganhos de todo funcionário público ao salário dos ministros do STF, R$ 39,293,32) deveria ser considerado para cada salário separadamente e não para o total da remuneração recebida.

Um exemplo do que isso significa: o tenente-coronel da reserva da FAB, Marcos Pontes, atual ministro da Ciência e Tecnologia, poderia somar aos R$ 21 mil que recebe como oficial da reserva, os R$ 30,9 mil do salário de ministro, assegurando ao seu bolso a bagatela de R$ 52 mil, mensalmente. Apesar de ter sido endossada pela AGU, a proposta que garantiria esse colossal privilégio foi suspensa em razão da forte reação contrária da opinião pública.

Se esse privilégio está temporariamente suspenso, os ganhos obtidos na Reforma da Previdência já estão sendo prazerosamente gozados. Para os militares, foi incorporado ao soldo os adicionais de disponibilidade e de habilitação, garantindo um polpudo aumento salarial. Para os oficiais, o ganho pode chegar a cerca 70% e, em nenhum caso, foi inferior a 30%. Além disto, os militares da reserva receberão o mesmo que os da ativa, privilégio que alcança também os policiais militares estaduais e bombeiros.

Ao justificar essa “reestruturação”, Paulo Guedes e Bolsonaro disseram que era uma compensação por uma série de prejuízos que as Forças Armadas sofreram desde 2001. Assim, enquanto a Reforma da Previdência foi madrasta para os assalariados e autônomos, foi bem magnânima para com os oficiais da ativa e da reserva.

São tantos os exemplos da busca de protagonismo político e da intensiva ocupação de cargos em todas as áreas do governo, que parece haver uma decisão de alguns importantes oficiais de vincular o destino das Forças Armadas ao do governo, mesmo quando se trata de defender práticas mais próximas do mundo da criminalidade do que da gestão pública.

Exemplo disto é o relatório produzido pela Agência Brasileira de Inteligência para ajudar a defesa do senador filho do presidente, Flávio Bolsonaro, no “caso Queiroz” e nas “rachadinhas”. Segundo a revista Época, um dos documentos afirma ter como finalidade “defender FB [Flávio Bolsonaro] no caso Alerj”. Os relatórios teriam sido encaminhados ao senador por WhatsApp e, em seguida, enviados por ele para a sua advogada.

Ao entrar de forma decidida na defesa das ações do governo e, em muitos casos liderá-las, como na crise da saúde, na qual o ministro Pazuello, um general de divisão do Exército, serve como síntese perfeita do mal resultado alcançado na ocupação desenfreada de cargos para os quais os militares não possuem qualificação. Em todos esses casos, perde a sociedade e os próprios militares, que mostram a sua inépcia para a gestão pública, como já havia ficado claro na questão Amazônia e do Pantanal, entre tantos outros sucessivos fracassos.

A seguir esse aprofundamento no protagonismo político e na defesa acrítica das ações de um governo presidido por uma família que possui evidentes ligações com as milícias e amizades íntimas com líderes do submundo do crime organizado, importantes setores das forças armadas podem ser arrastados para uma perigosa proximidade com agrupamentos cuja sua missão constitucional é combater e não colaborar. Há tempo ainda para evitar isto, resta saber se há vontade.

Gerson AlmeidaSociólogo


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

Veja também

   

Se você chegou até aqui é porque valoriza o conteúdo jornalístico e de qualidade.

A Diálogos do Sul é herdeira virtual da Revista Cadernos do Terceiro Mundo. Como defensores deste legado, todos os nossos conteúdos se pautam pela mesma ética e qualidade de produção jornalística.

Você pode apoiar a revista Diálogos do Sul de diversas formas. Veja como:


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Gerson Almeida

LEIA tAMBÉM

Biblia-maconha-carta-rodrigo-pacheco
A Santa Hildelgarda e o porte de maconha | Carta aberta a Rodrigo Pacheco
Gibiteca Balão - Foto Equipe atual e antigos integrantes_foto de João Martins_JUNHO 2024
10 anos de Gibiteca Balão: refúgio de cultura e inclusão na periferia de São Paulo
G20 em Quadrinhos n
G20 em quadrinhos | nº 6: Trabalho
Brasil-diplomacia-Lula
Ausência do Brasil em cúpula de Zelensky é mais um acerto da diplomacia brasileira