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Mirtes sem Miguel: “Eu defendia meu filho em vida, vou defender na morte também”

"No momento em que ela for condenada e presa, não vai trazer meu neguinho de volta, mas vai aliviar saber que a justiça foi feita e minha missão foi cumprida"
Débora Britto
Marco Zero
Recife

Tradução:

“Tudo aqui é Miguel”, avisa dona Marta. As paredes da sala de estar pintadas de azul claro, um carrinho no terraço, a bicicleta e o patinete no canto da sala, como se esperando a criança, não deixam esquecer o menino cujo rosto está nos porta-retratos.

Nas fotografias, o sorriso largo, brilhante, tão característico nas imagens que nos acostumamos na mídia do filho único de Mirtes Renata Santana e único neto de Marta Santana.

Miguel Otávio Santana da Silva, cinco anos, morreu no dia 2 de junho, após cair do nono andar de de um prédio de luxo, no centro do Recife, quando estava sob os cuidados de Sarí Corte Real, ex-patroa de Mirtes.

No momento da queda, Mirtes passeava com a cadela da família para quem trabalhava, enquanto Sarí fazia as unhas no apartamento.

Pouco mais de dois meses após a morte da Miguel, a mãe e avó dedicam suas vidas para lutar por Justiça e para preservar a memória da criança que era o projeto de mundo e de futuro de uma família de mulheres negras, trabalhadoras, que faziam de tudo para possibilitar uma vida melhor para ele.

Miguel era sonho, orgulho, aposta e o fruto do esforço de Mirtes e Marta.

A casa em que nos receberam e vivem há quase cinco anos foi comprada quando Miguel ainda era bebê, mas Mirtes conta que foi escolha dele: quando entrou, abriu um sorriso. Foi assim que construíram um lar no Barro, bairro periférico na zona oeste do Recife.

De lá, Mirtes cruzava a cidade para trabalhar todos os dias para uma das famílias mais poderosas do litoral Sul de Pernambuco: seus empregadores, Sarí Corte Real e Sérgio Hacker, prefeito de Tamandaré.

Hoje, a primeira-dama de Tamandaré responde à acusação por “abandono de incapaz resultando em morte” com agravante de que o crime aconteceu “em meio a uma conjuntura de calamidade pública”.

Para Mirtes, Miguel virou um anjo. Na casa em que viviam, Miguel está em todo canto. Foto: Inês Campelo 

Mais tímida, só quando a entrevista termina é que dona Marta fala, com indignação, da postura de Sarí. Aos 60 anos, Marta está no grupo de risco do coronavírus, mas não pôde deixar de trabalhar um só dia durante a pandemia. Por isso, tanto ela, como Mirtes e Miguel haviam contraído a doença depois que o patrão se contaminou.

A primeira batalha da família foi para que a Polícia Civil enquadrasse a denúncia ao Ministério Público de Pernambuco como abandono de incapaz e retirasse a compreensão de “homicídio culposo”, que, no primeiro momento, garantiu à Sarí Corte Real o pagamento de fiança de R$ 20 mil no flagrante e o direito de responde em liberdade. 

Depois, a família realizou protestos e vigílias para que o Ministério Público mantivesse a denúncia de “abandono de incapaz resultando em morte” à Justiça. Agora, o andamento do processo depende dos prazos da Justiça. Mirtes e a família, no entanto, não querem que o processo se arraste por anos. 

A família tem transformado a dor em força para continuar lutando, mas o desfecho pode demorar. Mirtes está ciente disso e diz que a história do seu menino precisa ser contada e defendida. 

Enquanto conversamos dentro de casa, é possível escutar as crianças vizinhas que brincam na rua. Para Mirtes, isso é o que mais dói: seu filho deveria estar ali, brincando com elas, com a vida pela frente. 

"No momento em que ela for condenada e presa, não vai trazer meu neguinho de volta, mas vai aliviar saber que a justiça foi feita e minha missão foi cumprida"

Foto: Inês Campelo
Mirtes Renata Santana

Leia abaixo a entrevista.

Débora Britto – Quem era Miguel? Como era a rotina de vocês? Do que ele mais gostava no dia a dia?

Mirtes Renata Santana – A gente veio morar aqui há cinco anos e a gente só comprou essa casa porque ele aprovou. Ele era novinho, quando entrou na casa se agradou com a casa. Porque criança sente quando tem algo bom ou algo ruim em um ambiente. Ele sentiu algo bom aqui. Ele conquistou a todos aqui na rua, era uma criança muito alegre, muito extrovertida, muito amiga das pessoas. Você podia passar na rua, ele nem te conhecer, mas se fosse com tua cara ele dizia “amiga, amigo”. Ele era assim, falava com todo mundo. Às vezes de manhã cedo ele saía meio birrento porque não queria tomar banho logo cedo, queria dormir mais, mas quando ele encontrava o amigo dele abria um sorrisão, dava bom dia. Esse amigo dele era tudo para ele. Miguel era uma criança extremamente feliz. 

Eu buscava agradar ele, levar para passear, fazer tudo que estava ao meu alcance. Até o que estava fora do meu alcance eu fazia para dar as coisas a Miguel. Ele era uma criança normal, saudável. Às vezes arengava, respondia, mas qual é a criança que não é assim? Estudioso, ele gostava de ir para a escola, de fazer as tarefinhas. A professora já estava até me dizendo que ele estava começando a tirar do quadro. Olhava as palavras no quadro e repassava para o caderno. Esse e outros elogios a Miguel que me deixa muito orgulhosa dele, de saber que ele estava se dedicando, que o esforço que eu estava fazendo para apagar uma escola para ele, para ter educação de qualidade estava valendo a pena. ele estava se esforçando.

Ele tinha um sonho de ser jogador de futebol, de ser policial. Eu sempre dizia a ele que precisava estudar. Ele tinha algumas dificuldades, principalmente com números, em matemática, mas ele se esforçava.  

Ele era uma criança muito carinhosa, onde ele passava e encontrava flores, trazia para mim. Hoje de manhã eu estava caminhando e tem uma casa que passei que tem um pé de papoulas bem bonitas e eu lembrei dele. Hoje de manhã eu fui caminhar chorando com saudade do meu filho.

Foto: Inês Campelo 

Ele dava um beijo na flor e dizia “toma mamãe, para a senhora”. Infelizmente eu não tenho mais meu filho para eu dar amor, carinho, atenção. Vestir ele, como eu vestia, bem boladinho. Eu deixava de comprar para mim para comprar para ele. Ele sempre tinha as coisas, tudo, vestuário, medicamento. Mainha pagava o plano de saúde para ele porque, infelizmente, o SUS é insuficiente. Demorava muito as consultas, por isso ela disse que ia pagar um plano de saúde para o neguinho. Eu sempre levava para o pediatra, passou a fazer acompanhamento psicológico, ele ia para a fono. 

Às vezes eu pedia a Sarí para sair mais cedo porque Miguel tinha fono ou psicólogo. Saia do trabalho mais cedo, ia buscar ele no hotelzinho, depois voltava, era um dia um pouco complicado para mim. Vinha e voltava, pegava trânsito, preocupada em chegar na hora da consulta. Eu me esforçava o máximo possível para fazer tudo pelo meu filho.

Era meu único filho e eu queria dar tudo do bom e do melhor para ele. 

E quem é Mirtes hoje? Como você se enxerga?

Mirtes hoje, sem Miguel, é nada. Eu perdi totalmente a razão de viver, sem meu filho. Sou mais nada hoje. Tudo que eu fazia era em prol dele, tudo que eu planejava era Miguel. E agora eu não sei. Sem meu filho está tudo muito difícil, principalmente aqui dentro de casa.

Todo dia de manhã, quando eu acordo, sinto a esperança de ver meu filho e que tudo isso que aconteceu foi um pesadelo e que vou ter meu filho de volta. Mas infelizmente essa é a realidade. Eu não tenho mais meu neguinho comigo. A única coisa que me conforta é saber que ele está bem. 

Uma semana antes de completar dois meses que eu perdi ele, sonhei com ele. Ele estava tão feliz! Tão feliz! Sonhei que Eduarda, tia dele do hotelzinho, estava trazendo ele pra mim.

Ele saltitante, sorrindo. Aquele sorriso lindo, largo, gostoso que ele dava. Aí ele veio, pulou em cima de mim, me abraçou. Me abraçou tão forte. Me deu tanto beijo, tanto beijo. E nisso eu acordei ainda sentindo o calorzinho dele em cima de mim.

Chorei muito, porque eu queria que aquilo ali realmente continuasse, que fosse realmente real Miguel aqui comigo, me abraçando e me beijando. Sendo carinhoso como ele sempre foi carinhoso comigo. Infelizmente eu não tenho mais meu filho.

Você teve ou está tendo agora tempo para o luto?

Eu não pude parar, na realidade, porque se eu parar, não me ergo mais. Porque se eu realmente for viver o luto, eu desabo e as coisas não andam. Eu não posso cair, eu tenho que me manter firme e forte para seguir lutando até o fim de todo esse processo.

Memória de Miguel. Foto: Inês CampeloVocê espera um pedido de perdão de Sarí? Seria capaz de perdoar?

Na realidade eu não conheço mais Sarí. No período que eu e minha mãe trabalhávamos para ela, eu conhecia uma Sarí. A Sarí educada, que respeitava a gente, tratava a gente bem. 

Ela nunca tratou a gente com diferença em nada, dentro da casa dela. Mas depois que aconteceu isso com meu filho, ela mostrou quem realmente ela é. Se transformou. 

Você falou várias vezes que não via racismo, mas que Sarí mudou, não era a pessoa que você conheceu. Hoje você vê racismo no modo como ela tratou Miguel?

Eu ainda não enxergo isso como racismo. Enxergo como preconceito social. Porque ela é patroa e eu era empregada. Meu filho era filho da empregada. Então ela, naquele momento ali no elevador, ela disse “vai-te embora”. É filho da empregada, pode aguentar qualquer coisa. Realmente, se fosse filho de amigos dela, ela não fazia isso não. Simplesmente mandou Miguel passear, como ela disse à manicure.  

E a mim, lá na delegacia, ela disse “vai que depois tua mãe te encontra”. E realmente, encontrei meu filho praticamente morto. Praticamente morto. Ela não sente nenhum pingo de arrependimento. Isso ela mostrou não só para mim, mas para o Brasil todo. E pro mundo todo.  Ela mostrou que não sente nenhum pingo de arrependimento pelo que ela fez com Miguel. 

Que justiça você quer para Miguel?

A única justiça que eu quero é que ela realmente pague pelo erro dela. Que ela vá pra detrás das grades. Seja condenada e vá para trás das grades. Como qualquer pessoa que erra vai.  Se fosse ao contrário, eu estaria atrás das grades.

Olhe, olhe,… isso se eu tivesse viva ainda. Ela tá respondendo em liberdade porque  teve condições de pagar R$ 20 mil. Se fosse eu, não teria condições. Eu não tenho condições de pagar R$ 20 mil de fiança. 

Na realidade, a lei do nosso país só é severa mesmo pra quem é pobre. Quem mora na periferia. Porque se você observar direitinho a balança da justiça é totalmente desigual.  É leve para quem tem condições. Pra quem tem influência feito ela. Tá sendo leve para ela. Pra gente, que é negro, pobre, favelado é muito pesada, é muito rigorosa. Então, eu vou batalhar, vou batalhar até o fim. Vou mover céus e terra para que essa mulher pague pelo erro dela.  Para que ela seja presa. Eu não aceito que ela seja absolvida não. Ela tem que ser presa.

Você tem ou teve medo do poder que a família de Sarí Corte Real tem?

Não, nunca tive medo. Eles têm nome, mas a gente também tem. A única coisa que diferencia a gente é a questão do financeiro e das influências. Por nome? Isso aí para mim é nada. Vem acontecendo essas coisas da prefeitura [de Tamandaré], que saiu o meu nome, depois que aconteceu o caso e Miguel. Isso só foi revelado depois do erro da mulher dele [Sérgio Hacker, prefeito de Tamandaré, esposo de Sarí], depois que a mulher dele fez aquilo com meu filho, infelizmente.

Isso também mostrou a realidade da corrupção ao povo. A gente trabalhava pela prefeitura sim. Na verdade, a gente recebia nosso salário pela prefeitura. Infelizmente, quando a gente assinou o contrato não houve nenhuma outra opção, simplesmente disse que a gente ia assinar para receber pela prefeitura.

A gente assinou. E a gente não via como se fosse tão errado porque tinha outras funcionárias que também recebiam, que trabalhavam nas casas, não só deles, mas de outras pessoas da família deles. Essas pessoas também recebiam pela prefeitura.

Por isso que a gente aceitou essa condição, porque a gente precisava trabalhar, receber salário, pagar nossas contas e sustentar Miguel.

Veio tudo isso a tona. Teve a votação de dois pedidos de impeachment e foram arquivados com sete votos contra e três a favor. Infelizmente essa é a política do nosso país.

As pessoas viram que ele errou e preferem continuar no erro. Mas tudo isso que aconteceu cabe à população ver, as eleições estão chegando. Se eles querem continuar no erro, com roubo, o pessoal roubando deles, ou se preferem mudança.

Marta Santana e Mirtes Renata, avó e mãe de Miguel, respectivamente. Foto: Inês Campelo

Quando você toma a decisão de não ter se calado em nenhum momento, é para fazer com que a pessoas saibam exatamente o que aconteceu.Como você tem visto a questão da procura da imprensa, como vocês sentiram no primeiro momento? A imprensa tem sido uma aliada?

No começo foi bem impactante. As equipes vinham aqui, a gente estava se sentindo, quer queira, quer não, um pouco sufocados. Agora aliviou um pouco porque não tem fatos novos para se falar sobre o caso de Miguel por conta da lentidão da Justiça.

Algumas pessoas dizem que a mídia pode atrapalhar, inverter o que eu falo, mas para mim são aliados. O caso de Miguel só tomou essa proporção por conta da mídia, porque ajudaram a gente a divulgar tudo isso.

Tem alguns repórteres, blogueiros que ultrapassam um pouco os limites. Tem dia que eu estou bem, tem dia que estou péssima e não consigo falar com ninguém. Teve uma pessoa que ficou forçando muito, disse horrores à minha sobrinha. Isso acabou prejudicando a saúde da minha sobrinha também.

A quem me procura, eu agradeço porque é muito importante não deixar o caso de Miguel cair no esquecimento. Eu tenho sempre aceitado entrevistas, lives, mas tem dias que é difícil. 

Como a sociedade pode ajudar você e sua família na briga por Justiça por Miguel?

A única coisa que eu peço é que continuem orando para dar força e conforto para o coração da gente. Tem dia que dói muito. É uma dor que eu nem sei te explicar, é muito difícil. Continuam lembrando de Miguel, postem a hashtag, postem uma foto, tem o instagram Luto Por Miguel Oficial. Uma artista leu um texto, postou, um rapaz fez uma música para Miguel. Tudo isso fortalece. Cada gesto desse importa.

Eu vejo que as pessoas abraçaram o caso de Miguel, pegaram como se fosse filho deles. Eles querem justiça, como se fosse um filho deles.

Eu só peço isso, que as pessoas continuam a lembrar dele, para que não caia no esquecimento até o fim desse processo que, infelizmente, talvez seja um pouco longo.

Mas eu vou lutar para que não demore porque tudo isso machuca, sabe? Eu preciso que meu coração fique um pouquinho aliviado. A partir do momento em que ela for condenada e for presa, isso vai dar um pouco de alívio no coração.

Não vai trazer meu neguinho de volta, mas vai aliviar saber que a justiça foi feita e minha missão foi cumprida. Eu defendia meu filho em vida e vou defender na morte também.

Do Barro, a família de Miguel hoje luta por Justiça. Foto: Inês Campelo

Débora Britto, Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire – ONG de defesa dos direitos humanos – e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação. 


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Débora Britto

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