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O texto a seguir é parte do capítulo 10 do livro “Vocação de Semente”, em que Moema Viezzer, em depoimentos a Tereza Moreira conta suas memórias e sua trajetória pelo mundo como educadora popular feminista, ambiental, escritora e militante.
A partilha do poder, do saber, do prazer e do benquerer
“Frequentemente me perguntam como eu resumiria o que entendo por equidade de gênero. A palavra “Partilhar” é, para mim, uma palavra que sintetiza este significado e pode ser resumido nesta resposta: é partilhar o saber, o prazer, o poder e o benquerer entre mulheres e homens, convivendo em sociedade e com os demais seres da natureza.
Moema Viezzer (*)
Partilhar o poder nos incita a não reproduzir o modelo masculinizante. Por isso, quando insistimos na presença de mulheres e homens, em igualdade de condições, nos espaços de poder – sejam públicos ou privados, também insistimos em repensar a linguagem que utilizamos, a forma de conceber as leis e a organização de todos os espaços. Como partilha e não como disputa. Como cooperação em vez de competição.
Partilhar o saber significa utilizar os diversos saberes acumulados… Tanto o saber formal, como aquele que a humanidade detém desde tempos imemoriais, bem antes de o chamado “conhecimento científico” ter se estabelecido como único. Hoje, mais do que nunca, as mulheres estão ascendendo ao saber formal. Todavia, paralelamente, o saber tradicional é cuidadosamente guardado pelas mulheres e repassados por elas de geração em geração! Hoje, no Brasil, já existem numerosas iniciativas de reconhecimento, resgate e revalorização desses saberes tradicionais, infelizmente, muitas vezes, negado pelos saberes científicos. Na área rural, por exemplo, as mulheres estão à frente das iniciativas que incentivam o conhecimento ancestral sobre plantas não convencionais, agricultura orgânica, uso de plantas medicinais, receitas de boa alimentação, técnicas de cura, entre outros.
Também faz parte da partilha do saber muita coisa que está sendo resgatada por homens que começam a entender como é importante prestar atenção na vida cotidiana. Na nossa civilização, por exemplo, antigamente, era difícil uma mulher ser atendida por seu próprio marido após o parto; hoje, homens acompanham o pré-natal, o parto e estão preparados para todos os cuidados pós-parto. Isso faz uma grande diferença! Muitos deles consideram um privilégio trocar fraldas, dar mamadeira, acompanhar a criança na escola ou no Posto de Saúde. Isso é motivo de autovalorização do seu papel como pais e não mais de vergonha como em tempos atrás. Muitos gostam de saber lidar com as atividades do lar partilhando-as com as mulheres – e não somente ajudando – no que antigamente era considerado responsabilidade quase exclusivamente feminina.
Tudo isso se aprende. E há muito valor e grandeza nessas “miudezas”, como são chamadas as questões do dia a dia, geralmente colocadas em contraposição às ditas “grandes questões”. Nada é pequeno e “tudo vale a pena se a alma não é pequena”, como diz o poeta Fernando Pessoa. Isto é particularmente verdade quando se pensa que a partilha de saberes está ligada com esse cuidado essencial.
E quanta coisa precisa ser cuidada em nosso cotidiano! O alimento que compramos, preparamos e comemos; a água que utilizamos; os produtos de limpeza de que nos servimos; o destino que damos aos resíduos produzidos…
Multiplique gestos como esses por milhões de indivíduos, famílias, comunidades, instituições, empresas, neste planeta de sete bilhões de pessoas… O resultado é incomensurável porque tudo isso tem um grande impacto no ambiente e tudo faz parte dos saberes a serem colocados em prática por homens e mulheres e para serem ensinados às crianças como parte de uma nova cultura.
Partilhar o prazer. Quem diria? Conversa aberta sobre sexualidade é coisa recente em nossa civilização. Às escondidas, muita coisa acontecia; e, às escondidas, se falava bastante, como demonstram escritos históricos. Mas, nas histórias contadas por nossas bisavós e avós, principalmente no âmbito da religião, a sexualidade como fonte de prazer era algo subestimado e, até no casamento, vista apenas como “um mal necessário” para a procriação. E o dever da mulher casada era muito mais “servir o homem quando ele quisesse”. Prazer sexual? Quantas dizem desconhecer, mesmo tendo gerado vários filhos!
Toda essa cadeia de energia que inclui sexualidade-afeto-reciprocidade sem dominação/subordinação é parte da busca da partilha do prazer, dentro e fora do casamento tradicional. Nossa geração desencadeou uma revolução nessa área a partir dos anos 1960. Mas, ainda persiste a mentalidade, principalmente entre homens, de que o ato sexual não precisa ser realizado com demonstração de afeto e carinho. Também continua presente a ideia de que à mulher compete prover prazer ao homem. Basta ver como a “indústria da estética” modela o corpo feminino conforme as idealizações do desejo masculino, com todo o glamour da modernidade, traduzindo isto na moda, nas propagandas, nos comportamentos estereotipados em geral, algo que se aplica – e de forma surpreendente – também às novas gerações.
Partilhar o benquerer é o convite para praticar a ética do cuidado num convívio melhor no interior das famílias com pessoas idosas e doentes, levando-nos também a cuidar das pessoas com necessidade, por meio de ações humanitárias. Antigamente isso era considerado muito mais “coisa de mulher”.
Essa partilha do poder, do saber, do prazer e do benquerer entre mulheres e homens traz consequências que se manifestam na busca de equilíbrio entre a produção de bens/serviços e a reprodução da vida. Ela nos leva, também, a rever nossa relação com a natureza e repensar, principalmente, a maneira de nos comunicarmos com ela nas dimensões do cuidado e do afeto, percebendo-nos como seres espirituais vivendo em um mundo material.
Com certeza, estamos frente a uma meta almejada, ainda longe de ser conquistada. Não obstante, vale a pena aprender a encurtar o caminho, tornando-nos mais sustentáveis, individual e coletivamente. Tentei resumir num pequeno poema, publicado alguns anos atrás em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, a utopia que alimenta meus sonhos após tantas descobertas no universo do feminismo e de seus desdobramentos.
Imaginemos um mundo assim
Mulheres e homens
cultivando a igualdade como seres humanos
na diversidade de sexo e orientações sexuais.
Mulheres e homens; crianças, jovens, adultos, idosos
cultivando a igualdade como seres humanos
na diversidade geracional.
Mulheres e homens brancos, negros, amarelos
cultivando a igualdade como seres humanos
na diversidade de cores, raças, etnias.
Mulheres e homens com ou sem necessidades especiais
cultivando a igualdade como seres humanos
na diversidade de condições físicas, psíquicas, mentais.
Mulheres e homens convivendo em sociedades sustentáveis
cultivando a igualdade como seres humanos
na diversidade de territórios e nações, culturas e religiões.
Este é o “outro mundo possível” ao qual eu aspiro e pelo qual dedico minha vida.
(*) Viezzer, Moema – Vocação de Semente, Brasil Sustentável Editora, 2017, R$ R$ 72,50