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Monopólio: descaso de Lacalle Pou obriga povo do Uruguai a pagar caro por água engarrafada

"Não é seca, é saque", afirmam as organizações socioambientalistas para explicar a crise da água no Uruguai
Mariángeles Guerrero
Tierra Viva
Montevidéu

Tradução:

O Uruguai está há 70 dias sem água potável. O líquido que sai das torneiras tem altos índices de sódio e de cloruros, além de trihalometanos (bromuros e clorofórmios que surgem quando se aplica o cloro para potabilizar água com muita matéria orgânica). Os trihalometanos têm efeitos potencialmente cancerígenos. O governo de Luis Lacalle Pou demorou 40 dias para declarar emergência hídrica e a solução que propõe é a compra de água engarrafada. “Não é seca, é saque”, afirmam as organizações socioambientalistas para explicar a crise da água no Uruguai.

Cerca de 1,7 milhão de pessoas do Uruguai devem comprar água engarrafada das duas empresas que têm o monopólio do engarrafamento: Danone (da França) e Água Viva (do Chile). “A água que vendem é de todas e de todos, extraem-na sem pagar um peso em impostos e a vendem por preços muito altos”, questiona María Selva Ortíz, da organização Redes-Amigos da Terra Uruguai.

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O panorama é desalentador: “Não temos no horizonte uma saída para esta situação, porque tem que chover bastante para que possamos mudar a qualidade da água e deixar de tomar água do Rio da Prata”. Os informes do Instituto Nacional de Meteorologia e da Universidade da República projetam chuvas para outubro ou novembro. Uma das respostas do Governo é convidar a população a rezar para que chova.

Esgotadas as reservas de água doce que abastecem a zona metropolitana de Montevideu, as Redes-Amigos de la Tierra propõem que se continue abastecendo a população com a água disponível para assegurar o saneamento. Mas, além disso, insistem em que se tem que garantir para a população água potável para consumo humano, para beber e para cozinhar. “Assegurar isso não é por meio do mercado, como está fazendo o governo”, afirma Ortiz. Na prática, a solução do presidente Lacalle Pou é transferir dinheiro para os setores populares para que possam comprar dois litros de água por dia para tomar e cozinhar. A proposta das organizações é — por exemplo — transportar água em caminhões cisterna de outros pontos do país. 

Foto de El Paso Severino, o dique onde se junta a água potável do rio Santa Lucia. Crise da água no Uruguai não é seca, é saque

Privatização: crise hídrica no Uruguai não é seca, é saque, denuncia professora indígena

O país tem uma bacia estratégica, a do rio Santa Lucia, localizada no sul do território e abrangendo 13.433 quilômetros quadrados. É a que abastece 60% da população uruguaia de água potável. Ortiz explica que a bacia sofreu uma pressão muito grande e um uso por parte da indústria não devidamente controlado. “80% de sua contaminação é difusa e vem do setor agropecuário: monocultivos de árvores em grande escala destinados à celulose, soja, pecuária em curral e produção de leite”, afirma. 

“Isto não é sómente seca, é também saque. Se tivesse havido um manejo sustentável desta bacia, e não um manejo com as características extrativistas que tem, se tivesse havido previsão e não um desmantelamento da empresa pública de água, não estaríamos nesta situação”, garante. E afirma que um país que tem um ecossistema temperado, com uma rede hídrica tão rica como o Uruguai, esteja nesta situação “é realmente alarmante” e deveria alertar para prevenir e realizar investimentos que garantam o direito humano à água às populações, “que foi o que não fez o Estado uruguaio”.

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María Ortiz explica: “Isto é saque do agronegócio da soja, do modelo florestal da celulose, da pecuária. Eles sim têm água doce e a população tem água salgada. E ainda, a única forma de ter acesso a ela é por meio do mercado, transformando o direito humano à água em uma mercadoria”.

"Não é seca, é saque", afirmam as organizações socioambientalistas para explicar a crise da água no Uruguai

Foto: Marcos Corrêa/PR
Governo decidiu que empresas privadas se encarregariam de construir e manter tomada de água e usina potabilizadora

A água é um direito humano

O Uruguai tornou-se em 2004 o primeiro país do mundo a declarar expressamente a água como um direito humano. Isso foi feito por meio de uma reforma constitucional que estabeleceu as bases para uma política nacional que prioriza a água para consumo humano, com uma perspectiva solidária para as gerações futuras e hierarquização do social sobre o econômico. Quase 20 anos depois, Ortiz mostra a gravidade de que hoje o acesso à água potável passe só pelo mercado e por ter dinheiro para comprar água engarrafada.

O disparador principal daquela reforma constitucional foi frear projetos de privatização da água e dos serviços de saneamento. A nova legislação estabeleceu que os serviços públicos de água potável e saneamento devem ser garantidos direta e exclusivamente por pessoas jurídicas estatais. 

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Ortiz comenta que, quando a Frente Ampla deixou o governo em 2020, o ex presidente Tabaré Vázquez entregou ao novo presidente, Luis Lacalle Pou, uma pasta com políticas de Estado que deviam ser abordadas porque eram temas prioritários para o país.

“A política número um era gerar uma represa de uma reserva de 70% de água doce na zona alta da bacia do Santa Lucia, que se chama represa de Casupá”, lembra Ortiz. Mas, explica, o novo governo descartou esta proposta e assumiu uma iniciativa de cinco empresas privadas que propunham uma usina potabilizadora tomando água do rio da Prata. Este é o projeto chamado Netuno. 

Manifestação pública no centro do Uruguai. Crise da água em Montevideu / Uruguai

Um projeto para privatizar o abastecimento de água no Uruguai

O projeto Netuno foi apresentado em 2020 por quatro empresas (Saceem, Berkes, Ciemsa e Fast) em um consórcio denominado “Águas de Montevideu” e aceito pelo governo de Lacalle Pou. O Governo resolveu então que as empresas privadas se encarregariam da construção e da manutenção de uma tomada de água e de uma usina potabilizadora sobre o Rio da Prata na zona de Arazatí (San José). A estatal OSE, por sua vez, se ocuparia da operação. 

Em 2022, o representante da Frente Ampla na OSE, Edgardo Ortuño, pediu a anulação do projeto, argumentando que não “garantiria o abastecimento de água potável na zona metropolitana”, que apresentava “carências técnicas” e que “fôra aprovado sem informes da empresa pública”. O projeto foi elaborado com a consultoria da empresa israelita Mekorot.

Geopolítica da água: água para a guerra ou água para a paz?

A zona prevista pelas empresas tem os níveis de salinidade do Rio da Prata acima dos padrões possíveis para potabilizar. Além disso, setores acadêmicos alertaram que é uma zona de estancamento permanente de cianobactérias (algas tóxicas). No entanto, o projeto foi em frente.

“Este projeto, além de ser inconstitucional, é a única solução que o Governo propõe para a crise: que quando tenhamos esta nova usina não estaremos nesta situação”, critica a integrante de Redes-Amigos da Terra. E afirma: “Nós, os movimentos sociais e a academia dizemos que isto é uma falsa solução, porque na realidade é um grande negócio para estas cinco empresas privadas que vão investir 258 milhões de dólares nesta usina potabilizadora e depois vão cobrar 800 milhões de dólares em 18 anos, porque vão continuar manejando a usina”.

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Afirma que vão ter que baixar os padrões de qualidade da água, subindo os níveis de salinidade acima do que está aprovado no país. Afirma que Netuno não é a solução para assegurar o direito humano à água da área metropolitana do Uruguai (onde vive 60% da população do país).  

“Estamos muito alarmados, sem saber se este projeto na realidade não traz na manga construir uma dessalinizadora que tenhamos que comprar de Israel, sendo que os custos desta usina não têm nenhum sentido para o povo uruguaio, tendo o país uma rede de água doce superficial e subterrânea como a que tem. Contamos com uma rede e um potencial para abastecer-nos e não teríamos que estar na crise se tivesse havido previsão e investimento por parte do Estado”, lembra.

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Selva Ortiz não tem dúvida que o que aconteceu no Uruguai pode ser um antecedente para os países da região. “Principalmente nesta política do governo neoliberal que não investe para assegurar um direito humano fundamental e em não ter previsões ante eventos extremos climáticos que vão ser cada vez mais frequentes, fruto da mudança climática sobre a qual tampouco estamos fazendo nada como humanidade. Continuamos aquecendo o planeta, sem políticas e com falsas soluções”, denuncia.

Mariángeles Guerrero | Agência TerraViva
Tradução: Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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