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Mundo em trânsito: a sustentabilidade do desenvolvimento humano e o Sul Global

Bloco tem importância decisiva por sua experiência histórica e nos problemas que lhe impõe sua condição periférica nas estruturas de poder
Guilherme Castro H.
Diálogos do Sul Global
Alto Boquete

Tradução:

“O mundo está em trânsito violento, de um estado social a outro.
Nesta mudança, os elementos dos povos se perdem e confundem;
as ideias se obscurecem; misturam-se a justiça e a vingança;
exageram-se a ação e a reação; até que depois,
pela soberana potência da razão,
que a todas as demais domina, e brota, como a aurora da noite,
de todas as tempestades das almas,
acrisolam-se os confundidos elementos, dissipam-se as nuvens do combate,
e vão se assentando em suas bases as forças originais do estado novo”.

José Martí, 1883 

2023 foi um ano terrível em muitos sentidos. Vimos progredir ante nossos olhos, na forma como no sentido, a desintegração da organização internacional do mercado mundial surgida da II Guerra Mundial, gerando problemas que não é capaz sequer de eludir. Assim, a incapacidade para encarar os desafios da mudança climática. Assim, também, o conflito entre a Rússia e a OTAN que se trava na Ucrânia; a indiferença cúmplice dos poderes do Atlântico Norte ante o genocídio do povo palestino, enquanto em nossa América, à vigilância exercida pelos Estados Unidos sobre Guatemala, Honduras, El Salvador e Nicarágua, e o cerco implacável a Cuba, acrescentam-se os rumos para o caos no Equador, Peru e Argentina.

No fim, tudo indica que tinha razão Immanuel Wallerstein ao advertir no final do século XX que a queda da URSS era o primeiro aviso do caos no moderno sistema mundial, e o início de outro processo de transição histórica de resultados (ainda) imprevisíveis.[2] Desse caos, por exemplo, resultam também opções de mudança como as que apontam para a formação de um sistema mundial de corte multipolar, alentadas principalmente desde o Sul global por meio de iniciativas promovidas por países como Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul – BRICS, assim se chama o grupo –, às quais de um modo ou de outro somam-se o México, o Irã e diversos Estados e países árabes, asiáticos e africanos.

Identificar estas opções, e escolher aquelas pelas quais valha o risco de lutar, implica assumir uma racionalidade que ainda parece nova, ainda que a própria situação não o seja. Entre as dificuldades que isso implica está o fato de que a transição em curso inclui a das formas de pensar que foram dominantes no sistema mundial entre meados e o fim do século passado.

Ante esta transição, a primeira reação nos meios intelectuais foi tentar atualizar essas formas de pensar, elaboradas sobretudo a partir do liberalismo desenvolvimentista triunfante da década de 1950, reelaborado nas mais diversas vertentes ideológicas e regionais. A esta reação somaram-se, ainda, outras que questionam as formas estatais deste desenvolvimentismo em decomposição, seja na perspectiva do populismo neoliberal, seja na de setores vinculados a movimentos étnicos e de trabalhadores do campo e da cidade que reclamam uma distribuição do poder e da riqueza que dê prioridade à atenção a suas necessidades.

Aqui não se trata apenas de que as ideologias tendam a naturalizar os fenômenos históricos, para apresentar os conflitos gerados pelo controle da força de trabalho e os recursos do Sul global em uma luta sem fim entre a civilização e a barbárie ou – para simplificar – entre o jardim e a selva do senhor Borrell. Mas, além disso, ocorre na cultura aquilo que Martí chamou de um processo de endurecimento e reforma, que dá lugar a mudanças finalmente irreversíveis nas formas de organização da vida em sociedade e, com isso, na do pensar, e na do fazer social e político.

Este processo ainda está pendente de uma discussão que o leve a transcender suas formas de origem, e a encarar suas opções de futuro. Muito do que ainda subsiste nele veio adquirindo um caráter mítico que, parafraseando Marx “submete, domina, modela” as forças que operam na história “na imaginação e mediante a imaginação”, até que desaparece “com o domínio real” sobre estas forças.[3] A análise desse tipo de processo de transição cultural – e recordemos que a política é a forma mais clara e extrema da expressão de toda cultura – conta com valiosos antecedentes à nossa disposição.

A crise mundial de 1973 gerou uma primeira leva deste tipo de estudos, que em nossa América expressou-se com especial riqueza no campo da história do pensar marxista. Aqui destaco o interesse da contribuição de José Carlos Mariátegui, em particular quanto à proposta de um enfoque de nosso desenvolvimento histórico centrado na noção de formação econômico-social antes do que na de modos de produção sucessivos. Nesse contexto, houve, aliás uma convergência com outras correntes histórico-culturais, como as que levaram a uma recuperação do pensar de Antonio Gramsci no plano político-cultural, ao mesmo tempo, em que a crítica das superestruturas do liberalismo oligárquico se via enriquecida pela formação de uma teologia da libertação.

De Wallerstein para cá, a falência ideológica do neoliberalismo e do marxismo soviético abriram passagem – sobretudo no mundo do Atlântico Norte – aquele que se autodenomina “o Ocidente” – para estudos e debates do maior interesse no que veio a ser chamado de uma “crise civilizatória”. Neste campo tiveram especial importância, tanto no campo dos estudos referentes a transições prévias, como no das perspectivas da que está em curso.

No conjunto do processo em que nos encontramos, destaca-se o fato de que, se a teologia foi o eixo articulador da cultura medieval, e a economia o da cultura do capital, a ecologia está destinada a ser o da cultura que emerge nesta transição – para o bem, ou para o mal. Este eixo já deu lugar a múltiplas contribuições que trazem à tona, politicamente, os problemas e as opções que vão dando forma à crise, da Ecologia de Marx. Marxismo e natureza (2000), de John Bellamy Powell, à encíclica Laudato Si’ (2015), do papa Francisco.

Tal é o tipo de textos que mostram de um modo ou de outro o debate sobre a transição que vivemos, em muitos sentidos diferente de qualquer das precedentes, pois o que se decide nesta não é nem a salvação da alma, nem a da acumulação de capital, e sim a sustentabilidade do desenvolvimento da espécie humana. Tal é a perspectiva que demanda ampliar a busca de meios para abrir a discussão à própria transição, e a suas expressões.

Isto significa, aqui, agora, que no curso deste debate terá uma importância decisiva a participação do Sul Global, tanto em sua experiência histórica como nos problemas que lhe impõe sua condição periférica nas estruturas de poder de um sistema mundial que cada vez se parece menos com o imaginado em 1944 e 1945 pelos criadores do Fundo Monetário Internacional e da Organização das Nações Unidas. Sem nós, estará sempre incompleta “a soberana potência da razão, que a todas as demais domina” que Martí invocou ao iniciar-se a transição entre a organização colonial de origem e a internacional / interestatal do sistema mundial que o mercado mundial vinha organizando desde sua origem até nossos dias.

Esta potência será indispensável para compreender e encarar o fato de que se desejamos um ambiente diferente teremos que criar sociedades diferentes e resolver o problema fundamental que nos apresenta esta crise. E tal é, de fato, o problema central que propõe à Humanidade inteira a transição em que já estamos imersos.


Notas

[1]  “Cuentos de Hoy y de Mañana, por Rafael Castro Palomares”. La América, Nova York, outubro de 1883. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. V, 109.

[2] Después del Liberalismo. Siglo XXI editores. México, 1996. https://www.academia.edu/36468811/Despues_del_liberalismo_Immanuel_Wallerstein

[3] Ao discutir a vigência da arte clássica grega, Marx afirma que “Toda mitologia submete, domina, modela as forças da natureza na imaginação e mediante a imaginação: desaparece portanto com o domínio real sobre elas.” Introducção general a la Crítica de la Economía Política (1857). Introdução de Umberto Curi. Siglo XXI Editores. Biblioteca del Pensamiento Socialista. México. 2019: 61.

[4] No primeiro caso, por exemplo, El Legado de Roma. Una historia de Europa de 400 a 1000, (2009) do medievalist a inglês Christopher Wickham. Pasado y Presente, Barcelona, 2016. No segundo, Algo Nuevo Bajo el Sol. Historia medioambiental del mundo en el siglo XXI, (2000) do historiador norte-americano John R. McNeill. Alianza Editorial, Madrid, 2003.

Guillermo Castro H. | Colunista na Diálogos do Sul direto de Alto Boquete, Panamá. Blog: martianodigital.com.
Tradução: Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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