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As tensões planetárias no limite

Ladislau Dowbor

Tradução:

Ladislau Dowbor*

Estamos atingindo limites em vários planos. Para já, somos muitos: 7 bilhões de habitantes, 80 milhões a mais a cada ano, e todos querendo consumir mais. E se não quiserem, aí está publicidade para moldá-los, desde crianças, em máquinas de consumo obsessivo.

Desde crianças, estamos sendo transformados em máquinas de consumo obsessivo.
Desde crianças, estamos sendo transformados em máquinas de consumo obsessivo.

Uma imagem ajuda: quando nasceu o meu pai, em 1900, éramos 1,5 bilhão. E o meu pai, em termos históricos, é ontem. O meu pai usava a sua força física. Eu uso, com o meu carro, diversos aparelhos e combustíveis, 150 vezes mais fortes. Tornámo-nos muito poderosos. Mas o planeta não mudou de tamanho. Não é questão de otimismo, pessimismo ou catastrofismo, e sim, de bom senso. Temos de aprender a nos limitar, a usar de maneira inteligente o que temos.

Muitos já se encontram limitados no consumo pela simples tragédia social acumulada. O Banco Mundial apresenta os The Next 4 Billion, os quatro bilhões que segundo a expressão elegante “não têm acesso aos benefícios da globalização”, ou seja, são pobres. Nestes, cerca de 2 bilhões vivem com menos de 2 dólares ao dia, um bilhão com menos de 1,25 dólares, 850 milhões passam fome – dos quais 180 milhões são crianças, das quais por sua vez morrem de 10 a 11 milhões por ano de causas ridículas, mas sobretudo, pela fragilidade que a fome gera.

No plano social, nosso sistema é explosivo. Uns se congratulam com o copo meio cheio, mas para efeitos de direcionamento das nossas políticas públicas e privadas, precisamos focar o copo meio vazio. Enfrentar de maneira propositiva o que é absurdo e inaceitável.

Eduardo Matias vai direto às causas, ao analisar “as duas grandes crises que afligem a humanidade: a ambiental, que será nosso foco principal, e a financeira, que merece ser abordada não apenas porque o contexto econômico dela resultante prejudica o combate aos problemas socioambientais, mas também porque, na raiz tanto de uma quanto da outra, estão o mesmo tipo de mentalidade e os mesmos incentivos equivocados”. O problema da mentalidade é um problema sem dúvida de todos nós, mas o dos “incentivos equivocados” é sistêmico, e se trata aqui das regras do jogo, das instituições que nos regem, dos pactos sociais que herdamos.

O problema da mentalidade é um problema sem dúvida de todos nó O problema da mentalidade é um problema sem dúvida de todos nó

Em outras palavras, é o processo decisório de como utilizamos nossos recursos que está no centro do debate. A culpabilização é fácil, e sempre haverá dedos a apontar os responsáveis, a canalizar raivas. Mas a busca de processos decisórios que façam a sociedade funcionar de maneira sustentável exige a compreensão de mecanismos e deformações.

O nosso problema não é de recursos, e sim de políticas públicas, responsabilidades corporativas e novos pactos sociais que este pequeno planeta precisa construir. Uma conta simples ajuda a compreender o desafio: com 7 bilhões de habitantes e 70 trilhões de dólares de bens e serviços produzidos anualmente no planeta, uma distribuição razoável asseguraria basicamente 7 mil reais por mês por família de 4 pessoas. Podemos todos viver de maneira digna e confortável.

Nesta linha, Matias apresenta, através da sistematização abrangente das diversas dimensões da sustentabilidade, as responsabilidades tanto das empresas, como do Estado, ONGs, mídia e organizações multilaterais. No caso dos bens comuns, por exemplo, que estão sendo rapidamente dilapidados no planeta, busca os mecanismos de gestão correspondentes: “Os bens comuns não se administram sozinhos. Eles demandam regras sociais e instituições. Então, que tipo de regras poderia levar os bens comuns a serem preservados?”

Ao resgatar o papel dos diversos atores sociais, e das articulações necessárias – enfoque que perpassa todo o trabalho – o autor busca mostrar “o quanto o compartilhamento de poder e as normas comumente acordadas seriam a chave para o sucesso da governança da sustentabilidade.”

Fugindo da crítica demasiado fácil ao Estado, Matias ressalta a importância dos atores não estatais na governança ambiental global: “Essa categoria inclui as ONGs, que sempre tiveram um papel de reivindicar mais governança ambiental e têm funções importantes de geração de agendas e conhecimento e de monitoramento. Abrange, também, a academia e a mídia, que podem influenciar a maneira como a governança ambiental global é concebida e implementada. Inclui, por fim, as empresas, cujo envolvimento e apoio são cada vez mais necessários para se governar globalmente. E há, ainda, a opinião pública, que pressiona e pode ditar o comportamento dos demais atores.”

As corporações hoje se agigantaram a ponto de manejarem mais recursos do que a maioria dos Estados, sem a responsabilização correspondente
As corporações hoje se agigantaram a ponto de manejarem mais recursos do que a maioria dos Estados, sem a responsabilização correspondente

Particular atenção é dada às corporações, que hoje se agigantaram a ponto de manejarem mais recursos do que a maioria dos Estados, sem a responsabilização correspondente. “O mais comum é que as empresas se ponham na defensiva e se recusem a agir de forma transparente ao constatar estar causando algum dano. É uma pena que seja assim, principalmente porque a revolução tecnológica facilitou o diálogo e a formação de parcerias com os stakeholders”.

O autor vê como necessária uma revisão do processo decisório nas corporações: “A sustentabilidade não é uma tarefa secundária que poderia ser relegada ao departamento de relações públicas ou de responsabilidade social. O dever de implementar a agenda do triple-bottom-line é da direção da empresa, de seu conselho de administração”.

Voltamos aqui ao conceito tão importante dos “incentivos equivocados”, hoje muito estudados no planeta, nesta revisão das regras do jogo que temos pela frente. Que espaço têm os administradores de uma empresa, quando os acionistas são grandes investidores institucionais que impõem a ferro e fogo a maximização da rentabilidade e o foco no curto prazo?

A temática é muito atual, e foi o centro do debate no Fórum das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos. Nas palavras de Joseph Stiglitz, “algumas corporações assumiram a visão de que não é sua tarefa determinar o que é certo ou errado; isto é responsabilidade do governo. O seu papel é de maximizar os lucros, no quadro das leis e regulamentações. Mas há certa ambiguidade (desingenuousness)nesta posição. Pois muitas empresas têm assumido papel ativo na definição de leis e regulamentações. Com demasiada frequência, promoveram leis e regulamentações que deram pouco espaço aos direitos dos trabalhadores e dos consumidores e à proteção do meio ambiente.”

O foco nas corporações é inevitável. Matias lembra que “as vendas conjuntas das duzentas maiores empresas do mundo são maiores do que a soma da produção de todos os países, com exceção dos dez mais ricos”, e que “a Shell emite mais CO2 do que a Arábia Saudita, a Amoco mais do que o Canadá, a Mobil mais do que a Austrália e a BP, Exxon e Texaco mais do que a França, Espanha e Holanda. Metade das emissões de gases causadores do aquecimento global é gerada por empresas transnacionais”. A verdade é que as mesmas empresas que geram o problema terão de ser parte da resposta.

O trabalho de Eduardo Matias é muito útil, reforçando estudos semelhantes que temos encontrado com José Eli da Veiga, Ricardo Abramovay, Liszt Benjamim Vieira e outros. Com numerosas sistematizações e pesquisas científicas, estamos adquirindo matéria prima, em termos de conhecimentos organizados, para ir expandindo uma tomada de consciência mais ampla da dimensão das mudanças que se impõe.

Mas ainda estamos muito longe de um nível de compreensão suficientemente enraizado na sociedade para que as coisas comecem realmente a acontecer. A mídia teria aqui um papel muito mais importante a desempenhar. Para o cotidiano das pessoas, o curto prazo é muito mais confortável. Ver as nuvens no horizonte é muito menos.

O perigo das ameaças sistêmicas é que exigem a ação articulada de atores sociais que preferem falar mal uns dos outros. E o perigo dos problemas que se materializam inexoravelmente, mas no longo prazo, é que constituem catástrofes em câmara lenta. E as respostas, em câmara mais lenta ainda.

As janelas do tempo estão se fechando. E não se trata de ameaças acadêmicas: trata-se da nossa sobrevivência. Lamentavelmente, este livro, uma bela leitura, traz um título que é perfeitamente realista: Planeta Sustentável.

*Do núcleo de fundadores de Diálogo do Sul – É doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e da UMESP, e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de “Democracia Econômica”, “A Reprodução Social”, “O Mosaico Partido”, pela editora Vozes, além de “O que Acontece com o Trabalho?” (Ed. Senac) e co-organizador da coletânea “Economia Social no Brasil“ (ed. Senac) Seus numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social estão disponíveis no site http://dowbor.org’


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Ladislau Dowbor

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