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ToggleA informação supostamente com origem na “oposição da Síria” divulgada pela comunicação social corporativa a propósito da guerra contra este país é gerada por um tentacular sistema de propaganda montado pelo governo britânico em conjunto com empresas privadas pertencentes a ex-oficiais das forças armadas e dos serviços secretos de Londres. As provas constam de documentos oficiais resultantes de fugas de informação recentes.
De acordo com elementos constantes dessa documentação, a operação tem como objetivo “dinamizar os valores e a reputação da oposição síria” para “minar a narrativa de legitimidade” do governo de Damasco, de modo a “promover os interesses estratégicos do Reino Unido na Síria e no Médio Oriente”.
Esta estratégia de comunicação foi lançada pelo Comando Estratégico britânico (UKStratCom)1 na sequência de uma iniciativa do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Londres, que mantém a supervisão e delega a execução em empresas privadas contratadas para o efeito. O financiamento é suportado essencialmente pelos ministérios da defesa britânico, dos Estados Unidos e do Canadá.
A gestão direta do processo está entregue a um “antropólogo” dos sectores “anti-terroristas” do Ministério da Defesa, sob a tutela de Jonathan Allen, oficial do MI6, serviços de espionagem britânicos, e também número dois da delegação do Reino Unido no Conselho de Segurança na ONU.
Foto de arquivo Créditos/ Exército Britânico
Comunicação com origem na oposição síria a favor da guerra é um sistema montado por governo britânico.
A iniciativa desenvolveu-se a partir do momento em que a Câmara dos Comuns do Parlamento britânico decidiu, em 2013, que o Reino Unido não poderia participar em quaisquer operações militares em território sírio, ao contrário do que acontece com os Estados Unidos e a França. A medida parlamentar, no entanto, veio a ser violada pelas forças armadas através da participação no bombardeamento efetuado em 7 de Abril de 2017 contra território sírio – como “resposta” a um “ataque químico” que não existiu, como agora está plenamente provado; e também pela participação de pilotos militares britânicos, aos comandos de aviões de outras bandeiras, em ações aéreas contra a soberania síria.
Uma teia de intoxicação
A base da estratégia montada em Londres foi a seguinte: dar voz à “oposição síria” através de canais de comunicação montados por empresas privadas britânicas controladas por meios militares e de espionagem, por sua vez contratadas pelo governo do Reino Unido.
A proliferação do “jornalismo cidadão”; a criação de fontes de informação e de assessorias tornadas “fidedignas” e “indispensáveis”, de que é exemplo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos2, significativamente a funcionar em Londres; e a preparação de “porta-vozes” para transmitir os pontos de vista de uma “oposição”, de fato, sem rostos credíveis, são caminhos explorados de uma maneira orgânica e tentacular e que moldam a informação dominante à escala global sobre a guerra contra a Síria.
Os megafones privilegiados pelos gestores da rede são as estações de televisão, designadamente a Sky News, a BBC, especialmente os seus canais em árabe, a Al Jazeera do Qatar e a Al Arabyia da Arábia Saudita. A partir daí as mensagens tornam-se imparáveis, bebidas pela teia da informação corporativa sedenta por tudo quanto possa estigmatizar o governo legítimo de Damasco.
Os documentos governamentais revelam que, no âmbito da operação, o Ministério britânico dos Negócios Estrangeiros montou escritórios especiais em Istambul, Amã e ainda na cidade turca de Reyhanli para os quais foram selecionados membros da diáspora “oposicionista” síria através das empresas privadas envolvidas no processo3.
A tarefa dos contratados é, por exemplo, estabelecer a rede de “jornalismo cidadão” através da Síria, integrando pessoas que, em muitos casos, nem sequer sabem que estão a ser pagas por governos estrangeiros. Devem produzir textos, pequenos vídeos, programas de rádio, posters, até banda desenhada para plataformas, blogues, redes sociais – um abundante manancial capaz de “expor os crimes, os fracassos, os erros do regime de Assad”. Os membros da rede recebem entre 50 e 200 dólares por peça, supostamente pagos por “organizações de oposição”; o dinheiro, no entanto, escorre realmente de um orçamento mensal de um pouco mais de 500 mil euros, financiado pelos ministérios da defesa do Reino Unido, Estados Unidos e Canadá.
A gestão e o encaminhamento deste imenso espólio envenenado está nas mãos das empresas de comunicação que gerem os escritórios da Turquia e da Jordânia a rogo das autoridades britânicas.
Assim nasceram os Capacetes Brancos
Outra missão desta rede de propaganda é “promover a sociedade civil” nas zonas sob domínio da “oposição”, leia-se terroristas da al-Qaeda e, durante muito tempo, também do Estado Islâmico, embora a documentação oficial fale sempre em “organizações moderadas”. Em boa verdade, os terroristas “moderados” nunca foram relevantes e estiveram sempre sob o controlo operacional dos braços locais da al-Qaeda e do Estado Islâmico.
Um exemplo da construção dessa “sociedade civil” foi a criação de “polícias livres”4 e de organizações de “socorro humanitário”, como por exemplo os Capacetes Brancos.
O tempo e os fatos demonstraram que tais estruturas estiveram sempre ao serviço do terrorismo: os Capacetes Brancos, comprovadamente um braço da al-Qaeda, acabaram por tornar-se conhecidos pelas encenações de vários “ataques químicos”, realizadas aliás pela Olive, uma produtora cinematográfica e agência de comunicação britânica, como as outras agregadas à gigantesca operação de propaganda, mentira e intoxicação.
O fato de os Capacetes Brancos terem sido fundados e dirigidos por um antigo agente dos serviços secretos britânicos, James Le Mesurier, não pode ser considerado, nestes contextos, uma pura coincidência. Assim como a circunstância de Le Mesurier ter falecido recentemente em Istambul, caindo de maneira muito suspeita da janela do seu escritório5.
Os meios de comunicação social nacionais e internacionais que se tornaram acriticamente clientes desta rede de mistificação – fruto da experiência secular do Império Britânico – não podem alegar que estão enganados ou são burlados na sua boa-fé.
O processo, no fundo, é clássico, apenas aprimorado pelas dinâmicas tornadas possíveis pelas novas tecnologias. E o seu funcionamento foi desmascarado desde o início da própria guerra de agressão, quando o jornalista espanhol Daniel Iriarte denunciou a encenação que foi a apresentação do “Exército Livre da Síria» em Jabal al-Zounia. Um corpo que deveria ser constituído por desertores do exército regular reuniu sobretudo mercenários “importados” da Líbia, sob a chefia operacional do dirigente terrorista Abdelhakim Belhadj, transferido entretanto do posto de comandante militar de Tripoli para o qual fora designado pela NATO. Daniel Iriarte identificou a trapaça e demonstrou que o corpo “revolucionário” era tutelado pelo coronel britânico Paul Tilley, antigo oficial do MI6. A encenação para apresentação do “Exército Livre da Síria”, para que conste, foi montada pela empresa britânica Innovative Communications & Strategies (InCoStrat)6.
Porta-vozes amestrados
Outra área tutelada pelos escritórios britânicos em Istambul e Amã, integrada portanto na envolvente operação de propaganda, é a dos porta-vozes da “oposição síria”. Tal como os “jornalistas cidadãos”, são figuras recrutadas pelos contratados na diáspora síria, sempre sob o controlo dos responsáveis britânicos.
De acordo com os documentos oficiais, os porta-vozes são selecionados, contratados e treinados pelas mesmas agências de comunicação que gerem as assessorias de informação que trabalham 24 horas por dia, o expediente produzido pelos “jornalistas cidadãos” e pelas atividades dos “Capacetes Brancos” nas suas missões de “socorro humanitário”.
Uma vez em condições de exercer o cargo, porém, os porta-vozes da “oposição síria” cujos testemunhos correm mundo só podem usar da palavra depois de autorizados pelo consulado britânico em Istambul.
Os beneficiários deste sistema articulado e multidisciplinar de mistificação queixam-se de que o apoio britânico perdeu dinâmica quando mais precisavam dela, sobretudo a partir de 2015, ano em que a Rússia entrou na guerra a pedido do governo sírio. De fato registou-se uma alteração de forças em detrimento de “organizações de oposição” – grupos terroristas – que perderam os seus principais feudos urbanos; no entanto, ter-se-ão registado também dissonâncias estratégicas entre Londres e Washington associadas, ao que consta, às relações ambíguas entre os Estados Unidos e o Isis ou Estado Islâmico e também ao fato de a parte norte-americana, ao contrário da britânica, insistir no desmantelamento da Síria como país.
É fácil perceber, porém, que a operação de propaganda de matriz britânica continua ativa. Basta observar a esta luz a cobertura que está a ser feita mundialmente sobre a “corajosa resistência da oposição” – a al-Qaeda apoiada por tropas regulares turcas – contra o assalto das tropas do “regime de Assad” – o governo soberano do país – à província de Idlib, por sinal o último reduto da organização de Bin Laden criada pela CIA e o MI6.
Por isso, qualquer semelhança entre a narrativa da guerra da Síria feita pela comunicação social corporativa e a realidade no terreno é pura coincidência.
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