São sete da tarde e as janelas da cidade de Nova York se abrem, como todos os dias a esta hora, para oferecer uma ovação sonora, acompanhada de sirenes de bombeiros, aos trabalhadores da saúde que nos estão resgatando no meio da pandemia, no meio deste chamado “epicentro” do país number one em contágios e agora na competição global diária para ganhar o troféu de mais mortos.
Com os aplausos não só se agradece, mas se supera por uns minutos o isolamento da quarentena parcial, e com isso, se reconhece que embora cada ação de “distanciamento” é individual, é ao mesmo tempo, uma ação solidária – o que cada um faz tem impacto em todos.
Mas como em toda crise, o coronavírus deixou claro que nem todos são afetados da mesma maneira – as cifras de contágio e morte revelam uma geografia de classes em que os mais pobres – entre eles as minorias afro-estadunidenses e latinas como a maioria dos imigrantes, sobretudo os indocumentados – são os mais devastados.
São, em primeiro lugar, vítimas não do vírus, mas sim da maior desigualdade econômica e social em noventa anos. O problema fundamental nesta crise não é de saúde, mas sim da injustiça estrutural que vem se aprofundando durante quatro décadas de políticas neoliberais.
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Lutas pelos direitos civis e humanos dos trabalhadores e dos pobres, entre esses os da saúde, emprego digno e educação
A primavera, renascimento da vida depois do longo inverno, desta vez está sufocada pela peste, pelas histórias que nos contamos de sofrimento, de pessoal médico arriscando suas vidas, dos que morrem sozinhos sob a regras do isolamento em hospitais, ou das centenas que perecem em casa sem jamais ser atendidos, e nem registrados nas cifras oficiais.
Enquanto a vida pública está quase totalmente clausurada, os leões que cuidam da entrada da Biblioteca Pública de Nova York calaram seus rugidos (imaginários) já que não há ninguém para saudar nem despedir, igual aos felinos vivos no Zoológico do Bronx (embora se suspeite que eles e os outros animais estão felizes sem ver os humanos que os encarceraram para “conservá-los” da devastação do planeta, que entre outras coisas, desatou esta pandemia).
Nos invade a ira enquanto como jornalistas tentamos contar tanto os atos nobres e solidários como também os abusos e a delinquência oficial no meio da emergência. Não se pode ser “objetivo” diante do grande crime já bem documentado de como o presidente e a cúpula política não responderam durante dois meses apesar de ter toda a informação sobre o potencial devastador dessa pandemia. A crise é fundamentalmente de origem política, não biológica (como documentamos nestas páginas por diversos especialistas).
“As histórias que estamos escutando no meio desta pandemia ressoam com a história na Bíblia da crucificação de Jesus, um refugiado sem teto, de pele morena e um criminoso convicto assassinado pelo Estado por organizar um movimento de fusão moral para transformar a sociedade para servir às necessidades dos pobres em lugar dos ricos”, declaram os líderes do ressuscitado Movimento dos Pobres, o reverendo William Barber e a reverenda Liz Theoharis em sua mensagem de Páscoa. Agregam que na Bíblia há múltiplas ressurreições – as que definem como “confirmações da justiça de Deus” – e que essas hoje se expressam em lutas pelos direitos civis e humanos dos trabalhadores e dos pobres, incluindo os imigrantes – entre esses os da saúde, emprego digno e educação.
Comentam que o silêncio em muitas cidades sob quarentena hoje em dia é interrompida por ambulâncias, e que isso recorda palavras do Reverendo Martin Luther King advertindo que algumas proibições não podem ser respeitadas durante emergências: “Os pobres desta sociedade estão vivendo em condições trágicas pelas terríveis injustiças econômicas que os acorrentam. As pessoas deserdadas por todo o mundo estão sangrando pelas profundas feridas sociais e econômicas. Requerem brigadas de choferes de ambulâncias que terão que ignorar os semáforos vermelhos do sistema atual até resolver a emergência”.
Disso dependerá, em grande medida, uma ressurreição pós-pandemia.
David Brooks, correspondente de La Jornada em Nova York
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Tradução: Beatriz Cannabrava
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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