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Foto: Reprodução

Africa pós-pandemia pode ser oportunidade para novas gerações deixarem neoliberalismo

A época que se advinha no período após coronavírus poderá ser propícia para que no continente africano se edifique novos modelos de Estados Nacionais
Miguel de Barros
Dias ao Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

Quando os estados africanos estavam a reproduzir as medidas desencadeadas no Ocidente com o conhecimento dos primeiros casos positivos de COVID-19, os seus dirigentes estavam longe de imaginar que estariam expostos às fragilidades resultantes da desgovernação marcada pela ausência de verdadeiras políticas públicas de promoção e garantias de bem-estar que assegurassem às populações condições de vida dignas.

As medidas baseadas no distanciamento social e confinamento, agravadas pela declaração do Estado de Emergência, não foram acompanhadas de uma prévia avaliação da dimensão epidemiológica devido ao fraco investimento na vigilância sanitária, nem se agiu na antecipação quando, em janeiro, a situação foi declarada na China de emergência sanitária. Isto porque, sendo este país o principal parceiro econômico da África é igualmente o país que lidera o mercado de produção de equipamentos.

O estado de emergência levantou questões complexas como a capacidade de o Estado em prover bens e serviços básicos como o acesso à alimentação, energia, Internet, renda… mas também colocou as instituições perante o desafio da salvaguarda do direito à segurança, mobilidade, produção, opinião e manifestação. As complexidades dessas questões colocam o continente africano perante os seguintes dilemas:

  1. Como manter em casa uma economia produzida na rua, marcada pelo movimento pedestre, na base afetiva e de proximidade da qual depende mais de metade da população africana, sem um sistema de segurança social capaz de proteger não só os negócios como as pessoas que operam nelas?

  2. Como garantir a salvaguarda dos direitos humanos das mulheres perante a violência doméstica e a sobrecarga a que se expõem com o confinamento, isto sendo que a maior parte dos empregos nas economias africanas são ocupados e/ou dirigidos pelas mulheres?

  3. Como fugir do vírus e não morrer de fome, se os países africanos têm uma alta dependência da importação de alimentos que chega a ultrapassar sessenta biliões de dólares e simultaneamente a sua economia é baseada na exportação de recursos naturais (matérias-primas) para fora do continente?

  4. Que possibilidades educativas e de aprendizagem as crianças podem ter através do tele-ensino ou educação à distancia quando há regiões onde as escolas são ainda ao ar livre, ou sem energia eléctrica, para não falar da indisponibilidade de computadores, do alto custo da Internet e de pais e encarregados de educação que não tiveram acesso ao ensino que os capacitasse para o acompanhamento?
A época que se advinha no período após coronavírus poderá ser propícia para que no continente africano se edifique novos modelos de Estados Nacionais
“A crise ensinou-nos, sobretudo, que o mais importante é a aposta no investimento das pessoas” (Liga Internacional dos Trabalhadores)

Esses elementos servem de interpelação ao fundamento da ‘governança’ nos estados africanos que se encontram numa situação peculiar, com a pressão da população mais jovem do Mundo (62%) que, apesar de estarem menos preparados para se defenderem do coronavírus por não possuírem as estruturas, os meios e os profissionais necessários para o efeito, têm ao mesmo tempo que encontrar respostas econômicas e sociais imediatas para que o impacto da pandemia não seja potenciado à escala da insegurança alimentar e de calamidade humana sem possibilidades de controlo a curto e médio prazos.

No entanto, a pausa a que a humanidade foi forçada, a prospecção que foi obrigada a fazer permite que se repense a sociedade que queremos construir sem que seja, para isso, necessário fazer tábua rasa do passado, já que ele (passado) não nos deixou muita coisa para demolir, mas muita para edificar. Ora, será que o nosso futuro pós-corona, atendendo ao nível de incerteza a que estamos expostos com as principais formas de geração da economia em África – exportação, turismo e remessas – permitem reestruturar variantes do sistema em que vivemos?

A época que se advinha do pós-pandemia poderá ser propícia para que no continente africano se edifique novos modelos de Estados.

Na realidade, há muito que os africanos têm a percepção que tinham que mudar, verdade essa que a crise veio expor abertamente. Isso faz com que o momento atual possa ser encarado como uma oportunidade para as novas gerações se mobilizarem para construírem um novo sentido do serviço público do Estado.

Com a independência e a transição para o regime democrático, os Estados africanos herdaram uma forte dependência externa, um pesado serviço de dívida e um sistema econômico neoliberal e neocolonial, alimentado com uma cultura política de regimes autoritários de Golpe de Estados, quase que dinásticos que recalcaram a estruturação de suas instituições e de suas políticas.

A época que se advinha do pós-pandemia poderá ser propícia para que no continente africano se edifique novos modelos de Estados. Para o efeito, há que anular as dívidas dos países, reconverter o sistema fiscal e financeiro ao serviço do desenvolvimento e criar uma nova base de transformação produtiva ao nível continental com impacto nos setores sociais.

Essa oportunidade reveste-se de uma necessidade de democratização e renovação do sistema político e das instituições, tendo em vista a possibilidade de encarar a crise sanitária e econômica enquanto um campo que pode contribuir para emergência da de um novo espírito de unidade africana – onde a luta passa pela mobilização coletiva que permita um equilíbrio entre o sistema político, econômico socioambiental e cultural capaz de desencadear processos de transição da crise sanitária para modos de vida sustentáveis.

A crise ensinou-nos, sobretudo, que o mais importante é a aposta no investimento das pessoas, no desenvolvimento do nosso potencial enquanto sociedade de serviços capaz de assumir as suas responsabilidades.”

Nesta perspectiva, será decisiva a canalização do investimento público para a reconversão da educação, não só em termos da infraestruturação e apetrechamento de meios técnicos e tecnológicos para um melhor funcionamento, mas na aposta nos recursos humanos, na endogeinização dos currículos às realidades locais e num sistema público e inclusivo, capaz de gerar competências e certificar qualificações aos jovens enquanto agentes de transformação.

Os jovens africanos hoje, apesar de todas as dificuldades estão cada vez mais cientes das dificuldades e das desigualdades das nossas sociedades, mas também melhor qualificados, criativos e empreendedores. Em termos produtivos, esta crise está a ensinar-nos que esta é a hora de investir efetivamente na soberania produtiva do continente, através da transformação local, da criação de redes de infraestruturas que permitam a mobilidade e livre circulação dos produtos e produtores de bens, serviços e capitais, criando deste modo mercados e oportunidades de empregos dignos e sustentadores da população.

Esta crise é igualmente uma oportunidade para diversificarmos as nossas economias, envolvendo a nossa diáspora, os artistas e académicos socialmente comprometidos, que se posicionam como filantropos no continente, capazes de desempenhar um papel crucial na mobilização dos recursos associados à promoção do bem -estar e que podem vir a constituir os agentes da emergência de um novo setor privado.

A crise ensinou-nos, sobretudo, que o mais importante é a aposta no investimento das pessoas, no desenvolvimento do nosso potencial enquanto sociedade de serviços capaz de assumir as suas responsabilidades. Que enquanto mais organizado na produção e na proteção do seu tecido socioeconômico e socioambiental, maiores são as possibilidades de resistência a crises e pandemias. E é essa que deve ser a missão do Estado, não promotor de violência, mas gerador de confiança.

Para isso, as crianças que vão nascer no pós-covid devem poder viver com as conquistas das lutas pela garantia das liberdades e direitos sociais, mas sem que lhes falte o direito à saúde, ao bem-estar e sobretudo o Estado que precisamos hoje mais que nunca para defender e promovera dignidade e a felicidade dos africanos.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Miguel de Barros Sociólogo, editor e investigador guineense. É co-fundador do Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral (CESAC) e membro do Conselho de Pesquisa para as Ciências Sociais em África (CODESRIA).

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