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Nord Stream 2: Entenda o que está por trás do gasoduto que une russos e alemães e incomoda os EUA e Ucrânia

Os Estados Unidos o desaprovam por acharem que o gasoduto torna os europeus mais dependentes da energia russa
Solange Reis
OPEU

Tradução:

O secretário de Estado Anthony Blinken avisou que o governo americano poderá voltar a aplicar sanções contra empresas envolvidas na construção do gasoduto Nord Stream 2. Em uma conferência de imprensa na sede da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em 25 de março, o diplomata disse que o alerta foi feito diretamente a Heiko Maas, ministro das Relações Externas da Alemanha.

Nord Stream 2 é um projeto euro-russo de US$ 11 bilhões que conecta as reservas da Rússia ao território alemão, de onde o gás será distribuído para abastecer a própria Alemanha e outros países da União Europeia (UE).

Os Estados Unidos o desaprovam por acharem que o gasoduto torna os europeus mais dependentes da energia russa e por prejudicar os países no Leste Europeu que hoje transportam gás russo para o continente.

Os Estados Unidos o desaprovam por acharem que o gasoduto torna os europeus mais dependentes da energia russa

Reprodução: Winkiemedia
Nord Stream 2 é um projeto euro-russo de US$ 11 bilhões que conecta as reservas da Rússia ao território alemão

A questão é delicada por opor os interesses geopolíticos e energéticos dos Estados Unidos aos da Alemanha, seu principal aliado na UE. Para o governo alemão, que conta com o apoio do setor empresarial nacional, o Nord Stream 2 é fundamental para sua segurança energética e a do bloco europeu na totalidade.

Gasoduto de união e discórdia

Como o nome indica, Nord Stream 2 é a segunda linha paralela de um gasoduto existente. O primeiro Nord Stream, inaugurado em 2011, tem capacidade para transportar 55 bilhões de metros cúbicos de gás por ano, volume que será dobrado com o segundo duto. Ambos ligam a Rússia diretamente à Alemanha pelo Mar Báltico e somam quase 2.500 km de transporte subaquático de gás. Trata-se do maior gasoduto desse tipo no mundo.

O Nord Stream 2 pertence à estatal russa Gazprom, mas a metade de seu financiamento vem de empresas europeias, como a francesa Engie, a austríaca OMV, a anglo-holandesa Shell e as alemães Uniper e Wintershall. Com cerca de 95% da construção concluída, a obra tem pleno apoio dos governos russo e alemão e de outros países na Europa, como Itália e Áustria. O objetivo comum é aumentar a segurança energética, garantindo tanto o fluxo de fornecimento como de consumo, sem interrupções geopolíticas, ou oscilações do mercado global de gás. O problema é que o gasoduto subtrai receitas econômicas e influência política de alguns países no Leste Europeu. Estes, a exemplo da Ucrânia, contam com os Estados Unidos para interromper o processo.

Russos versus ucranianos

Para as estatais russas, o gasoduto significará menos dependência da rede de distribuição construída pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), e recentemente pela Rússia, no Leste Europeu. Cerca de 40% do gás exportado para a Europa passa pela Ucrânia, que encontra nessa atividade sua principal fonte de renda. Outros países, como Belarus e Polônia, também transportam gás russo.

No último dia de 2019, Rússia e Ucrânia assinaram um acordo que garantiu o trânsito de 65 bilhões de metros cúbicos no ano de 2020 e 40 bilhões de metros cúbicos nos quatro anos seguintes. Em 2024, o Nord Stream 2 já deverá estar inaugurado, e as condições para uma eventual renegociação não serão favoráveis para a Ucrânia. O acordo também estabeleceu o pagamento de US$ 2,9 bilhões pela Rússia à Ucrânia como reparação por perdas financeiras relativas a antigas disputas comerciais. Nos anos 2000, os dois países se desentenderam algumas vezes sobre o preço do gás consumido pela Ucrânia e sobre o valor do que é transportado para o restante da Europa. Esses episódios ficaram conhecidos como “crises do gás” e, por duas vezes, tiveram consequências para diversos países europeus. Quer seja porque a Ucrânia desviou o gás destinado ao continente para seu próprio consumo, quer seja por interrupção do fornecimento pela Rússia.

As crises do gás serviram como incentivo para que Estados Unidos e União Europeia – ainda que sempre com alguma relutância da Alemanha – insistissem em institucionalizar seus interesses políticos e energéticos por meio de mais integração da Ucrânia com o bloco europeu ou, até mesmo, da privatização do mercado de energia ucraniano.

Em 2013, o então presidente ucraniano, Viktor Yanukovych, rejeitou uma proposta europeia para mais associação, o que levou aos protestos que geraram uma guerra civil e a anexação da Crimeia pela Rússia. A partir de então, Kiev e Moscou se distanciaram. Os sucessivos governos centrais ucranianos se alinharam cada vez mais com o Ocidente, enquanto a parte oriental da Ucrânia permaneceu aliada ao Kremlin. Devido a prioridades estratégicas e militares, a Ucrânia continua a ser uma área de influência, da qual a Rússia não abre mão. No que diz respeito à energia, no entanto, os russos preferem diversificar. Assim, o Nord Stream 2 é tão vital para a Rússia quanto fatal para a Ucrânia.

Segurança energética europeia

Mesmo que decorram parcialmente da interferência ocidental, essas turbulências geram uma percepção de vulnerabilidade energética na União Europeia. Porque os países europeus possuem matrizes energéticas diferentes entre si, nem todos veem a questão com a mesma gravidade.

Para a França, que obtém 70% de sua eletricidade de usinas nucleares, o gás russo tem relevância mais como fator político regional do que energético. Esse não é o caso da Alemanha, para a qual as importações de gás são fundamentais. Cerca de 94% do gás consumido no país vem de fora, exclusivamente através de gasodutos. A Rússia contribui hoje com cerca de 40% desse percentual, mas o fornecimento crescerá com o Nord Stream 2 e por causa da necessidade que a Alemanha tem, por lei, de mudar sua matriz energética.

Embora as bases conceituais dessa mudança remontem aos anos 1960/1970, as legislações objetivas para a Energiewende, nome popular de uma política que obriga a Alemanha a realizar a transição energética para um padrão de menos carbono, começaram no ano de 2000. Os prazos iniciais tiveram de ser postergados ao longo do tempo, mas hoje estabelecem o ano de 2022 para o fechamento de todas as usinas nucleares, e de 2038, para as termoelétricas a carvão. A Alemanha é um dos líderes mundiais em energia renovável, com instalações eólicas e solares cada vez maiores e extensivas, atendendo principalmente aos segmentos comercial e residencial. Mas a Energiewende ainda não pode prescindir do gás para abastecer tais setores e o industrial, este último particularmente intensivo em energia para a importante indústria metalúrgica e petroquímica alemã. É neste ponto que o Nord Stream 2 garante a segurança de fornecimento no longo prazo, o que significa que a política energética e a política externa da Alemanha são indissociáveis.

Sanções americanas

O receio regional na Europa é bem explorado politicamente pelos Estados Unidos, que sempre pretenderam diminuir a importância da Rússia como fornecedor de energia e a influência russa na Ucrânia. Não é segredo que diferentes governos americanos tentaram incluir a Ucrânia na OTAN e, com isso, avançar o posicionamento geopolítico da aliança militar ocidental. Para Moscou, tal projeção da OTAN é inaceitável.

Por volta de 2011, quando Joe Biden era vice-presidente, os Estados Unidos viram seus próprios interesses comerciais de energia ligados ao mercado europeu. Com o desenvolvimento das reservas domésticas de xisto, o país se tornou o principal produtor de gás e petróleo no mundo, seguido pela Rússia e pela Arábia Saudita, respectivamente. Por questões de desenho industrial, grande parte do gás de xisto não pode ser aproveitado pelas refinarias americanas e precisa ser exportado sob a forma liquefeita, agora com preços mais competitivos do que no passado. É aqui que os países europeus aparecem como potenciais consumidores, e a Rússia cresce no papel de rival.

Como as empresas americanas produtoras de gás de xisto detêm as patentes industriais, interessa ao governo americano exportar a tecnologia para que os europeus explorem suas próprias reservas de xisto. Essa estratégia faz sentido também pelo fato de que esse tipo de reserva se esgota mais rapidamente do que as convencionais, o que projeta preços altos no futuro. Por isso, a tendência é a de que, no longo prazo, o gás liquefeito exportado pelos EUA seja ainda menos competitivo frente ao russo do que atualmente.

Há, porém, uma dificuldade na venda da tecnologia para os europeus. Como o meio ambiente sofre muito mais com a produção em áreas de xisto do que nas convencionais, a maioria dos países europeus rejeita a exploração local. Além do excessivo consumo de água, o fraturamento da rocha implica o uso de componentes químicos que contaminam aquíferos e pode estar relacionado com abalos sísmicos. Um único poço pode demandar entre 1,5 milhão a 16 milhões de galões de água.

Sem conseguir convencer aliados decisivos como a Alemanha, a Casa Branca partiu para uma prática comum nos últimos tempos: sanções econômicas. Assim, desde 2017, os EUA aprovaram o uso de sanções contra empresas envolvidas no Nord Stream 2. A principal legislação é a Lei de Contenção da Influência Russa na Europa e Eurásia (The Countering Russian Influence in Europe and Eurasia Act of 2017). Essa legislação estabelece como política a oposição ao gasoduto para preservar a segurança energética da União Europeia, o mercado de gás na Europa Central e do Leste e as reformas de energia na Ucrânia. Permite sanções contra empresas que investirem pelo menos US$ 1 milhão no gasoduto, ou um total de US$ 5 milhões em 12 meses, ou fornecerem bens, serviços, ou assistência em valores equivalentes.

A Lei de Proteção da Segurança de Energia da Europa (Protecting Europe’s Energy Security Act of 2019), emendada em 2020, autoriza penalidades contra indivíduos estrangeiros que facilitem o uso de navios para a construção do Nord Stream 2, do TurkStream, ou de qualquer trecho subsequente desses dutos.

O TurkStream foi inaugurado em 2020, ligando a Turquia à Rússia pelo Mar Negro. Segundo a consultoria Platts, cujas publicações servem como manual para muitos investidores, o TurkStream não tem como objetivo tornar os países menos dependentes da energia russa, mas sim do trânsito ucraniano. Esse projeto da Gazprom envolve outros países europeus, como Bulgária, Sérvia, Grécia, cujas funções são distribuir o gás no continente. A inclusão desses países se deve ao fato de que as leis europeias antimonopólios proíbem que fornecedores de energia também sejam distribuidores.

No caso do Nord Stream 2, a ameaça de sanção funcionou temporariamente. Durante quase todo ano de 2020, a construção foi interrompida quando faltavam apenas 100 km para sua conclusão. A obra foi retomada em dezembro de 2020, levando o governo Trump a penalizar a empresa russa KVT-RUS, única punida até agora por usar o navio Fortuna naquele trecho final.

Toma-lá-dá-cá

Em 2014, Biden teve um papel decisivo na desestabilização do governo pró-russo na Ucrânia. Logo em seguida, sem qualquer experiência no ramo de energia, seu filho Hunter Biden obteve um cargo no conselho executivo de uma empresa privada de gás na Ucrânia.

Donald Trump chegou a tentar pressionar o governo ucraniano a fornecer provas de que pai e filho teriam obtido vantagens particulares quando Joe Biden era vice-presidente. A tentativa frustrada do republicano levou a Câmara a aprovar o impeachment de Trump por conluio com um governo estrangeiro para interferir na política doméstica americana. O Senado acabou absolvendo o republicano, deixando-o livre para depois perder a disputa eleitoral de 2020 contra Biden.

O democrata tomou posse como novo presidente no dia seguinte à implementação da penalidade contra o navio Fortuna, herdando um dilema crítico. Em breve, Biden deverá decidir se aprofunda as sanções para interromper novamente o gasoduto, sob o risco de comprometer as relações com a Alemanha, já muito desgastadas no governo Trump. Senão, o gasoduto será finalizado por volta de outubro próximo, e Biden entrará para a história como o presidente que entregou o mercado de energia europeu de bandeja aos russos. Além disso, será visto como traidor pelos “novos guerreiros frios”, ou países do Leste Europeu que ainda antagonizam frontalmente com a Rússia.

As pressões para que o presidente aplique novas sanções vem de todos os lados. A mais recente partiu do Partido Democrata, com a carta enviada por dois importantes senadores ao secretário Blinken. Bob Menendez, presidente do influente Comitê de Relações Externas, e Jeanne Shaheen, que preside o painel do subcomitê da Europa, pediram que o pacote de sanções seja aplicado o mais rápido possível.

Legalmente, a cada 90 dias, o governo americano precisa informar o Congresso sobre violações das sanções por parte de empresas ligadas ao Nord Stream 2. O próximo relatório deve ser apresentado em maio, mas a decisão da Casa Branca ainda é uma incógnita.

Seguindo o estilo retórico de Trump, Biden disse que o projeto Nord Stream 2 é um “mau negócio” para a Europa. Mas como interromper uma construção que está praticamente concluída e é prioridade para seu maior aliado na União Europeia?

A resposta pode estar no retorno à diplomacia prometida pelo democrata. Segundo analistas, a Alemanha estaria negociando concessões aos Estados Unidos em troca da liberação do gasoduto. As cartas na mesa incluiriam, entre outros, investimentos conjuntos em energia na Europa Central e no Leste Europeu, a construção de terminais de gás liquefeito no litoral alemão e um posicionamento mais anti-China. Para Biden, significaria não ficar de mãos vazias diante do fato consumado que é o gasoduto.

Sobre a Alemanha, há um detalhe curioso. Se o suposto “toma-lá-dá-cá” entre alemães e americanos se confirmar, o Nord Stream 2 entrará em funcionamento na mesma época que terminará o longo período de Angela Merkel como líder política e a pouco mais de um ano da desativação das usinas nucleares no país.

O nome de Merkel está ligado diretamente aos sucessos e retrocessos da Energiewende. Quando ainda era ministra do Meio Ambiente, nos anos 1990, fomentou políticas para reduzir a emissão de gases de efeito estufa. Nos primeiros tempos à frente do governo, projetou a campanha internacional pelo combate à mudança climática. Na década de 2000, deu alguns passos atrás, postergando o fechamento das usinas nucleares e hesitando em banir o uso de carvão. Mas a eleição de Trump, que retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris, e o aumento da conscientização climática no mundo a tornaram novamente uma ativista do clima.

A chanceler também foi a liderança alemã que melhor navegou pelas águas da rivalidade entre Rússia e Estados Unidos, os dois principais parceiros extracomunitários da Alemanha. Se tudo acontecer como previsto pela Alemanha, Merkel sai de cena concluindo dois grandes projetos, Nord Stream e Energiewende, e ainda deixa para seu sucessor uma relação transatlântica renovada.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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