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África: O que Rússia, França e o urânio têm a ver com o golpe militar no Níger?

Manifestantes nigerenses protestaram diante da embaixada francesa com slogans anti-França e a favor de Putin e da Rússia
Vanessa Martina-Silva
Diálogos do Sul
Jundiaí (SP)

Tradução:

Um espectro ronda a África — o espectro do anticolonialismo. 

Impulsionados por uma espécie de novo movimento anti-colonialista, países do Sahel africano (região entre o Saara, ao Norte, e as savanas, ao Sul) têm vivenciado levantes militares nacionalistas. O último caso é o do Níger, que logo após a tomada do poder por uma junta militar suspendeu a venda de urânio e ouro para a França. Antes, Burkina Faso e Mali também se alçaram.

Todas as atenções se voltaram então para a Rússia, prontamente acusada pela Ucrânia de estar por trás do golpe. Uma nítida sugestão de que os nigerinos não conseguiriam pensar por conta própria. O próprio porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Kirby, disse não existir evidência que relacione a Rússia ao ocorrido. 

Indício de que o movimento no Níger não é fato isolado vem do discurso proferido pelo presidente de Burkina Faso, Ibrahim Traoré, durante a 2ª Cúpula África-Rússia, realizada em São Petersburgo. Na ocasião, o líder africano disse:

“Hoje nos deparamos com as formas mais bárbaras e violentas de neocolonialismo e imperialismo; a escravidão ainda prevalece. Nossos antecessores nos ensinaram que o escravo que não é capaz de assumir sua rebelião merece viver em seu lamento”.

Documento no qual o Exército declara apoio ao golpe militar

Independente desde 1960, o Níger se tornou colônia francesa em 1897 e, desde então, vive sob a influência direta ou indireta de Paris. Quando, na última quarta-feira (26), um grupo de militares prendeu Mohamed Bazoum no Palácio presidencial e anunciou o golpe de Estado, o que quase ninguém poderia imaginar é que, posteriormente, a população tomaria as ruas da capital Niamey agitando bandeiras russas e queimando as francesas.

Leia também: Após sair do acordo com Ucrânia, Putin vai fornecer grãos de graça a países da África

Chegou a diversas partes do mundo as imagens da população furiosa diante da embaixada da França. A manifestação, realizada no domingo (30)em apoio ao golpe de Estado, foi convocada pelo Movimento M62, que se define como nacionalista, a favor da democracia e é formado por sindicatos e movimentos populares. 

Não se trata, porém, de uma reação recente. Reportagem da Rádio França Internacional registrou que um ato do M62, em setembro do ano passado, pedia a saída das tropas francesas da força Barkhane do país. Naquele momento, manifestantes gritavam slogans como “Fora Barkhane“, “abaixo a França” e “viva Putin e a Rússia”. Mobilizações similares já haviam sido realizadas em agosto.

Manifestantes nigerenses protestaram diante da embaixada francesa com slogans anti-França e a favor de Putin e da Rússia

Fotos: JP+ Espanhol/Faces Of The World/Presidência do Níger/Kremlin
Protestos intensos em frente à embaixada francesa em Niamey, capital do Níger (abaixo: Emmanuel Macron, Mohamed Bazoum e Vladimir Putin)

Em entrevista concedida ao jornalista italiano e africanista Matteo Giusti, Abdourhamane Ide, um dos líderes do M62, destaca que a presença francesa no Níger se restringiu à exploração e, por isso, apoia amplamente o golpe e a saída das forças militares estrangeiras do país, a serviço de Paris e Washington. 

O nigerense diz estar de acordo com o caminho tomado por Burkina Faso e Mali que, recentemente, expulsaram os soldados franceses e abriram espaço para os russos. Paris apenas fingiu lutar contra o jihadismo [em referência ao Boko Haram]que foi usado como desculpa para colocar bases militares aqui e explorar nossas riquezas. Com Moscou podemos trabalhar de forma diferente, acabou o tempo dos franceses na África”disse Ide. 

Cabe destacar a posição do general Abdurahaman Tchiani logo após tomar o poder. Com larga experiência militar, ele questionou a decisão de excluir as cooperações com Mali e Burkina Faso, apesar de os países compartilharem a zona de Liptako, “onde estão a maioria dos terroristas e onde se concentram todos os combates”.

É preciso destacar que, desde 2009, o grupo terrorista Boko Haram — que ganhou notoriedade internacional pelo sequestro de meninas em idade escolar para serem escravizadas sexualmente na Nigéria — atua no Níger. Estados Unidos e França destinaram, desde então, bilhões de dólares para combater o grupo, sem sucesso.

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Em visita ao Níger em março deste ano, o secretário de Estado Antony Blinken anunciou 150 milhões de dólares e assistência militar para a região do Sahel africano. Atualmente, cerca de mil soldados estadunidenses atuam no país considerado “modelo de democracia” e de cooperação.  

O Níger e o presidente Bazoum eram considerados aliados estratégicos para o Ocidente e um “freio” à onda de golpes na África Ocidental, servindo como base para operações militares internacionais. Recentemente, 15 mil soldados da ONU foram expulsos do país.

Leia também: África: Para deter China e Rússia, Otan agora leva suas sombras às areias do Sahel

Enquanto o mundo ocidental promete apoio a Bazoum e cogita agir para além de sanções econômicas e retirada da ajuda internacional recebida pelo país, Mali e Burkina Faso declaram apoio inegociável com o Níger dentro da lógica panafricanista e consideram que qualquer agressão ao país será uma declaração de guerra contra eles.

O mais afetado pelos acontecimentos no Níger, porém, é o imperialismo francês. Além da perda de influência política, o país ainda pode sentir o impacto econômico, já que parte significativa do urânio usado para gerar eletricidade em solo francês é proveniente do Níger, que detém 5% das reservas mundiais. 

Se seguir o caminho de próceres africanos como Thomas Sankara, o Níger e os demais insurgentes do Sahel buscarão reverter suas riquezas nacionais para o bem-estar de suas populações em um processo de segunda independência, de nova descolonização e se tornarão, uma vez mais, matriz de pensamento e formulação política para outros povos e continentes.

Vanessa Martina-Silva | Jornalista, analista política e editora da Diálogos do Sul.

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Vanessa Martina-Silva Trabalha há mais de dez anos com produção diária de conteúdo, sendo sete para portais na internet e um em comunicação corporativa, além de frilas para revistas. Vem construindo carreira em veículos independentes, por acreditar na função social do jornalismo e no seu papel transformador, em contraposição à notícia-mercadoria. Fez coberturas internacionais, incluindo: Primárias na Argentina (2011), pós-golpe no Paraguai (2012), Eleições na Venezuela (com Hugo Chávez (2012) e Nicolás Maduro (2013)); implementação da Lei de Meios na Argentina (2012); eleições argentinas no primeiro e segundo turnos (2015).

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