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“Não é a primeira vez que profetizam nosso fim; enterramos os profetas”, diz Ailton Krenak

Liderança histórica dos povos indígenas, o escritor, jornalista e ambientalista lança o livro “Ideias para adiar o fim do mundo”
Elaíze Farias
Amazônia Real
Manaus

Tradução:

Ailton Krenak é um dos mais importantes líderes indígenas do Brasil e lançou recentemente “Ideias para adiar o fim do mundo” (Companhia das Letras). O livro é uma compilação de palestras que realizou em Portugal, país que até então resistia em visitar pelo histórico colonizador contra os povos originários do Brasil. São análises da vida, da Humanidade, da história de destruição dos povos indígenas e de povos que resistiram. É também uma poesia dedicada a seu povo, que habita a margem do rio Doce – os Krenak preferem chamar o Doce de Watu, “o nosso avô”.

O líder indígena também se mostra preocupado com os rumos que o País está tomando. Sem citar uma única vez o nome de Jair Bolsonaro, o líder indígena afirma, em entrevista exclusiva à Amazônia Real, que a ameaça aos povos originários é real e assustadora.

“Talvez na História recente do Brasil, o povo indígena não tenha sofrido um ataque tão sistemático como está acontecendo nesse período, com este governo. Porque tem declarações dos agentes públicos que incentivam a violência contra a pessoa indígena”, afirmou Krenak.

Para Krenak, hoje com 66 anos, os povos indígenas nunca estiveram tão ameaçados. Quem fala é o mesmo constituinte que, em 1987, subiu ao Plenário da Câmara Federal e pintou o rosto com tinta de jenipapo para pressionar os parlamentares a votarem pela inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988. Foi graças à força desse gesto, cujas imagens percorreram o mundo, que um capítulo sobre a proteção dos direitos dos povos originários do país foi incluído na Carta Magna.

Fazia 12 anos que Krenak não vinha à Manaus; a última, foi para participar de uma oficina de formação de jovens indígenas promovida pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). No lançamento do livro em Manaus, uma sessão de autógrafos foi realizada na área externa da Banca do Largo, no Centro da capital, ao lado do Teatro Amazonas. Em cada exemplar autografado, como tem sido seu hábito, ele desenhava árvores, malocas e flores junto de sua assinatura. Ele também deu uma palestra, encantando plateia com sua extraordinária eloquência e pensamentos filosóficos e transcendentais. Quando acabou, Ailton permaneceu no Largo São Sebastião. Já se aproximava da meia-noite e ele continuava interagindo, compartilhando seus pensamentos com um pequeno grupo que permaneceu no local, fazendo breves comentários enquanto dava autógrafos.

Liderança histórica dos povos indígenas, o escritor, jornalista e  ambientalista lança o livro “Ideias para adiar o fim do mundo”

Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real
Para Krenak, hoje com 66 anos, os povos indígenas nunca estiveram tão ameaçados

Não é fácil extrair uma resposta simples de Ailton, embora elas sejam ditas com muita precisão. Para cada questão, ele não para de lançar dúvidas sobre a humanidade e a questionar a força e a capacidade destrutiva do capitalismo nas populações mais vulneráveis, nas florestas e nos rios. Mas suas palavras também ajudam a amortecer o pessimismo. Para o líder indígena, o equilíbrio cotidiano e as ocupações diárias e de rotina é que ajudarão a humanidade, especialmente as que estão em permanente alvo de ataque, a sobreviverem e a ter estabilidade.

Ailton Krenak no lançamento do livro “Ideias para adiar o fim do mundo” na Banca do Largo, em Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real) 

Nos últimos meses, Ailton Krenak tem viajado por várias cidades brasileiras. Uma maratona que ainda não acabou. À Amazônia Real, ele concedeu entrevista em dois momentos: um, na Banca do Largo, mantido pelo historiador Joaquim Melo, idealizador e organizador da vinda de Krenak a Manaus; outro, no Bahserikowi´í – Centro de Medicina Indígena, mantido por indígenas do povo Tukano (Alto Rio Negro), onde ele conheceu o Kumu (pajé) Manoel Lima.

Leia a entrevista:

Amazônia Real – Estamos em um período muito hostil contra os povos indígenas. Não apenas como política de Estado de um governo anti-indígena, mas de pessoas comuns, que atacam em diferentes espaços. Como você analisa essa situação?

Ailton Krenak – Talvez na história recente do Brasil, o povo indígena não tenha sofrido um ataque tão sistemático como nesse período, com este governo. Porque tem declaração dos agentes públicos que incentiva a violência contra a pessoa indígena. Antes, essa violência era dirigida ao território, era como uma disputa por recursos. A situação piorou muito quando começou a vir declaração de racismo contra indígenas. A gente não tinha uma história declarada como racismo no povo indígena. Não a ponto de justificar violência dirigida contra a pessoa, de uma maneira descarada. Isso ficou exagerado com a decisão do Executivo do governo brasileiro de ter um discurso violento e racista contra o povo indígena em geral. A identidade indígena está sendo ameaçada. Se autodeclarar indígena é se expor à violência e virar alvo das piadas de mau gosto, do preconceito explícito e da violência física.

Como chegamos nessa situação tão grave?

Antes se botava fogo na maloca ou matava um coletivo inteiro, mas isso não era nem notícia. Nos seringais antigos as pessoas sumiam; a notícia não saía nem no jornal do seringal. Nas pequenas vilas, nos primeiros assentamentos que estavam começando a colonizar na Amazônia, os madeireiros e os caçadores invadiam, botavam fogo e pronto. Hoje, temos comunidades indígenas de Norte a Sul do País interagindo e em uma rede ativa de informação e mobilização. Nós aumentamos nossa capacidade de resistir e mobilizar e estamos mais capacitados para enfrentar isso do que no passado. Assim, fica parecendo uma contradição, porque você vai dizer: “Não piorou?” E eu vou te dizer: “Não, não piorou”. Estaria pior se a gente não tivesse conseguido se apropriar desses meios de comunicação que os brancos sempre dominaram. Então, antes da gente constituir uma narrativa, a gente teve que constituir uma tecnologia dos brancos. Eu lembro que há 30 anos o que as nossas aldeias tinham eram rádios-comunitárias e o rádio era um veículo sujeito a todo tipo de barreira. De ficar sem sinal, sem comunicação; às vezes uma semana ou um mês inteiro esperando ir lá um técnico trocar uma bateria, ou algo do tipo. Hoje, a velocidade com que um evento sai de um lugar e chega a algum outro lugar do mundo… quando alguém chega comigo e fala: “Ah! um lugar remoto da Amazônia”. Eu falo: “Remoto para você, porque para quem vive lá, quem está remoto é você”.

Eu acho que piorou muito o tratamento geral que o Estado e o governo dão para o povo indígena. É genocida, hostil no mundo inteiro. Agora, nós não podemos viver o dia a dia da gente pressionados com isso. Nas nossas comunidades têm que viver o dia-a-dia com nossas vidas; e esses governos vêm e vão, mas passam, como uma enchente.

Como é possível enfrentar, que estratégias e quais ferramentas usar para não sucumbir?

Nós estamos vivendo uma enchente, bem podre; depois ela vai passar. Isso por várias experiências que os nossos antepassados passaram. Eu vejo sempre os jovens falando sobre os ancestrais. Não é uma mitologia. Eles (os jovens) são uma continuação da relação com nossos antepassados, com as tecnologias e os conhecimentos deles para a gente viver melhor hoje. Aqui, neste Centro de Medicina Indígena, estamos vivendo uma situação que está se aplicando conhecimento antigo, tradicional, com tecnologia atual e avançando na experiência de intercâmbio com outras culturas do mundo. A medicina indígena tem essa ligação ancestral e atual que pode ser oferecida no meio de outras clínicas na cidade. Essa experiência é um ótimo exemplo do que nós estamos falando em relação à resistência. Resistir não significa exatamente fazer um protesto na rua ou sair e enfrentar a polícia. Significa, no nosso cotidiano, fazermos o que sabemos fazer, na nossa melhor maneira e de forma satisfatória para nossas famílias.

Há um sentimento muito explícito, hoje, de agressão aos povos indígenas que não vem apenas do agente público. Muitos estão se sentindo à vontade para atacar os indígenas e demais grupos sociais de minorias. O que acha?

Até a Constituinte de 1988, toda perspectiva do Estado brasileiro, todos os agentes públicos, o pessoal da Sudam, do Banco da Amazônia, do Ministério do Interior, todos eles achavam que os índios iam acabar. Igual passarinho ou espécie em extinção, o boto, as garças. Eles naturalizaram o nosso desaparecimento. Isso estava no cinema, nos filmes deles. Como a gente continuou aparecendo, a primeira reação deles foi de admiração: “Nossa, como esses homens estão vivos!”. Tem até uma literatura sobre isso. Se você olhar na década de 90, começa a ter uma literatura assim, simpática, quase que fazendo um elogio pelos índios estarem vivos. Quando nós tomamos a palavra e começamos a dizer por que estamos vivos, nós fomos ganhando visibilidade e novos meios que até então eram exclusivamente controlados pelos brancos – inclusive, acessar o sistema financeiro, ter contas nos bancos, começar negócios, ser pessoas jurídicas, ir a universidades, criar empreendimentos próprios, aí o pessoal pensou: “Espera aí, mas índio não pode fazer isso!”

Eles começaram com aquelas piadas com índio usando relógio ou calças jeans, ou tendo um carro, ou uma caminhonete. Quer dizer, a gente não podia ter nada porque a gente não existia. Então, a partir do momento que a gente começou a competir com os brancos, mudou: onde tem fazenda nós estamos concorrendo com os fazendeiros; onde tem garimpo estamos concorrendo com garimpo e madeireira. Começamos a ser concorrentes, e com isso nos tornamos inimigos. E o discurso de ódio, preconceito e racismo se apoia nesse tipo de mentira. Na verdade, o que está em questão não é a cor da sua pele, não é a sua raça, ou origem. A questão é que você está tentando ter o mesmo peixe que eu estou pegando. E se você vier pegar o mesmo peixe que eu, vou brigar com você. É simples desse jeito, não sei porque as pessoas não entendem isso. É como se nós tivéssemos que pedir licença para pescar no mesmo lugar que nós sempre pescamos e sempre vivemos lá.

Agora chega um estranho e diz que não podemos ficar aqui, que é o fato de estarem dizendo que o povo indígena dentro da floresta está atrapalhando. Quer dizer, há milhares de anos esses povos viveram dentro da floresta. De ontem para cá começaram a atrapalhar. Tem alguma coisa errada na conta. Quem está atrapalhando não é quem já estava aqui, é quem chegou aqui, chegou outro dia e quer dominar tudo. É uma questão muito prática. É uma disputa de território, uma disputa de recursos naturais e os povos indígenas estão como sempre estiveram: nos últimos redutos onde a natureza ainda tem prosperidade. Então vão querer tirar o povo desse lugar de prosperidade e jogar em um de pobreza? Produzem sentimento de que eles não valem nada, mas é porque o povo indígena hoje tem voz.

Ailton Krenak assina exemplar de seu “Ideias para adiar o fim do mundo”, em Manaus. (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Que outras propostas sugere para que as pessoas mais impactadas não fiquem deprimidas, abaladas, que encontrem força para resistir?

Eu acho que todo mundo está fazendo alguma coisa, mas acho que o mais importante é o cotidiano, as pessoas viverem suas vidas nas suas famílias, nos seus territórios, fazendo suas coisas, fazendo sua vida. E não ficar retido por esse terrorismo racista que acabou promovendo uma situação em que instituições brasileiras entraram com uma reclamação no tribunal internacional pedindo a condenação do presidente da República por crime de lesa humanidade. Então, não é o povo indígena que está resistindo sozinho. Se antes eu tinha dúvidas sobre como os brancos iriam resistir, eu digo que agora finalmente eles estão despertando.

É mais ou menos como você está fazendo, divulgando seu livro, conversando com as pessoas, participando de atividades… Como tem sido sua rotina de viagens por causa do livro?

Eu imagino que tenha feito uma média de três viagens por mês para diferentes lugares, desde Recife, Salvador, a Porto Alegre, sul; norte; sudeste; nordeste. Eu estive em Boa Vista (RR) esse ano, demorei muito para estar aqui em Manaus, mas estou aqui. É uma situação muito favorável de distribuir o livro “Ideias para Adiar o Fim do Mundo” em universidades, no Sesc ou em vários lugares, como em Bienal de livros, feiras. O livro dinamizou a minha circulação pelo Brasil no segundo semestre, mas no começo do ano (2019) eu tinha participado em São Paulo do Abril Indígena que aconteceu em vários municípios, não só na capital federal. Então eu acho que assim como outros atores, escritores, cineastas, os artistas indígenas estão ativos em vários lugares, dentro e fora do Brasil. O Festival de Música Indígena [realizado em novembro de 2019] estreou com o nosso queridíssimo Anapuaká Tupinambá. Eles foram corajosos, e fizeram o festival. E isso é um exemplo de vitalidade que ajuda na resistência cultural e na afirmação de novas gerações, porque um festival de música chama muitos jovens, e como era um evento grande, entra em contato com a música indígena. Isso é resistência.

Que fim de mundo estamos vivendo e como tentar adiar?

O ano de 2019 abriu uma espécie de série de frestas, janelas de contato com outras percepções que estão deixando a maioria das pessoas com essa sensação de fim de mundo. Tem gente muito maldosa que explora essa crendice das pessoas no fim do mundo, de uma maneira útil para eles. Tem muitas possibilidades de uso dessa subjetividade que nós somos capazes de alimentar e produzir ela prosperamente. Assim como uma linda árvore grande que enche de sementes e espalha mensagens para todo lado, essa subjetividade oprimida, recalcada, que fica sendo repetida pelo capitalismo, pelo desejo, criando fúria e uma espécie de divindade que é o dinheiro, o capital virou um deus. Tem um filósofo, se não me engano italiano, que teria dito recentemente: “Deus não morreu, Deus ressuscitou na forma do capitalismo, é a religião do mundo”. A calamidade do mundo é o capital, o capital pode tudo, não tem moral, não tem fronteira. Ele devora tudo, está devorando o planeta. Tem tanta realidade em dizer que isso está devorando o planeta quanto você olhar um rio que passa na minha aldeia que era um rio (rio Doce, em Minas Gerais) que tinha água, peixe, comida, espiritualidade, mensagem. Tanto que cantávamos uma música indígena para o rio, que dizíamos ser o nosso avô. Ela deveria ser reverenciada como alguma coisa que não pode ser atropelada pela mineração, por um capitalismo totalmente autoritário que sai destruindo tudo.

Como você pensa e observa a civilização ocidental?

Tem gente que chama isso de necrocapitalismo, que é essa civilização moderna. As pessoas estão muito acostumadas com esse mundo do trabalho e do dinheiro, mas é o trabalho como algo automático. São pessoas robotizadas, na verdade, são pessoas zumbizadas, porque para ela ser robotizada teria que ter alguma inteligência controlando elas. Como o que controlam eles é a morte, então estão necrosados. Como eles não têm desejo, também não têm existência. Tem uma qualidade também que alivia um pouco a nossa dor, que é a virtual. Eu falei que o envenenamento da camada superficial do solo transformando nossa terra, nossas águas, essas coisas todas, para o senso comum, é uma novela, é um filme, é virtual, é uma imagem. A subjetividade dessas pessoas foi invadida por esse mundo de ilusão das telas, e de uma constante emissão de ordem nas mensagens. As mensagens são ordens para você comprar, consumir, beber, se drogar, fazer alguma coisa para sair do normal, porque ninguém aguenta ser normal.

O líder indígena Aílton Krenak na Banca do Largo em Manaus
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Crise climática, doenças, desmatamento, você acha que somos nós, humanidade, que vamos destruir o mundo?

Em primeiro lugar não tem uma Humanidade. Isso é uma ficção, mas eu deixo equiparar o termo dessa gente que está aí com Humanidade, essa gente que está aí e não está nem aí. Se o céu cair sobre a Terra e arrebentar tudo, eles vão fazer um negócio com isso. Tem uma coisa que eu chamei de “ecologia do desastre”. Ainda não cheguei a desenvolver muito o sistema, mas é basicamente o seguinte: você cria uma situação para desestabilizar a vida. As pessoas que vivem naquele lugar, os seres vivos, se descolam todos da paisagem, fica um lugar deserto, inabitável; alguém chega e transforma aquele lugar inabitável em um empreendimento, em um negócio, e o negócio dele é socorrer as pessoas inabitáveis. Dando infraestrutura, construindo estradas, dando habitações. É assim que o capitalismo está comendo o mundo, come montanhas; come florestas; come rios. Ele não é uma entidade sobrenatural. Ele é formado por gente, um monte de pessoas, jovens, inclusive, muitos jovens de 20, 30 anos de idade loucos para ficarem ricos, fazendo suas empresas, seus CNPJ, a ponto de cada pessoa virar uma empresa dele mesmo. Então você terá milhões de caras que se acham empresários, assim como tem um bando de miseráveis que acham que são ricos e ficam sacaneando outros mais pobres do que eles só porque acham que saíram de uma espécie de “zona de perigo”: isso é a classe média.

Então não é possível a escapar dessa “civilização”?

Olha, eu não sou um propagandista da civilização. Aliás, quando perguntaram ao Gandhi o que ele achava da civilização ocidental, ele disse: “Seria uma boa ideia”. Se o Gandhi disse que seria uma boa ideia se existisse uma civilização ocidental, eu diria em boa companhia a mesma coisa que ele. O prejuízo disso que nós chamamos de Humanidade foi exatamente o de ter se espalhado pela face da Terra, de maneira desorganizada, a ponto de a gente ter uma explosão demográfica no planeta que ninguém segura. Nós estamos vivendo em uma nova colonização, mas ela não precisará de colonos, nós estamos todos dispensados.

O Brasil é totalmente subordinado na rabeta de tudo. É uma imitação. Quando não existe memória, quando não existe história, cultura, o povo vira zumbi, ele fica à deriva. Então ele se move de acordo com as dinâmicas globais. O professor Milton Santos (1926-2001) dizia que a gente tinha inúmeras globalizações, e que cada uma encaixa na outra, e que elas iam só se complicar, e as pequenas nações iriam ser trituradas. Então, no final das contas quem vai pagar a conta mesmo são os povos que vivem nas bordas dos planetas. Eles vão ser jogados igual pulga no lombo de um cachorro.

É possível que este mundo, como ele é, acabe. Não no sentido messiânico, mas no sentido de ruptura com este modo de viver?

Tem um homem, um índio que vive nos Estados Unidos, ele falou que quando tiver acontecido uma espécie de catástrofe planetária, onde não tiver sobrado ninguém, provavelmente nas cabeceiras dos Andes ou em alguma montanha rochosa, vai ter uma pequena mostra de gente que sabe viver da terra, que tanto sabe que foi ficar em um lugar menos tumultuado do planeta. Os outros são os outros, e aí o pau vai quebrar para todo lado nos continentes todos. Se chama Russel Means (1939-2012), ele é Sioux Lakota. Ele era uma pessoa muito politizada, mas largou essa coisa de política, do mundo dos brancos e voltou para o povo dele para virar um medicine man, um pajé. E ele não foi para academia ou coisas atraentes que chamam as atenções dos velhos e jovens hoje em dia, porque mexe muito com a vaidade das pessoas. Aparentemente os professores, os pesquisadores, a universidade é um lugar ocupado por espíritos desinteressados e desocupados. Isso é uma tremenda hipocrisia. Eles são ocupados por gente que faz política o tempo inteiro e disputa o campo narrativo o tempo inteiro de quem conta a história do mundo.

Ailton Krenak fala para público que foi ao Largo São Sebastião, no centro de Manaus
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Voltando a falar dos ataques sistemáticos que vivenciamos hoje no país. Você acha que há ameaça de dizimação de grupos indígenas, pelo menos os mais vulneráveis, ou os em isolamento voluntário?

Você se lembra daquela frase: “Há 500 anos nós resistimos a todo tipo de guerra, de aniquilação, de genocídio? A minha preocupação era de que se os brancos iriam resistir também, se iriam ser capaz de resistir”. Vamos mudar aquela frase? Desde que essa floresta maravilhosa começou a se moldar desse jeito, com essa imensidão que ela tem, ela foi coproduzida por essa gente que você está preocupada com o destino deles. Agora tem algumas profecias dizendo que essa floresta inteira vai acabar, e que esses povos que sempre viveram dela, dentro dela, também vão. Não é a primeira vez que profetizam nosso fim, já assistimos a várias profecias. Enterramos todos os profetas.

Então é possível adiar ou evitar o fim?

Deixa-me falar uma coisa que tem mais sentido e mais lógica. Nenhuma história antiga nossa, nenhuma, admite que a gente vai acabar. Nós temos uma narrativa que é cósmica, uma cosmogonia, nós não estamos aqui. Você já escutou a história sobre nossos parentes Guarani sobre a terra sem males? Talvez você já tenha escutado a história do povo Yanomami sobre as duas sucessivas quedas do céu que aconteceram e uma eventual terceira que pode vir. Em todas essas narrativas, o que nossos ancestrais estão dizendo é: “Nós nunca vamos acabar. Nós viemos de outro lugar, nós estamos na Terra e nós tivemos um surgimento na Terra tão cósmico, formado por essa origem cósmica, que nós nos confundimos com a Terra, de que estamos em um estado emocional com ela”. Por que a gente reage quando saem por aí depredando a Terra? Por isso que nossos parentes antigos morriam, brigavam, não tinham medo, até hoje eles não têm medo. O tempo dessa pressão, dessa violência, é cíclico, acontece agora, mas já aconteceu em outra época também.

O líder indígena Ailton Krenak com Vanda Witoto no lançamento do livro “Ideias para adiar o fim do mundo” na Banca do Largo, em Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real) 

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Elaíze Farias

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