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Não foram as fake news nem a fraude eleitoral: o que levou Steve Bannon à prisão nos EUA?

Ex-estrategista de Donald Trump é acusado de fraude na We Build the Wall; direitista deixou a prisão após o pagamento de fiança de US$ 5 bilhões
Rúbia Marcussi Pontes
OPEU
Campinas (SP)

Tradução:

Stephen K. Bannon, mais conhecido como Steve Bannon, ou o grande ex-estrategista da campanha eleitoral de 2016 de Donald Trump, foi preso na manhã de 20 de agosto nos Estados Unidos. Também foram detidos outros três de seus sócios, Brian Kolgafe, Andrew Badolato e Timothy Shea, sob acusações de fraude de mais de US$ 25 milhões na iniciativa de on-line crowdfunding da We Build the Wall (“Nós Construímos o Muro”), da qual todos fazem parte, e por conspiração para lavagem de dinheiro. Separadamente, os crimes podem levar a sentenças de até 20 anos de prisão.

O indiciamento se tornou público com anúncio da Procuradoria de Nova York, nas figuras de Audrey Strauss, promotora do Southern District of New York, e Philip Bartlett, inspetor do New York Field Office of the United States Postal Inspection Services (USPIS).

Segundo Strauss, Bannon e os outros três acusados mentiram para milhares de contribuidores da iniciativa ao “capitalizaram em seu interesse”, dizendo, falsamente, que “todo aquele dinheiro [do crowdfunding] seria usado para a construção do muro” que separaria os Estados Unidos do México – uma promessa também feita pela campanha de Donald Trump.

A prisão de Bannon foi realizada em uma operação conjunta, envolvendo agentes da Guarda Federal estadunidense e do USPIS, e o caso foi designado à juíza Analisa Torres, também do Southern District of New York. Bannon foi encontrado na costa de Connecticut, em um iate de mais de US$ 35 milhões, o qual pertence a Guo Wengui, exilado chinês nos Estados Unidos. Kolfage e Badolato foram presos na Flórida, e Shea, em Denver.

Ex-estrategista de Donald Trump é acusado de fraude na We Build the Wall; direitista deixou a prisão após o pagamento de fiança de US$ 5 bilhões

Crédito: Mark Kauzlarich
Bannon (centro) deixa o prédio da Justiça federal em Nova York, em 20 ago. 2020

Laços entre We Build the Wall, Bannon e Trump

A We Build the Wall, Inc é descrita como uma organização não-governamental, sem fins lucrativos e com um propósito (advocacy) claro: a construção de partes do muro na fronteira entre os Estados Unidos e o México. Seus fundos provêm de doações, e é possível até mesmo “comprar” um tijolo, que terá o nome do doador gravado, para que ele faça parte simbolicamente da construção do muro, por “apenas” US$ 100.

A ideia da iniciativa é, evidentemente, valorizar a construção de algo “com as próprias mãos”, face à percepção de inatividade do Estado na questão migratória, principalmente em propriedades privadas que são usadas para a travessia de imigrantes na fronteira.

Nesse sentido, o primeiro projeto da We Build the Wall foi a construção de em torno de 1,6 quilômetro (1 milha (1,61 km)) de muro em uma propriedade particular em El Paso, no Texas, em junho de 2019. Outro projeto estaria sendo planejado, também no Texas. Como já mencionado, a iniciativa arrecadou mais de US$ 25 milhões, os quais seriam fruto de doações de mais de 500 mil pessoas, segundo o site oficial da organização. Em tese, esta quantia seria usada para a construção de mais de 160 quilômetros de trechos do muro.

O núcleo duro organizacional da We Build the Wall é composto por pelo menos 13 pessoas que figuram nos mais altos círculos republicano e conservador nos Estados Unidos, sendo defensoras de duras políticas anti-imigratórias e dos discursos e iniciativas de Donald Trump nesse sentido. Bannon é uma figura de destaque, mas o grupo foi criado por Brian Kolfage, veterano da Força Aérea, em dezembro de 2018, através da GoFundMe.

A organização ganhou rápida adesão do público e arrecadou mais de US$ 20 milhões. Para receber os fundos, Kolfage se juntou a Bannon e a Badolato para fundar a We Build the Wall como um fundo legal para o recebimento das doações. Kolfage prometeu, ainda, que não destinaria um centavo sequer do montante para salários, ou compensações, mas apenas para a execução do objetivo da iniciativa.

A realidade parece ter sido outra. Kolfage, Bannon, Badolato e Shea, líderes da organização, teriam-se apossado de recursos da We Build the Wall para fins pessoais e como recompensa monetária. Kolfage, mais especificamente, teria usado mais de US$ 350 mil na redecoração de sua casa, no pagamento de barcos, na compra de joias e em cirurgias plásticas, entre outros.

Steve Bannon, por sua vez, teria recebido mais de US$ 1 milhão dos fundos da iniciativa, quantia também destinada para cobrir gastos pessoais. As transações ilícitas teriam sido feitas por intermédio de uma organização sem fins lucrativos de Steve Bannon e por uma empresa de Timothy Shea.

Os laços entre Trump e Bannon não são segredo para ninguém. Veterano da Marinha estadunidense e ex-funcionário do Goldman Sachs, ele atuava, desde 2012, em um site de notícias de extrema direita, Breitbart News, conhecido por suas notícias falsas, misóginas e racistas, até ser convidado para liderar, como estrategista, a campanha eleitoral de Trump, ao lado de Kellyanne Conway. Desde então, é considerado como a força motriz do tom populista e nacionalista da campanha de Trump.

Tornou-se estrategista-chefe de Trump na Casa Branca no início de mandato do presidente estadunidense, um alto cargo marcado por funções amplas e pouco precisas, mas vale ressaltar sua contribuição para a primeira versão do decreto anti-imigração de Trump, a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris e, evidentemente, a construção do muro na fronteira com o México, bandeira muito divulgada por ele e Trump.

Bannon deixou o posto oficialmente ainda em agosto de 2017, após choques com Trump e com outros membros de sua equipe: o até então estrategista-chefe teria contradito o líder estadunidense em uma entrevista, ao discutir a Coreia do Norte, e afirmado que ele tinha o poder de fazer mudanças pessoais no Departamento de Estado. O episódio irritou Trump e levou à demissão de Bannon e ao afastamento público de ambos.

Reação de Trump

O presidente buscou se distanciar da figura de Bannon e da We Build the Wall assim que o anúncio da prisão de seu ex-estrategista ocorreu. Afirmou, em entrevista coletiva no Salão Oval, que “não tratava com ele [Bannon] há um longo período de tempo”. Trump inclusive negou que conhecesse a iniciativa para, logo em seguida, contradizer-se, ao afirmar que “não gostava muito dela”. Também classificou como “inadequado” o financiamento privado do muro na fronteira entre os EUA e o México.

Apesar do afastamento entre Trump e Bannon, o presidente dos Estados Unidos tinha conhecimento do trabalho da We Build The Wall desde seu lançamento. Kris Kobach, antigo secretário de Estado do Kansas e membro da iniciativa na época, afirmou que Trump havia “dado sua bênção” para o projeto em janeiro de 2019.

Vale relembrar também que o filho mais velho de Donald Trump, Donald Trump Jr., parabenizou o projeto em discurso em julho de 2019, considerando-o uma verdadeira façanha empresarial. E a CNN noticiou, inclusive, que a We Build the Wall teria entrado em contato com a administração Trump, em fevereiro de 2020, para discutir a possível construção e doação de uma parte de muro na fronteira sul dos Estados Unidos.

Mais importante, porém, é o fato de Bannon ter voltado a circular, mesmo que de forma não oficial, na equipe de Trump há pouco tempo. Ele estaria atuando de forma próxima a diversos oficiais do alto escalão da Casa Branca, como Stephen Miller, desde maio de 2020, com o objetivo de contribuir para estratégias de reeleição de Trump e para desviar o foco da má gestão da pandemia de COVID-19 por parte do magnata republicano. Seu foco seria em como garantir o apoio da base mais leal de Trump e em construir a narrativa da China como a grande ameaça a ser enfrentada pelos EUA.

A atuação de Bannon nesse sentido seria reforçada por sua liderança no Committee on the Present Danger – China (CPD-C) (“Comitê sobre o Perigo Presente – China”). Essa é a quarta vez em que CPD-C é ativado (a primeira vez foi em 1959), e sua atual composição é variada, incluindo de militares, políticos e membros do governo dos Estados Unidos a acadêmicos, líderes religiosos e empresários. O grupo se apresenta como uma organização sem fins lucrativos e apartidária.

Tal grupo ultraconservador seria financiado por Guo Wengui, dono do iate em que Bannon foi encontrado, e aliado dele na luta contra o Partido Comunista Chinês (PCCh), visto por ambos como uma ameaça às normas liberais da ordem internacional.

O CPD-C atuaria, então, como um advocacy group, fomentando a mudança de regime na China, por meio da deslegitimação do PCCh, assim como o sentimento anti-China no país. Nesse sentido, a contribuição de Bannon na política de Trump para a China já pode ser visualizada em documento de maio de 2020.

Conservadorismo para além de Bannon

A prisão de Bannon acontece em um contexto político efervescente nos Estados Unidos. Mais precisamente, a apenas 75 dias da eleição presidencial e a alguns dias da nominação oficial de Donald Trump na Convenção Nacional Republicana, como o candidato oficial do Partido Republicano para um segundo mandato. Sua prisão ocorre, também, na esteira da Convenção do Partido Democrata, mais especificamente no mesmo dia em que Joe Biden aceitou a nomeação como o candidato oficial da sigla à disputa pela Presidência dos Estados Unidos.

A notícia da prisão de Steve Bannon repercutiu na mídia internacional, dada sua contribuição para estratégias de diversas outras campanhas eleitorais conservadoras, com destaque para o seu apoio à Presidência do então candidato Jair Bolsonaro, no Brasil, pessoa que descreveu como “muito parecida” com Trump.

Bannon, inclusive, encontrou-se com Bolsonaro e com um de seus filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, bem como com outros integrantes do governo brasileiro, para sessões informais de aconselhamento, em um contexto de crescente estreitamento das relações entre a família Bolsonaro e Bannon. O ex-estrategista de Trump nega, porém, ter participado ativamente da campanha eleitoral de Bolsonaro, bem como nega sua participação no escândalo da Cambridge Analytica, no Reino Unido.

Embora a prisão de uma figura tão emblemática para a propaganda da extrema direita internacional tenha sido importante, é necessário lembrar, como apontado por Marina Valente, que outras figuras continuam a atuar. A rede estratégica segue em operação, tendo figuras diversas, como Dominic Cummings, no Reino Unido, e Arthur Finkelstein, na Hungria.

Além disso, Bannon foi um ator-chave na reativação de organizações como o já citado CPD-C e na criação de outras como a The Movement (“O Movimento”), iniciativa voltada para influenciar as eleições do Parlamento Europeu em 2019 e para reunir lideranças mundiais de ultradireita. The Movement é liderada por Marine Le Pen, Matteo Salvini e Viktor Orbán, da França, Itália e Hungria, respectivamente, e avança a passos largos – inclusive com Eduardo Bolsonaro atuando como representante do grupo na América do Sul, após designação feita pelo próprio Bannon, em 2019.

Steve Bannon foi solto ainda no dia 20 de agosto, após pagar fiança de US$ 5 milhões e se declarar, em audiência, como inocente de todas as acusações relacionadas à iniciativa We Build the Wall.

Na saída do tribunal, Bannon declarou que todo este episódio “é para parar as pessoas que querem construir o muro”, mas a prisão e a investigação de mais uma pessoa que pertencia ao círculo dirigente próximo de Trump pode abalar, mais ainda, a imagem pública do presidente estadunidense em uma conjuntura nem tão favorável, como ambos esperavam, para sua reeleição.

É necessário, contudo, não esquecer as condições, materiais e ideacionais que propiciariam o fortalecimento das ideias da extrema direita em diversas partes do mundo.

Ao mesmo tempo, é importante lembrar que o movimento conservador nos Estados Unidos tem raízes profundas e atua sob diferentes formas. E ainda não é claro, inclusive para membros de círculos conservadores, se o trumpismo perdurará por um período de tempo mais longo, caso Trump não seja reeleito. Resta observar a rachadura no muro com o caso de Bannon e de seus sócios e seus possíveis impactos na política estadunidense e mundial.

 

Rúbia Marcussi Pontes é doutoranda e mestra em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP-IFCH), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pesquisadora do INCT-INEU e bolsista CAPES.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Rúbia Marcussi Pontes

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