A tosca brutalidade deste setembro foge às interpretações normais e se transforma em paradoxo de si mesmo. As contradições esbarram umas nas outras, disputando espaço.
Primeiro, o fogo que destruiu o Museu Nacional, no Rio, consumiu em poucos minutos o que fora acumulado em séculos, num retrato do incêndio geral que hoje perpassa o Brasil como tragédia. Depois, o candidato presidencial que propõe liberar o uso de armas e que caça votos a partir da violência verbal, foi esfaqueado em plena rua.
O crime jamais foi instrumento da política e, assim, a tentativa de assassinato em Juiz de Fora é repugnante em si. O fato de o criminoso ser um aparente desequilibrado não diminui a aberração. A insanidade atenua o tipo e o rigor da pena, ou exclui o caráter político da ação, mas não altera a sordidez do atentado.
No entanto, Jair Bolsonaro foi também vítima da própria ideia de violência constante, suporte de sua candidatura, que ele mesmo apregoou de Norte a Sul. Sua linguagem teve invariável tom destrutivo, como se ocultasse ódio interior. A insistência em armar a população para enfrentar a violência significaria abolir o próprio Estado, destruindo a polícia e a Justiça e, assim, criando o caos absoluto.
Cada proposta soava como chamamento a substituir o diálogo pela ferocidade da imposição de ideias, como nas ditaduras. Noutras ocasiões, exibiu destemperado machismo: numa palestra, no Rio, contou ter quatro filhos homens e acrescentou: “No quinto, fraquejei e veio mulher”.
Por tudo isto, é réu em três processos no Supremo Tribunal — por “apologia do crime”, por “incitar ao estupro” e por “racismo e injúria”. O próprio ministro Marco Aurélio Mello, relator dos processos, já indagou, publicamente, se “réu pode ser candidato”. Não pôs em dúvida o aspecto legal (aplicável aos condenados em segunda instância, como Lula da Silva), mas, sim, a legitimidade moral de um réu candidatar-se a chefe de Estado e de governo.
Para parecer diferente dos políticos, Bolsonaro evitou aliados, ainda que, desde 1989, ele próprio viva dessa mesma política degradada. Foi vereador e quatro vezes deputado federal, passando por nove partidos.
Os desvarios e desequilíbrios atraem os desequilibrados e neles se multiplicam. A partir daí, podem redundar em adesão fanática ou em inimizade gratuita, igualmente fanatizada. Em ambos os casos, tudo é cego, como todo fanatismo. Ao ser preso, interrogado sobre quem o mandou esfaquear, o criminoso respondeu: “Foi Deus, lá de cima!”
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Invocar o nome de Deus em vão, como artimanha tática, foi usual também na campanha de Bolsonaro. Dias antes do atentado, os cartazes que o receberam em Presidente Prudente e noutras cidades, proclamavam: “Deus acima de todos”. Mesmo assim, ele defendeu o uso de armas e se fotografou ao lado de crianças, esticando o braço como se as ensinasse a disparar um fuzil.
Que odioso deus o saudava? O amor é a única arma de Deus. Não há amor irado e a ira jamais serviu a nada, menos ainda ao ato de governar.
Estes pequenos “incêndios” na campanha eleitoral lembram a Alemanha de 1930 e o caos que, três anos depois, levou Hitler ao poder. Eram tempos de frustração e desesperança. Derrotados na guerra de 1914-18 e desabituados à democracia, os alemães desconheciam o debate de ideias e o diálogo político.
O partido nazista formou, então, “grupos armados” para “reerguer o orgulho da Alemanha”. Em 1933, pregando a violência, Hitler chegou ao poder pelo voto. Não buscava unir o país no diálogo para solucionar problemas. Ambicionava o poder para impor a violência.
O mais minucioso biógrafo de Hitler, o alemão Joachim Fest, lembra que a aceitação das absurdas ideias nazistas só ocorreu porque a Alemanha “era um país profundamente exasperado” e “sem rumo”.
O Brasil de 2018 é, também, um país exasperado e sem rumo. A corrupção gerada no conluio entre governantes e grandes empresários desacreditou a política e reduziu os políticos a cinza inservível.
A tática de Hitler — lembra seu biógrafo — “consistia em concentrar as energias para fugir do anonimato e destacar-se de qualquer forma dos concorrentes”. Assim, acrescenta, “tornou-se famoso pelo cinismo alucinante que foi sua característica”.
É a tática do “falem mal, mas falem de mim”, com que, aqui, Jair Bolsonaro saiu do anonimato e virou candidato. Foi assim que, dias antes do atentado, reunido com ruralistas em Rondônia, prometeu reduzir as áreas de preservação ambiental e criticou a visão unânime da ciência sobre o perigo do desmatamento da Amazônia.
Hitler foi “uma mistura de excentricidades e gafes”, definiu seu principal biógrafo. Transpondo a 2018, basta estar atento para observar algo similar entre nós. Já lembrei aqui que Lula e Bolsonaro são iguais no tom místico e autoritário, na habilidade de nunca revelar o que são ao se esconder mais ou ocultar-se menos.
Condenado e preso, Lula já não é candidato, mas segue em campanha como escudeiro de Fernando Haddad. Em árabe, Haddad significa “ferreiro”, mas ele quase nada forjou como ministro da Educação, além de entregar o ensino superior a grupos que comercializam ações na Bolsa de Valores. Não foi, também, violência?
O atentado de Juiz de Fora é alerta e advertência. A oca campanha eleitoral não pode ser substituída pela violência. Nem sequer em pequenos gestos, como agora o da foto de Bolsonaro no hospital, levantando os dedos para simular um revólver.
Seria absurdo culpar a vítima pelo crime, mas no horror atual não há espaço para nenhum mártir. Não há nenhum Gandhi. Tudo é alucinação e, entre as cinzas da facada, só resta o velho adágio — violência gera violência.