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Nas periferias não há contradição: jovens são evangélicos e funkeiros, diz pesquisadora

Os jovens que participam dos bailes aos sábados e vão ao culto aos domingos, “negociam inteligentemente as possibilidades de ambas as manifestações”
João Vitor Santos
Revista IHU On-line
São Paulo (SP)

Tradução:

Participar de um culto evangélico e frequentar um baile funk parecem, à primeira vista, experiências antagônicas, mas fazem parte da sociabilidade dos jovens da periferia e “estão em permanente contato”, diz Réia Silvia Pereira à IHU On-Line. A jornalista e socióloga é autora da dissertação intitulada “Fé em Deus, DJ: Funk e pentecostalismo entre jovens das camadas populares”, e pesquisa como a juventude da periferia de Vitória, no Espírito Santo, transita entre os bailes e os cultos.

Segundo ela, os jovens que participam dos bailes funk aos sábados e vão ao culto aos domingos, “negociam muito inteligentemente as possibilidades de ambas as manifestações”. Nos seus celulares, informa, “só se encontram hinos evangélicos e funk” e eles “convivem com a fruição, com a exaltação à sexualidade e ao prazer expressos pelo funk, de um lado, e do outro, com o pré-milenarismo com o suposto controle dos corpos e com o aparente ascetismo pentecostal”. Esse trânsito pelos bailes e pelos cultos expressa que eles “estão exercitando a autonomia e individualizam a própria forma de experienciar a religião. É, em última instância, uma expressão do individualismo num contexto marcado por relações hierárquicas como são os bairros populares”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, a pesquisadora apresenta os principais resultados da sua pesquisa e explica como a juventude se relaciona tanto com o funk quanto com a religiosidade. “A adesão ao funk não significa necessariamente a contestação aos valores pentecostais”, pontua. Os jovens que transitam por essas duas experiências, diz, “na maioria dos casos, são de famílias pentecostais e entendem a juventude como período transitório. Contam com a possibilidade futura de mudança da trajetória individual propagada pelas manifestações pentecostais. O batismo é um marcador importante. Depois de batizados, inserem-se de fato na igreja. Mas também notei que há uma certa transitoriedade. O movimento de entrada e saída da igreja é relativamente comum. De qualquer forma, muitos adiam o batismo para viverem esse limiar”.

Réia Silvia Pereira pesquisa as camadas populares urbanas desde 2012. Ela é graduada em Comunicação Social – Jornalismo e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, onde atualmente realiza o doutorado. 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compreender as sociabilidades das religiões neopentecostais, que asseguram muito espaço a essas confissões em regiões periféricas? Que associações e dissociações se pode fazer entre essas confissões e outras mais tradicionais como o catolicismo e mesmo o luteranismo?

Réia Silvia Pereira – Para responder, retomo a categoria neopentecostalismo, que é ainda muito potente na reflexão sobre a expansão do pentecostalismo no Brasil. Contudo, acredito que já não dê conta sozinha para a compreensão da complexidade do movimento vivenciado no Brasil. Especificamente, pesquiso igrejas muito pequenas, com uma organização do tipo congregacional, extremamente numerosas nas periferias e que se caracterizam por produzir rituais ruidosos, extáticos, com expressivas performances corporais, geralmente lembrando uma dança giratória no momento do avivamento. Em algumas regiões, principalmente do Sudeste, tais rituais são conhecidos como “reteté”.

Nas igrejas que pesquisei, é possível perceber o discurso pré-milenarista, próprio das primeiras congregações pentecostais, e o intenso controle sobre as condutas de seus integrantes. Ao mesmo tempo, percebi o discurso da prosperidade e a anatemização das religiões de matriz africana, por exemplo. Se é um novo pentecostalismo, esse novo é carregado de referências das antigas congregações, em especial, das primeiras Assembleias de Deus, assim como as referências das religiões mais hierarquizadas surgidas na segunda metade do século XX, como a Igreja Universal.

Em tais igrejas, há uma hierarquia mais horizontalizada, algumas vezes ocupadas por mulheres. Tais lideranças não vivem exclusivamente da vida eclesiástica. Exercem ocupações consideradas dos estratos mais abaixo da hierarquia social. São diaristas, domésticas, caseiros, porteiros… Percebo que as relações em tais igrejas estão associadas ao próprio modo de vida dos contextos populares, marcado pelas relações de proximidade, pelas relações de vizinhança, de afinidade e mesmo em relação à “política dos sons” observadas nos bairros populares. Acredito que essas denominações, por meio de suas possibilidades organizativas menos hierarquizadas e por meio de sua ritualística — marcada pelo caráter sensorial, extático e que oferece aos integrantes a chance de expressar seus dramas cotidianos —, associam-se mais especificamente ao modo de vida das periferias do que às religiões ditas tradicionais.

Como você interpreta o funk, de modo geral, enquanto manifestação estética da periferia? Por que tem tanta adesão na juventude da periferia?

O funk não é produzido e nem consumido apenas nas periferias, mas é no contexto dos bairros populares, principalmente onde pesquiso, no Sudeste, que ele floresce. Se expressa nas sociabilidades — utilizando aqui o sentido de Simmel — juvenis. O funk não está apenas nos bailes. Está presente nas rodas de conversa dos jovens nas ruas, nos bondes — grupos que ensaiam e apresentam suas coreografias —, nas festas realizadas nas casas, nos “mandelas”, que são bailes realizados em espaços públicos, como as praças. O funk é uma possibilidade potente de expressão juvenil. Em muitos casos, as músicas são crônicas dos cotidianos desses jovens. Outras vezes, falam do exercício da sexualidade em um momento da vida em que essas experiências são vivenciadas pela primeira vez ou quando são moralmente reprimidas em outros contextos. Assim, as expressões do funk são uma forma de vivenciar as juventudes nas camadas populares, muitas vezes marcadas pelo acesso relativamente precoce ao mercado de trabalho e às obrigações, que nas camadas médias são consideradas específicas da vida adulta. Dessa forma, o funk está relacionado à fruição, ao lazer, ao prazer, como destaca Juarez Dayrell.

O que eu gostaria de destacar é que essa adesão ao funk como estilo de vida é um processo dinâmico, volátil e individualizado. Existem aqueles que se identificam como funkeiros e, geralmente, atuam de forma mais “profissional”. Compõem e cantam músicas, realizam shows, inserem-se nas redes de produção. Há outros que acionam apenas alguns aspectos, desfrutando de algumas músicas ou utilizando de algumas expressões estéticas que remetem ao estilo.

Como funk e religiões neopentecostais se encontram nas periferias brasileiras? E que funk é esse?

Nas regiões em que pesquisei e pesquiso, o encontro entre o funk e o pentecostalismo se faz a todo momento. Seja na paisagem sonora, em que os sons dos “batidões” disputam e interagem com os sons dos hinos e das orações dos templos pentecostais, seja nas possibilidades de adesão.

Há jovens que vivenciam ambos os domínios, que, a princípio, apresentam aparência antagônica, simultaneamente. Negociam muito inteligentemente as possibilidades de ambas as manifestações. Há jovens que participam dos bailes aos sábados, e aos domingos vão aos cultos. Nos seus celulares, só se encontram hinos evangélicos e funk. Convivem com a fruição, com a exaltação à sexualidade e ao prazer expressos pelo funk, de um lado, e do outro, com o pré-milenarismo com o suposto controle dos corpos e com o aparente ascetismo pentecostal. Ouvi, algumas vezes, jovens dizerem que temiam a volta de Jesus durante o baile.

Na maioria dos casos, são de famílias pentecostais e entendem a juventude como período transitório. Contam com a possibilidade futura de mudança da trajetória individual propagada pelas manifestações pentecostais. O batismo é um marcador importante. Depois de batizados, inserem-se de fato na igreja. Mas também notei que há uma certa transitoriedade. O movimento de entrada e saída da igreja é relativamente comum. De qualquer forma, muitos adiam o batismo para viverem esse limiar.

Quem são os jovens pentecostais que consomem funk na favela?

Geralmente são jovens que foram socializados dentro das igrejas pentecostais e que tiveram desde cedo contato com o funk. Como mencionei, o funk está muito presente nas sociabilidades das ruas. Assim, pelo menos nos bairros que pesquisei, é impossível não consumir funk de uma forma ou outra. Não quero dizer de modo algum que a experiência nas periferias se resuma ao funk e às manifestações pentecostais. Mas destaco que o funk, assim como as igrejas, está na vida cotidiana. Mas na maioria dos casos com que tive contato, são jovens de famílias pentecostais. Aderem ao funk por entenderem a especificidade da própria experiência juvenil.

O interessante é que a adesão ao funk não significa necessariamente a contestação aos valores pentecostais. Basta lembrar que grande parte dos bailes é iniciada após uma oração de contornos pentecostais. Como disse, muitos desses jovens associados ao funk planejam se batizar, frequentam a igreja. O que se passa é que estão exercitando a autonomia e individualizam a própria forma de experienciar a religião. É, em última instância, uma expressão do individualismo num contexto marcado por relações hierárquicas como são os bairros populares.

Na sua pesquisa, observa que a relação entre o funk e o neopentecostalismo se dá “num processo complexo de negociação constantemente recriado”. No que consiste esse processo e como é recriado?

É uma relação dinâmica. As experiências relacionadas ao funk e a própria experiência pentecostal estão em permanente contato nas periferias. São influenciadas mutuamente e suas fronteiras são constantemente transpostas, tensionadas e, por isso, constantemente modificadas.

Depois dessa sua experiência da pesquisa, como apreende a questão das identidades e dos diversos estilos de vida urbanos nas periferias?

Réia Silvia Pereira – Não utilizaria aqui o termo identidade. Entendo que os estilos de vida dos jovens das periferias, entre eles o funk, referem-se a um processo que se aproxima ao sentido de fugitive cultures, cunhado por Giroux; refere-se aos sentidos construídos na experiência cotidiana dentro de um contexto específico. É um processo que aciona manifestações, algumas vezes transnacionais, mas que se forjam em expressões locais a partir da recriação incessante. É um movimento dotado de negociações, de conflitos e de acomodações.

Sua pesquisa está centrada num bairro da periferia de Vitória, no Espírito Santo. Que analogias é possível fazer entre as interações e câmbios socioculturais desse contexto com outras periferias de grandes metrópoles brasileiras?

O bairro que pesquisei, São Pedro, tem especificidades significativas. Foi criado na década de 1970 por migrantes que, em sua maioria, ficaram desempregados devido ao processo de industrialização vivido no Espírito Santo durante a ditadura militar. Até o final da década de 1980, o bairro era conhecido como “lugar de toda pobreza”, principalmente porque seus moradores encontravam sustento ao comercializarem artigos que vinham do lixão municipal situado na localidade. Também é uma região de mangue, existe uma cultura de pesca. Na época do lixão, porém, palafitas cobriam a área. Quando iniciei meus estudos na região, em 2013, percebi em algumas áreas um comércio vigoroso, uma movimentação urbana evidente, o que coloca em questão o próprio termo “periferia”. Contudo, na igreja que pesquisei, praticamente todos os integrantes viviam do Bolsa Família. Muitos sofriam com as consequências do encarceramento de seus parentes. Atualmente, percebo que a crise atinge fortemente aqueles moradores, principalmente quanto ao desemprego e à privação. Então, é uma localidade bastante presente no imaginário da região metropolitana da Grande Vitória e, também, alvo de muitos estigmas.

No entanto, afora suas especificidades, acredito que São Pedro guarde aproximações com outras localidades. Isso porque periferia não diz respeito a um critério geográfico. Advogo da existência de um ethos periférico mais amplo, relacionado com o processo histórico de urbanização. Cito, por exemplo, as relações de proximidade, as relações de sociabilidade experienciadas nas ruas e, também, ao domínio e às disputas envolvendo as redes de narcotráfico e, acrescento, as redes de igrejas pentecostais.

Nos textos que produziu a partir da pesquisa, você refere muito que há uma “negociação” entre o “universo pentecostal” e o funk. Nesse sentido, a “negociação” significa que, num momento, o aspecto religioso cede ao funkeiro e vice-versa? Ou ambos se tocam e se transformam? Por quê?

Depende da experiência individual. E isso é o que a pesquisa mostrou. Se o funk e as referências pentecostais têm uma expressão mais ampla, coletiva, que perpassa as relações na favela, tais referências serão acionadas de diferentes formas pelos diferentes sujeitos. Para alguns, a religião tem um peso maior na experiência subjetiva; já para outros, não. Preferem não ter uma religião específica e vivenciar as possibilidades do funk naquele determinado momento de suas vidas.

O quanto essas relações entre o religioso e o pop revelam acerca das juventudes de nosso tempo?

Acredito que revelem muito sobre a relação entre a individualização e a experiência dos grupos. As referências são amplas, globais, que serão apreendidas individualmente, mas tais referências vão adquirir amplitude na experiência dos grupos que compartilham seus sentidos.

O Estado e a sociedade em geral conhecem, de fato, a realidade e o jovem que vive na periferia? Por quê?

As periferias não podem ser entendidas como um universo homogêneo e fechado em si. Existem fluxos, interações. É claro que existe muito estigma relacionado aos jovens. Isso é percebido nesses próprios fluxos. A experiência dos rolezinhos nos shoppings demonstrou isso. Contudo, há uma ambivalência. A periferia ora é vista como o local da falta, da violência; ora como o local da autenticidade cultural dos jovens pobres. É uma ambivalência dotada de assimetrias, claro. Exemplos foram os bailes voltados para as camadas médias realizados nos morros em meados da década de 2010, logo após o lançamento das Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs. Eram bailes cujo acesso era restrito aos próprios moradores. Houve casos “de favelas” recriadas em casas de shows em bairros da Zona Sul do Rio. No ano passado, um palco “favela” foi construído na edição do Rock in Rio. São casos que revelam um pouco dessa ambivalência a que estou me referindo. Mas destaco novamente, é uma ambivalência cheia de assimetrias.

Quanto ao Estado, concordo com Veena Das e Deborah Poole em suas reflexões sobre as margens. A relação do Estado nas periferias não é ausente. Ela existe, mesmo que seja por meio da força policial, que mata, que prende. É nessa margem, nessa relação de ausência e presença, que reside uma das possibilidades da experiência periférica.

Como observa o avanço da religião sobre o espaço da política em nosso tempo?

Não pesquiso política institucional. Não sou a mais apta a responder. Mas percebo que lideranças religiosas participam da cena política há décadas. Atualmente, essa participação se ampliou, principalmente as evangélicas, que têm atuado de forma mais orgânica. Ainda são necessárias pesquisas para analisar o movimento, mas percebo, obviamente, a mudança, a diversificação e as disputas no campo religioso brasileiro, que está cada vez menos católico. Parece haver, também, uma mudança de postura dos evangélicos em relação à participação na cena pública. Uma postura que, em certo sentido, contrapõe-se à defesa a um suposto apartamento do “mundo”.

Nessa entrada dos evangélicos — não digo apenas em relação às lideranças — se percebe a adesão ao que vem sendo chamado pautas morais. Essas pautas, excetuando os setores evangélicos ditos progressistas, parecem agregar a heterogenia dentro do campo não apenas evangélico, mas também em relação a outras religiões. Os católicos carismáticos e os espíritas, por exemplo. Preocupo-me, e digo isso não apenas como pesquisadora, com a suposta falta de visibilidade das religiões afro-brasileiras, que junto aos sem religião e aos ateus e agnósticos, não votaram em sua maioria no atual presidente.

Que religião é essa que parece ditar as regras da chamada “pauta de costumes” no atual governo federal? Como essas vertentes dialogam e aderem à periferia?

Julgo que ainda faltam análises sobre as pesquisas para responder à questão. Análises tanto sobre pesquisas qualitativas como também quantitativas. Por exemplo, quase 70% dos evangélicos votaram em Bolsonaro

Mas mesmo entre os evangélicos mais pobres, percebi que há uma noção, às vezes difusa, às vezes específica, sobre o que seja esquerda. Uma concepção de que esquerda representaria um projeto anticristão e, mais ainda, um projeto de perseguição ao cristianismo. Como disse, é uma impressão inicial do meu campo de pesquisa e são necessários mais estudos. Nesse sentido, concordo com Ronaldo Almeida quando diz que o Deus aludido por Bolsonaro, que se declara católico, é, sobretudo, um Deus cristão, que tem elementos católicos, mas cada vez mais evangélico. Interessante que esse é o mesmo movimento que percebo nas periferias que pesquisei.

Gostaria de acrescentar algo?

Sim. As pequenas igrejas pentecostais localizadas nas favelas muitas vezes se mostram como possibilidades de sociabilidade feminina e negras. São espaços onde, por meio de sua organização e de sua ritualística, as mulheres podem expressar suas dores e mesmo exercitar a liderança. São formas de organização coletivas que obviamente devem ser vistas como legítimas. Contudo, tais igrejas reforçam o discurso de anatemização e de perseguição às religiões de matriz africana e, principalmente no Sudeste, às pequenas Casas de Umbanda presentes nas periferias.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

João Vitor Santos

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