A trágica gestão da covid-19 pelo governo do Brasil inflamou a tensão política permanente que contraiu o país ao eleger como presidente Jair Bolsonaro em outubro de 2018 e ameaça converter-se em crise institucional.
A forma de enfrentar a pandemia afetou a popularidade de muitos líderes no mundo. Foi provavelmente decisiva na derrota do ex-presidente estadunidense Donald Trump em sua tentativa de reeleger-se em novembro de 2020. Mas no Brasil tende a ter efeitos mais profundos em desmandos do governo de extrema-direita.
A teimosa crença de que o contágio seria a melhor imunização diante da Covid-19, a aposta em medicamentos como a cloroquina e as reticências em relação às vacinas fizeram de Bolsonaro um reconhecido campeão do negacionismo entre os mandatários do mundo.
O resultado são mais de 564.773 mortos, segundo registros oficiais, o equivalente a 13% do total mundial, embora o Brasil tenha só 2,7% da população do planeta, e é o segundo país em quantidade absoluta de mortos, superado apenas pelos Estados Unidos.
Reprodução: Gustavo Marinho / Fotos Públicas
Protestos em massa contra a presidente Jair Bolsonaro demandaram em São Paulo, no dia 24 de julho mais vacinas anticovid-19 entre outras
A consequente perda de popularidade e de credibilidade, apontada por todas as pesquisas, induz a uma maior agressividade nas ameaças de Bolsonaro, um ex-capitão nostálgico da ditadura militar, de 1964 a 1985, contra as instituições democráticas.
Seu principal alvo atual é o sistema eleitoral que aboliu o voto em papel. As urnas eletrônicas, inauguradas em 1996 e universalizadas em 2000, não são confiáveis nem auditáveis, segundo o presidente, que ameaça impedir as eleições de outubro de 2022 se não se retoma o sufrágio impresso.
Debilitado politicamente por sua atitude e gestão da pandemia, trataria de provocar turbulências para algum tipo de golpe à institucionalidade, já que conta, ou pensa contar, com o respaldo militar, segundo as conclusões mais comuns neste país sul-americano.
Sua corrosão eleitoral continua, porque uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) de senadores trata de averiguar e avaliar “as ações e omissões” do governo na crise sanitária.
Um quadro muito negativo de Bolsonaro e do Ministério da Saúde vai sendo detalhado desde o começo de maio, quando a comissão de 11 senadores e sete suplentes começou a interrogar testemunhas e autoridades envolvidas em possíveis atos que agravaram os danos da pandemia.
Instituída para uma atividade de três meses, a CPI teve que prorrogar sua atuação por três meses mais, para concluir com seu relatório final no final de setembro.
O colapso dos hospitais em Manaus, capital do estado de Amazonas, onde a falta de oxigênio provocou a morte de centenas de doentes em janeiro de 2021, o boicote às medidas sanitárias de governadores de estados e prefeitos para contar o contágio, a promoção de medicamentos ineficazes e travas à compra de vacinas se destacaram nas investigações.
A Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19, dentro do Ministério da Saúde, só foi criada em 10 de maio de 2021, e sua primeira titular tomou posse um mês mais tarde e 15 meses depois que a pandemia chegou ao Brasil. Foto: Walterson Rosa / MS-Fotos Públicas
Casos que geram suspeitas de corrupção na suposta aquisição de vacinas apareceram ultimamente e envolvem alguns militares, em geral, coronéis retirados do Exército, nas negociações.
As maiores irregularidades e falhas que haveriam aumentado a quantidade de mortes ocorreram sob a gestão de Eduardo Pazuello, um general de ativa, como titular do Ministério da Saúde, de maio de 2020 a março de 2021.
Ou seja, as averiguações estão afetando a imagem do governo e dos militares, gerando novos conflitos.
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A menção do presidente da CPI, o senador Omar Aziz, a uma “banda podre” dentro das Forças Armadas que teria seus membros metidos em estafas, provocou uma reação agressiva do ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, e comandantes das três armas.
As Forças Armadas “não aceitarão nenhum ataque apressado”, disseram em um comunicado que chama de “infundada e irresponsável” a acusação do senador. Uma tentativa de intimidação para frear as investigações, avaliaram legisladores independentes e de oposição ao governo.
Outros conflitos surgiram pela discrepância entre o governo central, contrário ao isolamento social porque pretendia manter todos os setores econômicos em atividade, e os estados dedicados à contenção da pandemia.
As contradições surgiram inclusive entre Brasília e governadores aliados de Bolsonaro.
A impossibilidade de concertação e o desinteresse do governo central em comprar vacinas com a urgência necessária conduziram alguns governos de estados e prefeitos a buscar vacinas por sua conta. As tentativas fracassaram pela oferta escassa e dificuldade legais na importação por entes subnacionais.
A pandemia deixa assim maiores dificuldades na articulação entre os distintos entes federais, pelo menos durante o atual governo. A consequência é também uma menor eficiência em lidar com a pandemia, um problema sanitário que exige coordenação nacional.
Esse quadro gerou também um novo confronto entre os governos central e o Supremo Tribunal Federal (STF), alimentado por Bolsonaro em vários temas.
Diante das pressões de Brasília contra a suspensão de atividades econômicas em estados e municípios para conter o contágio do coronavírus, o STF foi chamado pelos governos locais a dirimir as discrepâncias.
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O máximo tribunal do país emitiu então uma decisão que concede autonomia a estados e municípios para a adoção de medidas preventivas, sem restringir a coordenação e as orientações nacionais a cargo do Ministério da Saúde.
O STF impediu o governo central de agir na gestão da pandemia, argumenta Bolsonaro e seu auxiliares quando são acusados de omissão, embora a corte suprema tenha esclarecido várias vezes o sentido de sua decisão.
A verdade é que de fato Bolsonaro não pode impor sua orientação negacionista ante a pandemia ao país. Sempre disse ser mais importante manter a atividade econômica. O desemprego mata mais que a covid-19, argumentou várias vezes.
E adotou as medidas ao seu alcance para fazê-lo. Incluiu vários setores nas atividades essenciais, por exemplo, as igrejas, salões de beleza e centros de ginástica, ignorando protestos de que são locais de contágio.
Os epidemiologistas sustentam que sem medidas de prevenção, como pretendia Bolsonaro, morreriam milhões de pessoas pelo contágio e, porque logo colapsaria todo o sistema de saúde. Não haveríamos hospitais nem médicos, nem pessoal auxiliar suficientes para assistir a repentina afluência de tantos doentes.
O tema pôs em confronto a Bolsonaro e o DTF, que agora se agravou pelos ataques do presidente ao sistema eleitoral baseado no voto eletrônico.
Os juízes da corte constitucional e do Tribunal Superior Eleitoral que conduz todo o processo para eleger governantes e legisladores, uniram-se em defesa do atual sistema.
Voltar ao voto impresso, como deseja Bolsonaro e os chefes militares, seria um retrocesso a um período em que proliferavam fraudes e questionamentos judiciais, ou seja, a insegurança dos resultados das urnas.
Uma proposta de deputados bolsonaristas para restabelecer o voto impresso foi rechaçada em 5 de agosto em uma Comissão Especial da Câmara de Deputados que debateu o tema. E novamente nesta terça-feira (10) na pelos deputados da casa.
Novos conflitos devem surgir das investigações da CPI do Senado, já que distintos temas podem resultar no julgamento de várias autoridades e novos roces com os militares.
A promoção dos medicamentos do chamado “tratamento precoce”, que inclui a cloroquina (medicamento contra a malária), ivermectina ((anti-helmíntico) e outros produtos perigosos como anticoagulantes e corticoides, envolveu o Ministério da Saúde, o Exército que distribuiu grande quantidade de cloroquina fabricada em sua própria indústria, e o próprio Bolsonaro.
Charlatanice, violação de normas sanitárias e improbidade administrativa, porque foram usados recursos públicos para produzir, distribuir e recomendar falsos medicamentos, são delitos que poderão ser imputados a muitas autoridades, inclusive militares.
Essa é uma questão que dividiu os médicos do Brasil de maneira taxativa. Os diferentes Conselhos de Medicina que deveriam haver regulado a questão se abstiveram ou inclusive se somaram ao charlatanismo.
*Tradução: Beatriz Cannabrava
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