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Imagem: Joe Piette / Flickr

Netanyahu preso: por que ordem do TPI é relevante contra genocídio em Gaza

TPI não possui polícia própria para garantir prisão de Netanyahu, mas decisão - pela primeira vez contra um aliado ocidental - impacta comunidade internacional
Olga Rodríguez
elDiario.es
Madri

Tradução:

Guilherme Ribeiro

É a primeira vez na história que o Tribunal Penal Internacional (TPI) emite ordens de prisão contra um primeiro-ministro israelense, após o pedido apresentado em maio pelo procurador-chefe desse órgão, Karim Khan.

Seis meses se passaram desde aquele pedido, durante os quais o próprio gabinete do procurador-chefe denunciou pressões e ameaças: “‘Este Tribunal foi criado para a África e para valentões como Putin’, me disse um importante líder. Nós não vemos dessa forma. Este Tribunal é o legado de Nuremberg, deveria ser o triunfo da lei sobre o poder e a força bruta. Não seremos dissuadidos por ameaças”, contou o próprio procurador Khan em maio, na CNN.

Agora, apesar das pressões, o Tribunal afirma que há motivos razoáveis para considerar Netanyahu e Gallant responsáveis por crimes de guerra e de lesa humanidade, como “fome como método de guerra”, “assassinato, perseguição e outros atos desumanos” contra a população de Gaza. Os três juízes do painel que adotou esta decisão consideram que Netanyahu e Gallant “privaram de maneira intencional e consciente a população civil de Gaza de itens indispensáveis à sua sobrevivência”.

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Há anos, Israel tem monitorado altos funcionários do Tribunal e trabalhadores de direitos humanos palestinos, “como parte de uma operação secreta para frustrar a investigação sobre supostos crimes de guerra”, segundo revelou no último mês de maio a publicação israelense +972 Magazine.

Do que depende o cumprimento da ordem

O ex-procurador-chefe fundador do Tribunal Penal, Luis Moreno Ocampo – no cargo entre 2003 e 2012 – contou recentemente, em uma entrevista ao elDiario.es, que os Estados Unidos pediram a ele várias vezes para encerrar a investigação preliminar sobre a Palestina, algo que detalha em seu recente livro.

Na última quinta-feira (21), em conversa com o portal elDiario.es, Moreno Ocampo enfatizou que essas ordens de prisão “limitarão Netanyahu” e que ele “não poderá viajar para 124 Estados”, referindo-se aos países que fazem parte do Estatuto de Roma.

O Tribunal não conta com uma polícia própria nem outros mecanismos para garantir o cumprimento, mas a importância dessas ordens é notável. Nunca antes haviam sido emitidos mandados de detenção contra líderes israelenses.

“Há um Tribunal Internacional existente que determina que Israel está cometendo um crime. Aqui, a questão central é o que fazemos com essa informação, o que acontece com os outros líderes do mundo, o que Trump, Biden, Alemanha, Espanha, etc. vão fazer”, afirma Moreno Ocampo.

“Donald Trump já sancionou Fatou Bensouda [ex-procuradora-chefe do Tribunal quando Trump era presidente], como se fosse uma terrorista, por investigar os EUA. A Espanha e outros países vão permitir que isso aconteça? Este é o tema central. Não é sobre quando o prenderão, mas sobre como o mundo reagirá quando o Tribunal Penal Internacional afirmar que isso que Netanyahu está fazendo é um crime”, acrescenta o ex-procurador-chefe fundador do Tribunal.

Reed Brody, advogado estadunidense especializado em direitos humanos – com um papel importante nos julgamentos contra os ex-ditadores do Chade e do Haiti, Habré e Duvalier – afirma que “essas ordens reforçam o crescente consenso internacional sobre a natureza criminosa da guerra de Israel contra o povo de Gaza”.

“Elas implicam que o mundo de Netanyahu e Gallant agora se limita aos países que não ratificaram o Tratado do Tribunal Penal Internacional”, acrescenta. O professor em Princeton e ex-diretor da Human Rights Watch, Kenneth Roth, afirma o seguinte: “Os países membros do TPI são obrigados a deter Netanyahu e Gallant se ousarem colocar os pés em seus territórios. De repente, o mundo se tornou muito menor para esses dois altos dirigentes israelenses.”

Os países em verde são os que ratificaram o Estatuto de Roma e, portanto, são obrigados a prender Netanyahu e Gallant se pisarem em seu território.

O duplo padrão e os obstáculos

Em Israel, tanto os partidos que compõem o governo quanto a maioria da oposição criticaram duramente as ordens de prisão do TPI. “A decisão antissemita do Tribunal Internacional de Haia é um moderno caso Dreyfus e terminará da mesma maneira”, afirmou o primeiro-ministro Netanyahu na noite desta quinta-feira.

Além de Israel, outros cinco países criticaram o anúncio do tribunal: Áustria, República Tcheca, Estados Unidos, a Argentina de Milei e a Hungria de Orbán.
Washington defende uma lei internacional parcial, aplicada apenas contra seus adversários, e não reconhece a jurisdição do Tribunal no caso israelense. É o que mostram as declarações do governo dos EUA em 21 de novembro, por meio de vários porta-vozes e do próprio Biden, classificando como “escandalosa” a ordem do TPI.

No último dia 30 de abril, o porta-voz do Secretário de Estado dos EUA afirmou que Washington não acredita que o Tribunal Internacional “tenha jurisdição sobre este caso”, mas que trabalha “em estreita colaboração com a Corte em várias áreas-chave: Ucrânia, Sudão, Darfur”. Os Estados Unidos celebraram a ordem de prisão contra Vladimir Putin em março de 2023.

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As pressões e esse duplo padrão afetam a credibilidade de Washington no cenário global e geram preocupação diante das tentativas de enfraquecer a imagem do Tribunal Penal. O mundo presencia um embate entre a defesa do direito internacional e o ataque dos EUA ao papel dos tribunais de Haia.

Já em maio, quando o procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional solicitou essas ordens de detenção, o presidente Joe Biden classificou como “indignante” o pedido, enquanto o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, cogitou a possibilidade de sancionar o Tribunal de Haia.

Michael Waltz, futuro assessor de Trump para Segurança Nacional, anunciou ainda em 21 de novembro “uma forte resposta em janeiro [quando Trump assumir a presidência] ao viés antissemita do Tribunal Penal Internacional e das Nações Unidas”, referindo-se a possíveis sanções contra esse tribunal.

Além das medidas contra Netanyahu e Gallant, o TPI também emitiu uma ordem contra o comandante do Hamas Mohammed Diab Ibrahim Al-Masri, conhecido como Deif, cuja morte foi anunciada por Tel Aviv, mas que não pôde ser confirmada pelo tribunal. O pedido de ordens de prisão contra outros dois líderes do Hamas, Ismail Haniya e Yahia Sinwar, não prosperou, porque ambos foram mortos pelo Exército israelense.

O advogado Joan Garcés, impulsionador do julgamento contra o ditador chileno Augusto Pinochet, explica que os 124 países que ratificaram o Estatuto de Roma têm o dever de cumprir a ordem do Tribunal caso o primeiro-ministro israelense ou seu ex-ministro da Defesa pisem no território de algum deles.

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Ao mesmo tempo, Garcés reconhece as dificuldades de aplicação “diante de supostos infratores que controlam os recursos de um Estado e desafiam a credibilidade dos tribunais nacionais e internacionais”.

Em seus 22 anos de existência – com ordens de prisão contra 59 pessoas –, o Tribunal Penal Internacional nunca havia acusado um líder aliado da comunidade ocidental. “De fato, nenhum tribunal internacional fez isso desde a Segunda Guerra Mundial. É um marco na história da justiça internacional, tão inédito quanto justificado e tardio”, afirma Reed Brody.

Com isso, o advogado faz referência ao uso dos instrumentos da justiça internacional aplicados quase exclusivamente “para lidar com crimes de inimigos derrotados, como nos tribunais de Nuremberg e Tóquio, párias sem poder, especialmente da África, ou opositores do Ocidente, como Putin ou Milošević.”

Em conversa com o elDiario.es, a advogada especializada em direito internacional Almudena Bernabeu destaca a importância “da legitimidade do Tribunal Internacional” e afirma que, “para exercer a jurisdição do Tribunal, não é necessário nem a autorização, nem o consentimento, nem a aprovação de Israel”.

Os dois tribunais de Haia estão fornecendo ferramentas aos Estados da ONU para aplicarem o direito internacional, em um momento em que o Comitê Especial das Nações Unidas acaba de concluir que os métodos de Israel em Gaza são compatíveis com as características de genocídio.

As ordens de prisão do TPI reforçam, por sua vez, o marco do outro Tribunal Internacional, o de Justiça, que em janeiro ordenou a Israel que não bloqueasse a entrada de ajuda humanitária necessária em Gaza, algo que Tel Aviv não cumpriu, como agora confirmam os juízes do Tribunal Penal.

Organizações internacionais de direitos humanos, como a Anistia Internacional, destacam que as ordens de prisão do Tribunal de Haia representam “um avanço histórico para a justiça e devem marcar o início do fim da impunidade persistente e generalizada que está no centro da crise de direitos humanos em Israel e no território palestino ocupado”.

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No final da noite de 21 de novembro, o próprio procurador-chefe do Tribunal Internacional, Karim Khan, emitiu um comunicado no qual anunciou que seu gabinete está promovendo “linhas de investigação adicionais em áreas sob a jurisdição do Tribunal, que incluem Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental”, todos territórios afetados pela ocupação ilegal israelense.

“Ele destacou que a lei existe para todos, que sua função é reivindicar os direitos de todas as pessoas”, ressalta Khan em sua declaração, alinhada à sua postura dos últimos meses. “Ninguém está acima da lei, nenhum povo”, afirmava em maio.

No último mês de julho, o tribunal máximo das Nações Unidas, a Corte Internacional de Justiça, emitiu um parecer em que destaca o caráter ilegal da ocupação desses territórios e solicita aos Estados-membros da ONU a suspensão do comércio e dos investimentos que possam, de algum modo, contribuir para essa ocupação.

Em consonância com esse parecer, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou em setembro – por 124 votos a favor, incluindo o da Espanha – uma resolução que exige o fim da ocupação ilegal israelense em um prazo de doze meses e pede o término do comércio ou dos investimentos que possam contribuir com a mesma.

Desde outubro de 2023, mais de 44 mil palestinos foram assassinadas em Gaza pelos ataques israelenses, segundo números fornecidos pelas autoridades de saúde. Israel está conduzindo uma operação de expulsão contra o norte da Faixa, forçando novos deslocamentos e bombardeando locais onde pessoas refugiadas se abrigam. Além disso, o bloqueio à entrada da ajuda necessária causou fome e doenças que estão provocando um número indeterminado de mortes.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Olga Rodríguez Jornalista especializada em informação internacional, Médio Oriente e Direitos Humanos, é autora de livros como "El hombre mojado no teme la lluvia. Voces de Oriente Medio" (Debate, 2009) e "Yo muero hoy. Las revueltas árabes" (Debate, 2012), entre outros. 

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