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Nicole Schuster: Interpelação sobre o compromisso da literatura e da filosofia

Winston Orrillo

Tradução:

                                                      “Não adotar uma posição política é também uma posição política”

                                                                                          Sartre citado por N.S.

Winston Orrillo*

OLYMPUS DIGITAL CAMERAAssim porque sim: por obra da pura sorte. Não sei como chegou às minhas mãos um livro de formato simples, no qual, sobre um fundo verde-oliva, aprecia-se um acúmulo de nuvens que poderia se converter, em breve tempo, em um mar proceloso.

Nicole Schuster
Nicole Schuster

Seu título: “Interpretações políticas da literatura e da filosofia”“História da polícia. Analisar para mudar”, que compreende um estudo sobre a corrupção no seio dessa instituição, com um programa destinado à mudança, a fim de tentar morigerar esta mancha ad usum.
No entanto, nenhum dos seus anteriores trabalhos tem relação com a obra que temos em mãos: uma verdadeira jóia, pois suas análises políticas sobre temas literários e filosóficos são realizadas com verdadeiro conhecimento de causa, com uma erudição precisa – mas nunca sobrecarregada – e, sobretudo, com o uso de uma visão penetrante que revela a trama de alguns temas outrora sacrossantos, como a democracia grega e demais assuntos concomitantes.
Mas pensamos que ninguém melhor que a própria autora para nos dizer o que pretendeu fazer na obra de resenhamos: “Um autor sempre transmite em suas obras uma mensagem que implica a revelação de sua percepção da vida na sociedade, que corresponde à esfera política. Não pode obviar a partir da realidade para escrever e, por isso, não pode deixar de lado a posição que adota no mundo, por mais que trate de encobrir este fato alegando que seu relato reproduz um entorno de fantasia, de realismo mágico ou de ciência ficção que seria o reflexo de sua pretendida imparcialidade”. (Nicole Schuster: Interpretações Políticas da Literatura e da Filosofia. Prefácio. Pág. 11). E aqui vem a citação de Sartre que usamos na epígrafe.
CC-BY-2.0-hang_in_there-Deciding-Which-Door-to-Choose-2E continua nossa autora, com sua diáfana posição: “Pessoalmente me identifico com o que diz o filósofo francês (refere-se a Sartre: nota de W.O) a tal ponto que me resulta impossível, lendo ou escutando alguém, resistir à tentação de situá-lo dentro de seu contexto político. E creio que, no marco da mudança discursiva, muitos costumam reconstruir o entorno sócio-político de uma pessoa ou de seu relato, o que lhes permite entender melhor e julgar em função de seus critérios a mensagem que o autor/orador se empenha em comunicar” (Ibidem).
E aqui vem um necessário esclarecimento, que aponta para uma indubitável verdade de “nosso tempo”.
“…muitos realizam este processo analítico de forma inconsciente, e por isso estão persuadidos da neutralidade de sua posição. Além do mais, a faculdade de ler de forma ‘comprometida’ tem diminuído de forma crescente nas últimas décadas porque justamente está se impondo a cultura do ‘consenso’ do apolítico. De fato, as altas esferas que nos dirigem e uma corrente de intelectuais a seu serviço tratam de ‘despolitizar’ a vida cidadã para universalizar o pensamento econômico e político único que o sistema neoliberal, que está ganhando terreno em todos os aspectos de nossa vida, nos impõe à força.” (Ibidem)
Cremos que ela pôs, cabalmente, os pontos nos is. Já sabemos, agora, em que terreno estaremos nos movendo. (Que é precisamente também o nosso).
O volume começa com uma perspectiva nova sobre o heroísmo tradicional e suas figuras e seus representantes e seus protagonistas e seus super-homens, e nos leva pela mão a uma visão política da polis grega com pinceladas reveladoras sobre Sócrates e Platão, vistos a partir do espelho irrefutável da atualidade. Em seguida nos oferece seus pontos de vista sobre as relações entre a tragédia e a política aristotélica da vida, com precisas incisões nas concepções filosóficas do autor da Poética, no que se refere a sua projeção nos assuntos da polis.
A linguagem de Nicole, riquíssima, seus confrontos, suas abundantes citações – e não obstante – precisas e preciosas, juntamente com o uso de variados instrumentos de análise, nos faz dizer que este não é um livro para ler, mas para estudar. (Quem escreve isto, verbi gratia, quer concluir logo esta nota para voltar ao volume que apesar de sua relativa brevidade – pouco mais de 150 páginas – possui uma força paradigmática).
Capítulo particularmente delicioso, para o gosto de quem escreve, é o que dedica a Nosso Senhor Dom Quixote e o contexto histórico no qual esta obra se desenvolve, e suas pontuações sobre a alienação do Cavalheiro da Triste Figura, comparada com a alienação, comum e corrente, da atualidade. Ela nos apresente o Quixote como o que foi na realidade: um rebelde contra a ordem estabelecida, ou seja, contra o capitalismo, que (seguramente) muitos temem chamar por seu nome.
“O perfume. História de um assassino”, o já popular romance de Patrick Süskind, lhe serve para revelar o substrato social no qual se desenvolve (o modelo liberal dos séculos XVII e XVIII), cujo esclarecimento torna transparente o desenvolvimento dessa narração singular, na aguçada análise de Nicole.
Sobre o Surrealismo de André Breton e Louis Aragon, sua visão é igualmente polêmica e precisa, por suas colisões com a política do momento.
“Política e História. Relato de um matrimonio de longa duração” é um ensaio no qual podemos apreciar outra das característica do estilo ensaístico da autora: o uso da ironia ao refutar, com provas suficientes, a proclamada atitude apolítica de Borges, contradita, paradoxalmente, “por sua adesão ao partido conservador”: mas, ademais, há aqui páginas luminosas sobre a Historiografia como instrumento político e usos de “input-output”, como instrumentos que coadjuvam o que ela nos quer demonstrar, apoiada, como sempre, em certeiras citações, desta vez de Michel Foucault, entre vários outros. Conclui tudo isso com um parágrafo irrefutável: “É dentro deste contexto de submissão ao imperialismo e da entrega dos recursos estratégicos de um país a entidades alheias a todo projeto nacional de ordem estratégica que se tem que analisar a validade do simbolismo usado pelos governantes. Mas talvez, se os governantes já não têm outros elementos a não ser símbolos e ritos monolíticos para oferecer à população (quando não usam o porrete), isso quer dizer que o Estado é uma forma política que se tornou obsoleta e que já é tempo de buscar outro modelo de organização social” (Op.cit. Pág. 93).
Em “Um universo sem ideais”, análise da obra de Bret Easton Ellis, “American Psycho”, Nicole é fulminante em seu exame do mundo das finanças e dos bens imobiliários, com Wall Street e a Bolsa como protagonistas de uma obra que revela o “caráter degenerado das personagens, mesmo com o risco de dificultar a distinção entre ficção e realidade”, sem que isso diminua “o toque de realismo que transluz ao longo da narração, tanto mais que, como assinalam muitos autores, ‘a ficção sempre se baseia na realidade e a realidade se nutre da ficção” (Destaque da autora). (Op.cit. Pág.98).
“As religiões monoteístas e a construção da realidade” é uma precisa – e também acurada – análise do livro “Tratado de ateologia”, do filosofo francês Michel Onfray, o qual, fervente adepto de Nietzsche, critica, demolidoramente, as religiões monoteístas – o judaísmo, o cristianismo e o islamismo- através de seus livros básicos: o Talmude, a Bíblia e o Corão, com seus ensinamentos e incongruências básicas. Em geral, todas aquelas (as religiões) preconizam um pensamento entreguista e submisso, marcado de uma influência política cardinal, assim como todos eles (os livros sagrados)“parecem haver sido escritos para idiotizar as pessoas e subtrair-lhes toda capacidade de crítica”. “O pior é que seus ‘ensinamentos embrutecedores’ são transmitidos desde a infância”. (Op.cit. Pág. 107. Destaque nosso). Afinal, “os livros que formam os alicerces das três religiões monoteístas são uma grande fraude e só servem para tornar o mundo alheio a sua realidade a fim de dominá-lo melhor” (Op.cit. Pág.108. Destaque nosso). Não obstante o anterior, que poderia nos conduzir a sermos fiéis seguidores de Onfray, Nicole é implacável e conseqüente, pois ele, segundo ela, “não elabora qualquer proposta concreta que indicaria como alcançar uma consciência atéia desprovida da alienação religiosa” (Ibidem.)
Ao apresentar algumas alternativas que Onfray oferece de um ateísmo dedicado à ética epicurista e que persegue uma ontologia “materialista”, uma “física da metafísica”, ela insiste na proposta apresentada pelo filósofo francês que afirma: “É somente dentro de um mundo regido por um ateísmo desta índole que o homem poderá, como humano, realizar-se física, mental y espiritualmente, sem ter que reprimir seus desejos materiais, como tem feito até hoje por culpa do pensamento judaico-cristão que nos domina”.
Mas quando acreditamos que conseguimos chegar à solução, Nicole saca o alfanje e nos adverte: “Isso parece interessante, mas como se consegue? Através de que tipo de organização sócio-política e cultural? Onfray não o diz. Tudo faz parecer que, para Onfray, a luta ideológica é o elemento central e definitivo na determinação do ser humano e da sociedade. Não obstante, a história tem demonstrado que a realidade é mais complexa uma vez que existe uma relação dialética entre o social, o político, o cultural e o ideológico.” (Op.cit. Pág. 109)
Seu ensaio sobre o existencialismo na narrativa do autor nova-yorkino, Paul Auster, é uma descoberta de aspectos que, sem dúvida, nos obrigarão a voltar às suas páginas, enriquecidos pela visão da ensaísta francesa que, definitivamente, nos ensina a distinguir nele a influência de Montaigne e de Sartre, com pinceladas de Hamsun, Huysmans e Merleau-Ponty. Enfim, depois de revisar, admirados, como ela nos conduz à perspectiva de Heidegger, Hegel e Jaspers, para melhor elucidar a novelística do autor de A invenção da solidão, nos convencemos, uma vez mais, do importante que foi aceder a sua obra, que conclui com o estudo de O crime do corpo”. Escrever é um ato erótico?, de Stéphane Zagdanski, em seu ensaio final, “Eros e escritura”. Para realizar este último, ela se remonta à mitologia grega e ao herói Palamedes, que elogiava a escritura, com o que se mostrava “mais civilizado que os próprios deuses olímpicos, dado que estes eram reputados por ser analfabetos”.
Enfim, como de costume, Nicole nos passeia por Platão e sua concepção do Eros, para arribar ao erotismo da escritura que seria profundamente anti-social, com uma citação de Leo Strauss “para quem existe entre Eros e polis uma forte tensão”, “porquanto Eros é um elemento perturbador para a organização da polis…” E assim, depois de levar-nos a Hemingway, Picasso, Valery, Marcuse e Jung, a autora tem uma conclusão agudíssima, ao nos apresentar Zagdanski como alguém que propicia, em seu livro O crime do corpo, seguindo o exemplo de muitos intelectuais franceses, tratar “de colocar a escritura em um pedestal e converter dessa maneira os escritores em sábios portadores ‘DA’ verdade”. Deste modo, “Zagdanski glorifica os escritores fazendo da escrita uma forma de expressão elitista e, por outro lado, sanciona a linguagem, a comunicação verbal, que seria o instrumento da trivialidade e da falácia. O dualismo que Zagdanski introduz entre ambos os modos de comunicação é tão pronunciado que, para ele, no momento em que não escrevemos, estaríamos mentindo, porque estaríamos falando (sic)” (Op.cit. Pag. 145).
A conclusão é definitiva porque, para Nicole Schuster, Zadganski chega a “adotar uma posição de intolerância, pois transforma a escrita, que deveria estar a serviço da comunicação plural, no instrumento de gurus detentores da verdade. O escritor, motivado por seu desprezo pela comunicação, se encerraria em uma torre de marfim, rechaçando o intercâmbio sob o pretexto de não deixar que a verdade se contamine com a trivialidade da comunicação” (Op.cit. Pág. 146).
Finalmente, apesar da denúncia que Zagdanski faz, tanto da falta de autenticidade da palavra como daquela do erotismo “social” que rege este sistema consumista, ele “não propõe qualquer alternativa. Pero contrário, a única coisa que sugere é que o escritor siga nesta sociedade do espetáculo e se proteja isolando-se em seu fortim e confinando-se no elitismo e no individualismo que a própria sociedade do espetáculo promove, uma vez que ela necessita uma elite que contrabalance as massas da cultura do consumo.” (Ob.cit. Pág.147). E todo o anterior leva a autora a não buscar “pôr em jogo a essência das relações sociais do mundo atual que pretende denunciar” (Ibid.)
Como terá sido possível apreciar, Nicole Schuster não faz concessões, e quando se trata de esclarecer, esclarece, e claramente.
Enfim, é um livro de releitura obrigatória.
O volume é publicado por um selo muito querido por quem assina estas linhas: Editorial Horizonte. E vem à minha memória a querida imagem de seu fundador, Humberto Damonte (com ele lançamos um dos primeiros poemas ilustrados por grandes pintores. Nesse caso, foi meu texto “A montanha no parque“, extensa composição em memória do 31 de maio de 1970, terremoto de triste memória, especialmente para a querida terra de Yungay, que era acompanhado de um quadro da notável Tilsa Tsuchiya.
*Do núcleo de colaboradores de Diálogos do Sul
 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Winston Orrillo

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