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No Brasil burguês, enquanto o rico ladrão é "doente", o pobre ladrão não pode ter sequer a chance de viver

Dois casos em Salvador demonstram que a frase "se não queria morrer, que não roubasse" só vale para pobre e preto
Redação Socialista Morena
Socialista Morena
São Paulo (SP)

Tradução:

Na mesma semana, na mesma cidade, dois acontecimentos similares e dois desfechos totalmente diferentes ilustram o racismo nosso de cada dia: em Salvador, tio e sobrinho, ambos negros, furtam 4 pacotes de carne seca em uma loja do supermercado Atakarejo no bairro de Amaralina; algumas horas depois, são encontrados executados dentro do porta-malas de um carro. Enquanto isso, a 13km dali, no bairro de Piatã, uma mulher branca descia do seu Jeep Compass, entrava numa delicatessen, enfiava um queijo dentro da bolsa diante de todos os funcionários e saía do local sem ser importunada. O dono da loja justificou que não a abordou “para não gerar constrangimento”. 

A suspeita dos familiares é que os seguranças do supermercado, após espancarem os dois, tenham entregado Bruno Barros da Silva, de 29 anos, e seu sobrinho Ian Barros da Silva, de 19, a traficantes do bairro para que fossem mortos. Um detalhe: enquanto esteve detido nas dependências do Atakarejo, Bruno chegou a mandar uma mensagem de áudio para uma amiga pedindo 700 reais para pagar as carnes. Mesmo assim, acabou torturado e morto.

As imagens deles sentados no estacionamento do supermercado com os pacotes de carne rodaram as redes sociais; o rosto da mulher branca não foi nem sequer exibido no vídeo que flagra o momento em que ela surrupia o queijo.

Dois casos em Salvador demonstram que a frase "se não queria morrer, que não roubasse" só vale para pobre e preto

Foto: reprodução
Tio e sobrinho nas dependências do Atakarejo após o furto

Ao comentar o caso em um grupo de whatsapp, alguém justifica que a madame ladra de queijos é “cleptomaníaca”, que só isso explicaria sua ação criminosa, já que, como é rica, “não precisa roubar”. Ora, há várias razões que podem levar uma pessoa a furtar coisas em lojas e supermercados. A principal delas é a necessidade, claro.

Mas é possível, por exemplo, que a madame ladra de queijos seja uma pessoa que vive de aparências e que não tivesse dinheiro para pagar a compra. Também é possível que tenha afanado o queijo pela adrenalina que o ato transgressor traz, pela excitação do furto. Ou que, sendo branca e rica, furtou pela certeza da impunidade, o que se confirma no fato de que não ter sido importunada pelos funcionários da delicatessen.

É possível que Bruno e Ian tivessem furtado as carnes para comer ou para gerar lucro com elas, revendendo –foi o que disseram seus familiares. Mas por que tio e sobrinho também não receberam o epíteto de “cleptomaníacos”? Não há outra resposta a não ser: porque são negros.

A boa vontade de alguns diante do branco rico ladrão é um fenômeno a ser estudado. É preciso justificar por que alguém que “tem tudo na vida” é capaz de afanar um queijo, daí a desculpa da “cleptomania” e dos problemas psicológicos. Aliás, vocês já repararam que os brancos ricos sempre recorrem a esta saída quando cometem uma infração grave? Em 2017, o filho traficante de uma desembargadora do Mato Grosso do Sul foi internado numa clínica. Coitado, flagraram ele com 130kg de maconha porque tinha um transtorno mental… Em 2019, o enteado do então prefeito de Manaus, Arthur Virgílio, acusado de assassinato, também foi para uma clínica de reabilitação de drogas.

Enquanto o branco rico ladrão é “doente” e precisa ser internado, o preto pobre ladrão é “sem-vergonha”, “vagabundo” e precisa ser preso –ou morto. A parcialidade do julgamento é tal que nos leva, como sociedade, a ter constrangimento de protestar contra o assassinato covarde e brutal de dois jovens negros apenas porque cometeram um delito menor. “Se não queria morrer que não tivesse roubado”, costuma dizer a extrema direita diante de um caso como este. Mas por que esta frase não vale para a branca rica que furtou?

Após a repercussão nacional do caso, a polícia baiana está investigando o assassinato de Bruno e Yan. Há um ponto fundamental a ser esclarecido: por que, em vez de prestar queixa à polícia (não fez nem sequer boletim de ocorrência), o Atakarejo decidiu resolver o problema “por fora”? Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Segurança Pública da Assembleia Legislativa da Bahia, o deputado estadual Jacó (PT), vai mais longe: “Qual o envolvimento institucional do Atakarejo com o tráfico de drogas?”, questionou, de acordo com o site Bahia Notícias.

“Se o gerente ligou para o tráfico, é porque havia algum ponto de autorização do Atakarejo. Teve um fato, e a direção da empresa tomou uma atitude que é covarde. É algo muito estranho, que causa muita revolta. Isso é um caso emblemático. Se fosse de algum boteco, estaria até preso. É o dono de uma rede que se nega a comentar o caso. O Atakarejo faz de conta que não existe. Quem faz a segurança por fora do Atakarejo é o tráfico?”

Indignada, a mãe de Bruno, Dionésia Pereira Barros, lamentou: “Por que não chamaram a polícia? Eu sei que meus filhos erraram, mas eles não eram Deus para entregar meu filho para a morte. O segurança do mercado deu meu filho para a morte, deu de bandeja para o Satanás”.

Até agora não se sabe quem é a mulher branca e rica que surrupiou o queijo na delicatessen de Piatã. Ela está viva e livre para cometer mais furtos. De boas.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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