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No Brasil, crise habitacional é escancarada pelo cenário de pandemia e colapso econômico

A negação de direitos é a faceta mais visível do processo de criminalização da população sem-teto e sem-terra no Brasil
Allan Ramalho Ferreira
Carta Capital
São Paulo

Tradução:

Há no Brasil uma grave crise habitacional escancarada pelo atual cenário de pandemia e crise econômica. No contexto atual, o direito à moradia desempenha um papel fundamental de resguardar o direito fundamental à vida, tomado aqui no seu aspecto mais comezinho, biológico e cerebral: o direito de estar e permanecer vivo/a. O referido direito ingressa em um círculo mais restrito de mínimo vital ou mínimo de sobrevivência. Vale dizer, a implementação de um conteúdo mínimo do direito à moradia, que é o direito de ser abrigado, alojado, acolhido, em um cenário de difusão de um vírus mortífero, é condição fundamental para a manutenção da vida. No entanto, esse contexto não foi levado em consideração pelo Poder Judiciário paulista no caso da reintegração de posse da Comunidade Taquaral, na cidade de Piracicaba.

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Em 30 de janeiro de 2020, a MMª Juíza da 4.ª Vara Cível da Comarca de Piracicaba apreciou o pedido de liminar de reintegração em caráter de urgência. A necessidade alegada de preservação patrimonial imobiliária do autor prevaleceu em detrimento ao direito dos ocupantes ao abrigamento em um momento epidemiológico gravoso. A pandemia serviu como fundamento à decisão liminar e não como uma circunstância de cautela para a adoção, ao menos, de políticas sociais e de atendimento habitacional provisório pelo Município após a remoção – que dessa maneira qualifica-se como uma remoção forçada.

Justificou a magistrada que era necessário a comprovação da posse sobre a área pleiteada no processo, além de comprovar o tempo de duração dessa posse, “que deve ser de menos de um ano e dia”. No que toca ao primeiro requisito (comprovação da posse sobre a área), a juíza o considerou contemplado, já que “os documentos encartados aos autos atestam que o autor é coproprietário da área em questão, que pertence à sua família há quase cem anos, tendo sido transmitida entre gerações”, e, assim, concluiu: “verifica-se que o autor possui, ao menos, a posse indireta do bem”. Considerando ainda que era “evidente que o esbulho – crime contra o patrimônio que consiste em invadir terreno ou edifício alheio, com o intuito de adquirir a posse – ocorreu há menos um de ano e um dia, pois observa-se que a área ainda está sendo loteada e as moradias existentes estão em estágio inicial de construção”, deferiu a liminar e determinou a expedição de mandado de reintegração de posse.

A reintegração diante do contexto da pandemia de Covid-19

Após a decisão judicial, iniciaram-se os preparativos da anunciada reintegração de posse. Foram oficiados dois braços do Estado: governo do estado e município. O governo do estado de São Paulo, por sua Polícia Militar, braço forte da lei, mostrou-se pronto para o cumprimento da ordem, no seu vocabulário compreendida como uma operação tática, programando-a para o dia 07 de maio, às seis horas da manhã. O município também veio aos autos para solicitar a juntada do ofício da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), com o seguinte teor: “esclarecemos que esta Secretaria não atua em áreas particulares, não sendo portanto de competência legal da SMADS a realocação de invasores dessas áreas”. , Enfraquecido, o braço que deveria acolher a população removida cedeu. Toda a musculatura do Estado estava dirigida ao cumprimento da ordem para a afirmação dos direitos patrimoniais do autor e da autoridade da decisão do Poder Judiciário, sem qualquer política de socorro à população vulnerável.

Neste contexto, sobreveio a pandemia. No dia 11 de março, a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou como pandemia a disseminação da contaminação pela covid-19 – naquele momento eram 118 mil casos e 4.291 mortes no mundo. A Defensoria Pública, provocada pela Rede Nacional dos Advogados e Advogadas Populares (Renap), apresentou manifestação nos autos, na qual pleiteou a suspensão do cumprimento da referida ordem de reintegração de posse em razão da situação pandêmica – subsidiariamente, pleiteou esclarecimentos acerca dos cuidados e das cautelas no cumprimento da ordem, para o afastamento dos riscos de contágio da população e dos profissionais envolvidos na remoção.

Após ouvir os advogados das partes e o Ministério Público, a magistrada, em decisão proferida na antevéspera da data designada para remoção, considerou que no local havia um número diminuto de pessoas (e não de 50 famílias, conforme alertado pelos advogados populares e pela Defensoria Pública) e o risco maior de manutenção do núcleo informal para a propagação do novo coronavírus, em razão das construções que eram realizadas na localidade. A Defensoria Pública e os advogados populares interpuseram agravo de instrumento, mas a decisão inicial foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (decisão monocrática do desembargador relator foi proferida na noite do dia 06 de maio). A reintegração de posse foi cumprida no dia 07 de maio de 2020. Provavelmente, o processo e será extinto ante a satisfação da pretensão do autor de defesa de sua propriedade dinástica.

Segundo o boletim epidemiológico n.º 71 de 07 de maio de 2020, o Estado de São Paulo registrava 39.928 casos confirmados e 3.206 mortes decorrentes da doença. Somente em Piracicaba, verificava-se 142 casos confirmados de Covid-19 e 12 óbitos dela decorrentes, o que demonstrava que o vírus estava em circulação no território com todo o seu potencial mortífero. Com efeito, o contexto é importante para demonstrar a desproporcionalidade do cumprimento da ordem de reintegração da Comunidade Taquaral, pelo Poder Judiciário e pelo Governo do Estado de São Paulo, bem como para escancarar o potencial mortífero diferencial da Covid-19.

A negação de direitos é a faceta mais visível do processo de criminalização da população sem-teto e sem-terra no Brasil, em especial no Estado de São Paulo, cujos governantes enxergam a política habitacional e de acesso à terra sob um viés neoliberal, destinando-a para quem pode pagar os parceiros privados.

Por outro lado, chamados de invasores, por juízes e administradores, os ocupantes de assentamentos informais lidos como grandes inimigos, destituídos de dignidade e de esfera de direitos, são submetidos a toda ordem de ofensa e lesão. Arma-se um aparato legal de combate e de deslocamento destes corpos indesejáveis. Uma reintegração de posse, sem soluções assecuratórias dos direitos humanos dos ocupantes, já causa espécie em tempos ordinários. Em tempos pandêmicos, a reintegração de posse implementada na cidade de Piracicaba revela a política de morte reservada a um importante contingente da população brasileira, que além de não ser protegida do contágio por um vírus mortal, é entregue, solenemente, à infecção, como corpos sem proteção jurídica.

Diversas medidas estão sendo tomadas para conter a infecção causada pela Covid-19 no Brasil, em níveis nacional, estadual e municipal, semelhantes às adotadas em países como Itália, Espanha e Estados Unidos, notadamente no sentido de medidas básicas de higienização e de inibição de aglomerações de pessoas, com incentivo ao isolamento domiciliar.

De fato, estamos vivendo uma pandemia comparável à gripe espanhola (vírus influenza), que vitimou, em 1918, cerca de 17 milhões de pessoas em todo o mundo. Trata-se, com efeito, não apenas de uma crise sanitária, mas, também, de uma crise humanitária com números de mortos em importantes que superam atentados terroristas e de conflitos bélicos.

Não obstante, como já salientado por diversos especialistas, o número de vítimas fatais dependerá das politicas públicas permanentes e circunstancialmente implementadas pelo Estado durante a pandemia. Diante disso, a despeito de todas as precauções e prevenções adotadas pelos Governos Federal e do Estado de São Paulo e pelas municipalidades, é necessário, para além das medidas sanitárias e de controle epidemiológico, estimular políticas públicas de atendimento aos direitos sociais da população vulnerável. A precariedade dessas políticas poderá ser um importante fator mortífero, assim como são comorbidades fisiológicas (faixa etária, cardiopatia, diabetes mellitus, pneumopatia, imunodeficiência, doenças neurológicas, asma e doenças hematológicas) – daí se falar em crise sócio-humanitária.

Quando o Estado veste o traje da morte

O potencial mortífero do novo coronavírus é diferencial: depende das probabilidades de infecção, das comorbidades predispostas e das possibilidades de atendimento médico e de cuidados intensivos. A infecção causada sufoca, estrangula, afoga no seco – modos de matar que são tidos como cruéis por nosso ordenamento jurídico, quando praticados por um homicida. Pessoas infectadas são internadas subitamente, entubadas, ligadas a aparelhos. Lutam pela sobrevivência. Muitas vezes sucumbem, sem sequer se despedir de seus amores quando de seu respiro derradeiro. É uma morte angustiante e solitária. Ainda mais trágica é a morte das pessoas que não recebem cuidados intensivos, buscam o ar sem encontrá-lo nas fileiras ou nos corredores dos equipamentos de saúde ou à espera do serviço móvel de emergência. Estas últimas, antes de morrer, possivelmente experimentam o amargo sentimento do desprezo alheio de uma estrutura montada para não oferecer socorro.

Uma morte cruel, portanto, percorre ruas e avenidas das cidades, mas tem suas vítimas preferenciais nas periferias. Há um vírus mortal lá fora. É necessário abrigar-se. Aqueles que podem desenvolver suas atividades pessoais e profissionais com segurança possessória e financeira, conseguirão, com maior probabilidade, preservar a vida própria e de sua família. Isso porque a chance de entrar em contato com vírus dependerá da efetividade do isolamento domiciliar e do distanciamento social que praticam (uma espécie de meritocracia que apenas revela os privilégios consolidados numa sociedade desigual).

Há outros que não têm as mesmas chances de sobrevivência. Dentre estes, os moradores da Comunidade Taquaral, desabrigados por ordem judicial. Como se abrigarão nesse momento de pandemia? Não se encontra esta resposta na decisão judicial proferida.  Tudo que se espera, agora, é que o Estado brasileiro não falhe novamente ao ser procurado por algum desses desabrigados para atendimento médico diante da infecção pelo vírus, sob pena de vestir, por completo, o traje sombrio da morte, que a propósito é muito parecido com uma toga.


Allan Ramalho Ferreira é defensor público do Estado. Coordenador do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Mestre e doutorando em Direito do Estado na PUCSP. Associado ao IBDU e parceiro da Rede BrCidades.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Allan Ramalho Ferreira

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